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segunda-feira, 23 de maio de 2016

Barcos miúdos de Lisboa

Já nas páginas desta Revista passaram noticias de "Os Barcos do Tejo: Fragatas e Varinos". Agora caberá a vez aos barcos menores: bateiras, botes, canoas, canoeiras, catraias, chatas, escaleres, lanchas, lanchinhas, e quejandos. que formam a arraia miúda das águas do rio-mar.

Canoa do Tejo, desembarque de passageiros.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Fazem serviço aos navios, de uns para outros e de ligação com a terra, para passageiros e carga, Além dos que andam empregados na pesca do rio. Pondo de parte o incaracterísticos escaleres, reservados ao serviço próprio dos barcos grandes, ficam-nos à vontade da observação todos os mais [...]

Embarcação (canoa) Zinha, Costa da Caparica, passeio de barco, 1922.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Da beira dos cais de Lisboa ou dos magníficos miradouros da Cidade, a míudagem do rol de barcos do Tejo impressiona pelo número, todavia menos do que seria preciso para gozar a beleza do rio e em atenção à massa de habitantes das duas margens fronteiras. para um e outro lado, isolados, só por si, muito senbores das suas capacidades, ou a reboque de fragatas, varinos, traineiras e mais exemplares da mediania fluvial, cruzam o rio, atravessam-no, passeiam-no, e pairam na espera longa da pescaria.

Pequenas embarcações do Tejo junto a navio de guerra.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Ao longo do cais da Ribeira Nova, no descanso horário e na expectativa de serviço formam pela policromia garrida das cores, a parada sugestiva das canoas, a que se associa, uma ou outra chata, emparelhada com elas.

Canoas do Tejo.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Bateira, batel, batela, bote, canoa, canoeira, catraia, chata, lancha, são barcos pequenos bem conhecidos, uns com quilha, como o bote e a canoa, outros de fundo chato, como a bateira e a chata, do que a esta provém a sugestão do nome, reforçado ainda pela baixeza do bordo.

Embarcações na Doca do Bom Sucesso, 1966.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Na Ribeira Nova a multidão de barcos carenados, com o seu tipo (canoas), e às chatas, que se associam às vezes na alongada pitoresca, dão os maritimos a designação geral de "canoas", porque estas dominam e as demais são visitas [...]

No Tejo, melhor que os varinos, procedentes da zona marítimo-fluvial de Aveiro, manifestam essa ascendência os batéis de pesca, de bordo elegantemente recurvado, a prolongar-se ao alto nas duas pontas extremas, as bicas. Há os mais pequenos, a oeste da Torre de Belém, margem adiante, e maiores para montante de Lisboa; avista-os do combóio quem se dirija a Cascais, para os primeiros, ou tome a linha do Norte, para os segundos, em pleno Ribatejo; e continuará a encontrá-los, tanto na pesca do rio, como na travessia ao longo da linha de leste, Barquinha arriba — os "barcos" [...]

Embarcações no Cais da Misericórdia.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

As canoas da Ribeira, humildes, de dimensões e de ascendências, não têm pontas proeminentcs, mas terminam em ponta bem definida na proa, e ficaram rasas na quadratura da popa. São construidas com quilha, bem abauladas.

Lisboa, canoas junto ao cais da Parceria.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Bordo direito, proa em continuidade, sem levantamento, aguçada; popa quadrada; flancos boleados. Tábuas lisas: bordo saliente e uma ou mais molduras, paralelas, de segurança e decoração; movimento a remo longo e a pequena vela, quando a monta e é precisa. 

Canoa do Tejo a recolher a vela.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Estes barcos têm o esquema decorativo de faixas e filetes ou listéis com colorido forte, sempre em disposiçâo paralela, em que não conta a simetria: tudo recebe cor. Os filetes. salientes ou simplesmenle representados a pincel, são pintados muito diferentemente das faixas contíguas. 

A variedade e o número das cores empregadas no mesmo barco lembram em alguns deles balões de iluminação de arraial. Há, todavia, os que reduzem a policromio de três, quatro e cinco faixas com os seus listéis; e alguns, o que denota sensibilidade mais calma e dominada, fogem aos coloridos berrantes e às cores fundamentais ou primárias, para utilizarem o azul, o lilâs, o cinzento, de tons leves, que mais se vão suavizar com o branco, até por vezes com predomínio deste []

Por influência da decoração da proa nos barcos grandes e médios, especialmente das fragatas e dos varinos, que no Tejo dão modelo e sugestão aos outros vizinhos, estes barcos apresentam aí ornatos, na faixa lisa entre o bordo e o filete imediato. 

De um e outro lado, a faixa é pintada de cor diferente, com o comprimento desejado, e a toda a altura; o remate, oposto à linha da frente, fica em traço vertical ou curva e recurva em feição de "S" oblíquo e de tromba alongada, ou singelamentc arredondado.

Os ornatos, que dominam, são o losango e a estrela de cinco pontas. Formas e combinações losangulares. O losango simples, comprido, para se estender ao longo da tabela decorativa;


losango prolongado por dois outros muito menores no sentido do comprimento; dois losangos das mesmas dimensões, com um terceiro, menor, de permeio; 


dois losangos, cada um deles prolongado por dois; dois losangos iguais, ligados por outro menor intermediário, ligado ou isolado, e ambos prolongados, nos vértices opostos, por um outro, iguais sempre ao intermédio; losango simples, entre dois triângulos pequenos; três losangos iguais, em linha.


Estrelas de cinco raios uma, ou três em linba longitudinal ou em disposição triangular. Quando é uma, está inscrita num disco: branca em vernelho ou azul.


Desaparece depois a estrela e fica o disco, vermelho.

Em outros exemplares, as estrelas são substituídas por circulos, igualmente em linha. Em um caso, estes desenhos deram lugar a três rosetas com a mesma disposição. Os mais simples, que observei, manifestam a exigência do ornato, por uma tabela rectangnlar, dividida cm três quadrados seguidos, todos com relevos indistintos, coloridos, ou por séries paralelas de linhas onduladas, a figurarem as ondas do rio, em que o barco anda. Exemplar mais apurado é o da "Diolinda", com bordados em XX curvos, seguidos, pintados a vermelho, a lembrarem as "plumas" decorativas das carroças de Lisboa.

Os ornatos das canoas.
Imagem: Hemeroteca Digital

A combinação e a difusão das cores avivam este esquema ornanental. Ou o losango é inteiro e uno, ou está dividido pelas suas diagonais. A cor tabelar distingue-se formalmente da cor da faixa em que está pintada a tabela da proa ou esta é aplicada; as figuras sobressaem da tabela pela cor ou pela, mais ou menos variada, ligação de cores.

Assim: losango verde sobre amarelo; vermelho sobre amarelo; branco sobre azul; vermelho sobre azul; grupo de dois losangos e seus prolongamentos pintado. de branco em campo vermelho, vermelhos em campo branco; um preto, outro verde, e prolongamentos vermelhos; ambos vermelhos e os prolongamentos verdes; estas duas composições em campo branco; três losangos, dois brancos laterais, branco o do centro, sobre amarelo.


Se os losangos foram abertos pelas diagonais: em campo amarelo, as quatro zonas colorem de branco, vermelho, preto e verde; preto, azul, branco e verde; vermelho, amarelo, branco e azul. Na decoração, já mencionada, composta de losango entre dois triângulos, o losango é quadripartido de branco, amarelo, verde e vermelho, com os doís triângulos vermelhos [...]


Estas cores são predominantemente fortes, por vezes violentas e rudes, o que toma garrido este selo individual e faz mais vista na simplicidade ou na profusão das cores do barco.

Lisboa, canoas junto ao cais da Parceria.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Os barcos estão a ser constantemente pintados. A água salgada e o sol destingem-lhes a cor, e os barqueiros fazem gala nos seus barcos como o carroceiro o faz na sua carroça. O colorido torna-os atraentes e forma-lhe o cartaz vistoso a provocar preferências. Todavia, entre essas bandeiras multicores, há bastantes barcos por que os donos não manifestam interesse artístico, para lhes servirem apenas em fainas de pescas fluviais e de tráfego.

Para poente do Cais do Sodré, a seguir ao abrigo das fragatas, dos varinos, das lanchas e dos vapores de pequeno porte para reboques, alinham-se na zona própria estes barcos maneirinhos e policrómicos.

Pairam e esperam como sardões ao sol, estendidos lado a lado, aleuns de borco, ao longo das rampas dos cais, em frente do mercado da Ribeira Nova e do pavilhão dos barcos do Clube Naval. Aí se podem visitar e ver como são tratados. A vizinhança dos barcos à vela é elucidativa. Junto destes avistam-se os' botes de serviço, a arrrmedarem os grandes que servem; são grossos, pesados, negros, nada graciosos como estes de que vimos falando: mas lá têm sua proa: um com ela pintada de verde, em costado preto; outro com pintura de branco e, ao centro, mancha rectangular verde, o terceiro com pintura de branco, todas estas pinturas são de campo triangular, com o vértice avançado na ponta da proa [...]

Canoas junto à Estação dos Vapores Lisbonenses no lugar do Cais da Ribeira Nova.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Não são muitas as canoas com seu nome à proa: vejamos-lhe as variedades.
Nomes de religião: Fé em Deus, S[enhor].r na prisão, Bamos com Deus, Senhora do Livramento. S.ta Catarina, S. Margarida, S.ta Maria Adelaide.
Nomes masculinos: Amândio José, João Alberto, José, Lazarinho, Salvador.
Nomes femininos: Adelaide, Assunção, Celeste, Cristina, Delfina, Diolinda, Isabel (lzabel). Lídia Marques, Lucilia, M.ria Adelaide, Maria Amélia, Maria Emilia, Maria Gertrudes, Maria Helena, Maria Lucília, Maria do Rosário, Maria Virglnia, Natália, Palmira, Rosa.
Nomes ou evocação de flores: A Flor, Flor d'Assunção.
Nomes históricos: D. Nuno A[lvar].es Pereira.
Nomes de gentileza: Graciosa, Boa Viagem, Flor do Rio, Vai e Volta.
Nomes irónicos: Deixa falar, Foi o Destino, Não se ralem, Não te rales, Sem nome.
Nomes de posse dupla: Dois Amigos, Duas Irmãs.
Nomes estranhos: Piricici [...], Trator (tractor, por quê?), Aberína (A Varina?), Artesina (A Teresinha?).

Canoas salvador e Maria Lucilia.
Imagem: Hemeroteca Digital


A maior parte das canoas, porém, não tem nome. Distinguem-se apenas pelo número e mais sinais da matricula marítima do porto. Algumas ainda ostentam à proa uma ou mais estrelas pentalfas, pintadas ou aplicadas e coloridas, a. distinguirem-se da cor da faixa ou do negrume do barco. 

Os nomes, onde os haja, foram desenhados e pintados, melhor ou pior, com erros ortográficos e caligráficos ou correctamcnte escritos, a maiúsculas ou minúsculas, na faixa cimeira, sobposta ao bordo; em alguns casos foram postos em tabela de madeira, pregada, excepcionalmente apurada com esmero, rectangular, com duas presilhas nos extremos.

Numa tarde de maré cheia, percorrendo mais uma vez a faixa dos cais da Ribeira, vi alguns barcos, acoitados ao molhe e nas águas mansas. Nunca até então os tinha aí encontrado. São do tipo dos que já foram aqui mencionados, e costumam pairar para oeste da Torre de Belém. Esguios, estreitos, de proa e ré bem pronunciados, são utilizados na pesca do camarão e do caranguejo. Chamam-se canoeiras. Alguns deles, como os de Pedrouços e Algés, não têm qualquer pintura: negros, falta-lhes o gosto dos canoeireiros para os pôr a par da garrida policromia dos seus similares: utilitários e nada mais. 

Canoeiros, barcos de pesca do camarão e do caranguejo.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Os botes das fragatas e dos varinos, mais de uso de bordo que de gala, apresentam-se pretos e breados; muitos deles, porém, embelezam-se com simples adorno, que lhes quebra o mau aspecto, já de si grossos e pesados; mercê de sugestão dos painêis da proa dos barcos a que servem, têm aí também um canto colorido: verde e branco em combinação mais ou menos vistosa; um deles é assim: forma com o canto da linha de bordo e da saliência da roda da proa um painelzinho triangular: dois triângulos concêntricos, o interior verde, e a faixa periférica, entre eles, branca; em cada vértice desta faixa cabe um triângulozito vermelho. Há-os pintados de azul e proa branca, e pretos de proa azul (como ficou dito já).

Barcos junto ao Cais do Sodré.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Estas canoeiras do camarão (camaroeiros) aparecem por vezes listradas como as suas parceiras as canoas, e certamente por influência estética, delas recebida. São elegantes na sua curvatura alongada, e com os vivos alegres e as cores, menos numerosas e mais sóbrias do que nas canoas.

Canoeiras são canoas grandes, de pesca no rio; movem-se a remo e içam vela; o fundo é chato; as pontas ou "bicas" reviram. Vêm de Setúbal ao Tejo Os "saveiros" sadinos, abertos em crescente, sem a elevação das pontas extremas dos "saveiros" e das "meias-luas", da Trafaria, Caparica e mais alongamento da costa entre os rios Tejo e Sado. 

Verifiquei certa hesitação enlre os barqueiros da Ribeira Nova, quando os interroguei sobre os nomes dos barcos ali à vista. Um deles, como já ficou atrás anotado, chamou "canoas" à série de canoas e chatas ali varadas; chamei-lhe a tenção para a presença de chatas entre as canoas, e respondeu-me secamente que tudo aquilo eram "canoas".   Outro apontou-me as "canoeiras", nome que dias depois foi substituído pelo de "pios", realmente do mesmo tipo, se não os mesmos de dias atrás. 

Embarcações junto ao Cais da Ribeira Nova.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A catraia tem os caracteres essenciais das canoas, mas de menores dimensões; é uma canoa pequena, como a canoeira, é uma canoa grande. Fixo-me às próprias elucidações dos marítimos interrogados. Estas canoeiras, a que também ouvi chamar canoeiros, estes talvez maiores, pelo que me pareceu compreender, andam no rio, são de fundo chato e movem-se a remo, podendo levantar vela. 

Pela margem de Pedrouços adiante se vêem, em fila como as canoas na Ribeira; mostra-os uma das fotografias, que ilustram estas notas. A "bateira" dá o tipo destas embarcações pequenas de pesca fluvial; mas, nos exemplares à vista, junto do paredão e dos embarcadores do Cais do Sodré, é mais curva, mais larga, e vai também a remo e à vela.

No panorama geral destas pequenas embarrações da Ribeira Nova, as canoas são decorativamente os brincos da multidão, na policromia e no arranjo das cores. Há-as sem ordem na coloração, pois estão apenas manchadas inglóriamcnte com borrões de tintas diíerentes, a mais parecerem paletas sujas e abandonadas; outras têm apenas o negrume breado da conservação. Dos outros tipos, só algumas canoeiras, conforme ao que se apontou, apresentam listas coloridas, todavia com maior parcimónia. Tudo o mais é negro e sombrio.

Lisboa (Portugal), Rampa e embarcadouro Ribeira Nova, ed. Martins/Martins & Silva, sn,  década de 1900.
Imagem: Delcampe

Um aforismo, à maneira de D. Francisco Manuel de Melo, e talvez por ele algures utilizado, juntou assim a gente do mar e a com ele relacionada: — Em mulher de Alfama, homem do mar e relógio das Chagas, há pouco que fiar.

Note-se que a igreja das Chagas, sobranceira ao Tejo, era de uma confraria de gente do mar; foi construida em 1542 e pertencia à Confraria das Chagas de Cristo, que Fr. Diogo de Lisboa instituira numa capela do convento da Trindade em 1493; sómente podiam fazer parte dela os marítimos das carreiras da lndia e do Ultramar; a imagem era conhecida por Nossa Senhora da Piedade das Chagas de Cristo; trouxe-a um mercador da tndia; a igreja foi dcstrulda pelo terramoto de 1755 e reedificada mais tarde.

Panorâmica de Lisboa e do rio Tejo vendo-se a igreja das Chagas de Cristo, 1905.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A origem dos nomes típicos dos barcos miúdos compreende-se bem: o batel, barco pequeno, do latim batellum; dele vêm batela, barco pequeno, de fundo chato, usado no Alto Minho, e batelão, aumentativo, grande barca; à famllia pertence a bateira. barco pequeno sem quilha; bote, barco pequeno para serviço fluvial, deriva, segundo Cândido de Figueiredo, do verbo botar, baixo latim, por influência germânica; canoa, do castelhano canoa, id. do germânico, de onde onde também veio canot em francês, e este do mesmo tipo geral elas nossas; chata, nome procedente da própria estrutura do barco, baixo, de fundo chato, isto é, sem quilha. 

De alguns destes nomes derivaram.se termos usuais: batelada é carga de batel, mas em atenção a grande carga de batel cheio (batelada de qualquer coisa e, com aumento admirativo, "grande batelada"); canoa aplica-se a qualquer coisa grande ou larga e a mulher gorda (os sapatos grandes são canoas; banheira grande é canoa, etc.); catraia, por ser miúda, é, em gíria corrente, rapariga; catraio é paralelamente rapaz. Ou deram a expressões como "ir no bote", que quer dizer ir no engano, deixar-se alguém ludibriar (F. foi no bote).

Canoas, José Artur Leitão Bárcia.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O condutor do batel chama-se "bateleiro"; o da canoa é "canoeiro"; em geral, o do barco é "barqueiro". Alguns anexins formam a filosofia popular do barco e do seu barqueiro.  — Barco parado não faz viagem.  — De barco roto, salve-se quem puder.  — Deus adiante, o mar é chão.  — Outubro, Novembro, nem Dezembro, não busque pão no mar. — Se não for nesta barqueta, irá noutra que se calafeta.  — Por velho que seja o barco, sempre passa o vau.  — Quem não entra no mar, não se afogará.

Canoas de transporte de passageiros junto à Praça do Comércio, Augusto Bobone, anterior a 1910.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Os marítimos de Lisboa formavam várias irmandades com suas capelas e os respectivos oragos: — a da Senhora das Necessidades, cm Alcântara, que deu o nome ao Palácio, construido no lugar da capela por D. João V; — a do Senhor dos Navegantes e de Nossa. Senhora da Caridade, na igreja do mosteiro da Esperança, de onde as imagens foram levaclas para uma barraca do Mocarnbo depois de salvas da derrocada do mosteiro por obra daquele mesmo terramoto, e, mais tarde, construído novo templo, ficaram ao culto na Capela dos navegantes» (Senhor dos Navegantes), sita na rua do mesmo nome, no bairro da Lapa; — a da Senhora dos Remédios, em Alfama. venerada pela gente do mar da Ribeira Velha; — a de S. Pedro, na Ribeira das Naus, para os homens das construções navais, etc. E tinham culto especial pela Senhora da Penha de França e pelo Senhor dos Paços da Graça, em cujas igrejas, o atestam numerosos, ex-votos de feição marítima.

Procissão da Nossa Senhora da Atalaia em Lisboa antes da travessia do rio para a Outra Banda.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Em frente de Lisboa, na Outra Banda, ainda os marítimos veneram suas invocações marianas, protectoras da azáfama e dos perigosos em que vivem o dia a dia: — Nossa Senhora do Rosário, no Barreiro e na Costa da Caparica; — Nossa Senhora dos Navegantes, em Cacilhas; — Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Cacilhas e em Porto Brandão; — Nossa Senhora da Boa Viagem, na Moita; as festividades, prindpalmente a da Costa da Caparica, têm características predominantemente marítimas. 

Lisboa, Vista tomada de Cacilhas, ed. Martins/Martins & Silva, 7124, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Do lado de cá enumeram-se: — Nosso Senhor ou Jesus dos Navegantes, em Paço de Arcos, tão da estima dos "lobos do mar" desta praia, ja tão próxima da foz do Tejo; — Nossa Senhora do Porto Salvo, acima de Santo Amaro de Oeiras, com uma capela de alpendre e fachada guarnecida de dois painéis de azulejos de Policarpo de Oliveira Bernardes, construída num cómoro, que se avista da entrada da barra: — Nossa Senhora da Guia, em Cascais, antes de entrar no Tejo.

Cascais, praia dos pescadores.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

E basta apontar estes, não esquecendo, todavia, a "Senhora do Cabo" de Espichel, para se considerar a devoção dos marítimos de Lisboa ou de à sua beira.


(1) Revista Municipal, n.° 62, Lisboa, 1954

Artigos relacionados:
Fragatas e varinos do Tejo
Todos os barcos do Tejo
Marinha do Tejo


Informação adicional:
Carlos Mateus de Carvalho, Memórias de fragateiros, As embarcações tradicionais do rio Tejo
The Tagus Estuary Traditional Boats
Delcampe (Ribeira Nova)

terça-feira, 17 de maio de 2016

Fragatas e varinos do Tejo

A proa é, em algumas delas, bem caracterizadamente arqueada, como nos varinos. e até prolongada. no alto por uma ou duas peças maciças emparelhadas de madeira, semelhante à dos barcos de duas proas, que em cima continuam e acentuam a forte arcatura.

Fragata ou varino do Tejo à descarga do sal no cais da Ribeira Nova em Lisboa.
Imagem: Delcampe

Outras fragatas têem a curva da proa quási imperceptível até ser rectilínea, mas, é notável, com aquela peça complementar, simples, mais de permanência construtiva e formal, do que utilitária, embora de serventia.

Fragatas e varinos nas docas e cais do Jardim do Tabaco, em Lisboa, junto a Alfama, c. 1900.
Imagem: Delcampe

A ré, não sendo larga como em outros barcos, nem redonda, procede por curta truncalura de uma popa simétrica da proa. Toda a estrutura obedece a esta hipotética operação. Olhemos para qualquer dessas fragatas, mais arcaicas, ou passem a meio rio, ou encostem aos molhes e varadouros.

Embarcações no rio Tejo, fragata ou varino, Artur Pastor, 1950-1970.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Vejamo-la de perfil. Reconhecemos na proa, humildemente agachada, a carena altiva e provocante dos barcos. de Roma. A curvatura da amurada é suave e harmónicaa . Quando a curva de um bordo ia beijar a curva do outro, para formareom o bico de pôpa o bico da põpa, desceu nela subitamente o fio da guilhotina, e decepou-a [...]

Fragata do Tejo em frente ao cais do Ginjal.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O "Caderno de todos os Barcos do reio tanto de Carga e Transporte como d'Pesca" por João de Souza, Lente d' Arquitcctura Naval e Desenho da Companhia dos Guardas Marinhas, do ultimo quartel do século XVIII [...] é um álbum de vinte estampas com gravuras. que representam os barcos do rio Tejo e os que nele entravam. Dirigiu a obra de gravura Joaquim Carneiro da Silva e executou-a Ramalho [em 1785].

Caderno de todos os barcos do Tejo, Tanto
de Carga e Transporte como d'Pesca, por João de Souza
Lente d'Arquitectura Naval e Desenho da Companhia
de Guarda Marinha

A muitos dêles se refere Baldaque da Silva em seu Livro Estado Actual das Pescas em Portugal (Lisboa. 1908), cap. IX, p. 871-417. Reparando nestes barcos, desenhados por um técnico de arquitectura naval, que teria todo o cuidado profissional e magistral em ser fiel aos modelos, vemos que pertencem a dois sub-tipos de uma só forma fundamental.

20
Saveiro da Costa fig. A e do Tejo fig. B
Petits Batiments pêcheurs Ceux de la fig. A
pêchent hors du Tage

Um, o mais próximo da origem e que melhor a exprime. é o do Saveiro da Costa da Caparica, um meia-lua, com as duas pontas aduncas. Outro, mais numeroso, de curva abatida mas pronunciada pelo esguiamente e pelo alçado da proa, tem por exemplar mais esbelto a fragata; os restantes barcos são mais pesados, conservando todavia o ar de comunidade. 


16
Fragatas
Fregates, elles servent xxxx les besoins de la Ville

O destino utilitário, as águas e os ventos com que navegavam, a aplicação exclusivamente à navegação fluvial, ou à pesca fora da barra. provocaram diferenciações secundárias e sobretudo variedade intrínseca no velame.

"Barinel", década de 1890.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O iate, de dois mastros com duas velas trapezoidais, latinas, nas caranguejas, e gurupés com duas velas, foi embarcação de carga e recreio; a falua, para passageiros: os barcos de Alcochete, e de Aldeia-Galega, para transporte da lenha; os dos Moinhos, para farinha, dos moleiros da "Outra-Banda" para Lisboa, com dois bastardos; os barcos do Ribatejo, os batéis de água acima, com um bastardo, o último a armar também, como a fragata. com carangueja, e estai, para transporte de provisões, destinadas a Lisboa: a bateira de Porto-Brandão, com "carangueja e estai, para condução de areia; as fragatas, de carga; todos estes barcos velejaram com velame latino [ver artigo dedicado].

Falua atracada num pequeno cais da margem sul.
Imagem: The Tagus Estuary Traditional Boats

Só os barcos cacilheiros, utilizados na carga dos navios, levantaram panos tranversos, de ensacar o vento. Os caíques, os barcos de Sezimbra. da Ericeira, de Cascais, usam dois bastardos, como as lanchas do alto. com duas «caranguejas,. e dois panos no gurupés, para pesca; entram e saem do Tejo. O sàveiro da Costa difere pela vela rectangular. cruzada no mastro único.

Varino de pano bastardo junto ao Cais do Sodré.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A aparelhagem das fragatas, ao que se viu acima, na lista dos barcos, marcava um tipo definido; conjugava no mesmo mastro, único dêstes barcos, e muito à proa, mais ou menos inclinado à vante, a vela da carangueja trapezoidal, suspensa da carangueja. arvorada no mastro, e a vela do estai, triangular, estendida do mastro à proa.

Lisboa — Fragatas no Tejo, ed. Dulia, 26.
Imagem: Delcampe

Nas águas do Tejo, desde então, — e desde quando? — as fragatas velejaram rio abaixo, rio acima, com êste velame, sem remos, de leme seguro [...]

Fragata (à esquerda) e varino (à direita) diante a panorâmica de Alfama, Artur Pastor, 1950-1970.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O varino é a fragata de fundo chato. A fragata e o varino são irmãos de geração diferente:

Varino do Tejo, Artur Pastor, década de 1970.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A fragata está sem dúvida mais longe do modêlo, mas reparemos nela. A proa é alta, em algumas sensivelmente mais alta; em tôdas é alteada pela cabeça da trave mestra, que prolongam a linha média [...]

Lisboa, A Praça do Comercio vista do Tejo, ed. RAN, 106, década de 1950.
Imagem: Delcampe - Oliveira

A fragata e o varino que ainda conservam a decoração tradicional, poderiam adaptar-se à descrição do moliceiro. À frente abrem-se dois painéis divididos ao meio pela aresta da prôa, que em verdade forma um painel único.

Fragatas, Ferreira da Cunha.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A moldura, feita de rosas grandes, folhagem, rosáceas, vai de lado a lado, continuando de bombordo a estibordo, para abranger todo o painel.

Este é pintado de cõr viva, amarelo, azul, verde. ou de branco. Ao centro, de cada face boleada e lisa do diedro da proa, tem uma grande flor, ou ramo de flores recentemente, apresentavam figuras; o nome repete-se de ambos os lados.

Friso de ornatos semelhantcs, floridos e geometrizados em losangos e dentes triangulares, estende-se a tôda a borda anterior da amura da embarcação; cinta de cõr viva cerca-a, fá-la sorrir, cantar, brincar, bailadora como enfeitiçado Maio-Moço, em primeiro de Maio, que dura o ano todo.

Mas a decoração não fica por ai, entra na fragata e à volta da amurada, no poço ou escotilha, bandeiras das portas. matiza a obra interior como fôrro de azulejo policrómico, a lembrar as guarnições artísticas dos mosaicos romanos em tanques de "balneum" ou de "impluvium" de "villa" rica e das taças azulejadas de pátio arábico. 

Harmônicamenle composta, deduzida e colorida, a decoração das fragatas é opulenta. São porém poucas já as que mantêem esta decoração brilhante. Valia bem, para beleza do rio e pitoresco da cidade, por iluminura de velho códice desenrolado no Tejo, que se conservasse e estendesse até com estímulo êste espécime precioso da nossa arte popular marítima ou aquática.

Tais ornatos, ricos nas fragatas, mais variados espontâneos nos moliceiros, mais humildes nos sàveiros (uma silva, flores, vasos com cravos, dentro de moldura própria ou da que a pintura do casco deixa à proa e à ré), derivam das pinturas nos flancos e nos extremos dos barcos romanos, com o nome dêles, figuras decorativas, para os distinguir uns dos outros, e dar-lhes beleza.

Embarcações de carga no estuário do Tejo junto à Ribeira Nova, Cais do Sodré, 1919.
Imagem: iolanda andrade, Do Belo e Vasto Porto de Lisboa

Imagens, divisas, legendas (como Vamos com Deus. Valha-nos Deus. Fé em Deus. etc.), correspondem às pinturas e esculturas, que à vante representavam a pessoa ou objecto, causador do nome do barco (insignia). e à figura, que na ré imaginava a divindade protectora (tutella) do navio e da equipagem. que o tripulava.

Fragatas no rio Tejo, António Passaporte.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Outra classe ornamental de fragatas, semelhante ao que se dá com a maior parte dos barcos de pesca e de tráfego, recebe pintura em faixas horizontais de côres vivas, em que domina o vermelho. Por fim nem pintadas são pintadas são; ficou  apenas a forma.

Fragatas no cais, Armando Serôdio, 1966.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Como nos caíques, nas canoas do alto, de Lisboa, Sezimbra, Setúbal costa abaixo até o Algarve, e no calão desta província, e nas faluas do Tejo e também na fragata pintaram os olhos, pelos quais, ser vivo que ele era, o barco romano via desviava dos escolhos.

Vi, há anos, uma fragata com os dois olhos a pequena distância da aresta da proa; sobrancelhas, formadas de arco simples, e por cima dêle uma linha quebrada em largos dentes, pareciam limosas, próprias de olhos de divindades marinhas; a aresta avultava o nariz, com as narinas. indicadas quási sôbre a linha de água. Mais nada; friso de losangos e cruzes compunha a faixa envolvente, polictómica, do barco.

Fragatas no cais da Ribeira Nova.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O olho do barco de Ulisses repetiu-se, e continuou-se nos barcos da nossa terra, a espreitar os perigos da água. 

Se a proa perde a pouco e pouco o boleado elegante, e fica rectillnea, quási a prumo, ainda o aplustre, hirto e contínuo como poste ou cabeço grande, ímpar, maior que os outros, lhe prolonga a linha. Os outros barcos tinham essa disposição e conservam-na; a fragata degenerou de si, quando a adoptou, e deixou por isso o perfil adunco da aplustre de duas peças deslisantes entre si. 

Botes, fragatas e varinos e as diferentes formas de prôa, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Encontra-se caracteristicamente expressivo ao que chamaremos o tipo A, o mais arcaico, desenhado na aguarela de Leonel Cardoso, que ilustra êste ensaio: tão expressivo como nos modelos afins, nos saveiros e meias-luas. É tipo do varino, de fundo chato, o modêlo de "moliceiro" do Tejo [...]

Lisboa,  Fragatas [e/ou varinos] e Frota Bacalhoeira no Rio Tejo, ed. Passaporte, 195.
Imagens: Delcampe

O tipo B das fragatas fonnam-no as que teem o tipo mais frouxo, com a linha da proa menos redonda, e o apl~fTe direito. São menos "varinos". Predomina a pintura do painel da proa com as côres claras e lisas, uniformes, sem decoração. Também interiormente lhes faltam ornatos. Algumas limitam-se à pintura das arestas, molduras e salientes, de verde e encarnado. 

Nas de tipo A, bem pintadas e de colorido vivo e quente, é curioso notar os ecos da côr ou faúlhas da iluminação ornamental por tôda a parte: nas cabeças, nos cadernais, nos «vaus», na cana do leme, no mastro, as faixas ascendentes, sobrepostas.

Em certos exemplares, o conjunto surpreendente desta incandescência faz da fragata uma girândola de festa. O tipo C das fragatas compreende as que já se confundiram com outros barcos, na construção e na decoração. A proa endireitou. embora termine pelo hirto poste do aplustre. Não tem decorações. 

Com êste tipo, a fragata chegou ao extrêmo utilitarismo, sem nenhuma graça, que lhe dê espiritualidade, e prenda simpatias. O contraste é de tal forma grande, entre os melhores exemplares do tipo A e os melhores do tipo C, que o primeiro é o sol das fragatas, e o segundo a noite sem estrelas. 

As duas velas é que são as mesmas em todos os tipos dns íragatas e dos varinos; — a vela da carangueja, latino cortado em trapêzio rectângulo largo e alto, no mastro caracterizadamcnte alto, vai do mastro à carangueja e prende à ré (o velum romano correspondente ao pano latino por excelência); — e a vela do estai, triangular, estende-se da talha do estai, àvante do mastro, com o estai que prende na proa. Com êste aparelho navegam no Tejo, muito veleiras, a todo o vento, ora atravessando o rio, ora subindo-o e descendo-o, no tráfego diário.

Cisnes no rio Tejo, Artur Pastor.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Quando o temporal cai sôbre o estuário, então é que é vê-las juntas, aconchegadas umas com as outras, nas docas de abrigo. É a melhor ocasião de as surpreender na sua beleza casta e recolhida. 

Fragatas na doca da alfandega, Joshua Benoliel.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Melhor se lhes compreende a evolução artística e construtiva, por, assim reünidas em massa, lado a lado, poderem diferenciar-se umas das outrns. Gaivotas em terra e fragatas nos refúgios, sinal é de borrasca.

Fragatas imobilizadas em virtude da greve dos fragateiros, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Uma vantagem de sugestão histórica e artística tem ela pelo menos: a parada galante das fragatas. Lisboa deve rever-se com orgulho nas suas fragatas ornamentadas, jóias do Tejo, e protegê-las como tem de se fazer por bem ao traje regional. E elas merecem-no. (1)


(1) Revista Municipal, n.° 10, Lisboa, 1941

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Informação adicional:
Carlos Mateus de Carvalho, Memórias de fragateiros, As embarcações tradicionais do rio Tejo
The Tagus Estuary Traditional Boats