«A vida está difícil, ninguém sabe o que será o dia de amanhã. É preciso pensar no futuro e, por isso, desejo que também as pequenas, e não só os pequenos, estudem a sério e façam exames. Sei que esta carta vai estalar como uma bomba nessa casa que sempre me pareceu — lembras-te, Anica? — a casa da Bela Adormecida, mas tenham paciência... bem sabem que só tenho um desejo, uma preocupação na vida: garantir aos meus filhos um mínimo de felicidade, pô-los, tanto quanto possível, ao abrigo das más surpresas da vida».
Retrato de Fernanda de Castro por Tarsila do Amaral (detalhe), 1922. Governo de S. Paulo, acervo dos palácios |
Não se enganara o pai ao prever que esta carta rebentaria como uma bomba na tranquila casa cor-de-rosa. Sufocada, a tia Emiliana deu largas à sua indignação: — Exames! Era só o que faltava! Os rapazes, vá, que são homens, e aos homens tudo se perdoa, nada lhes fica mal!.…. Mas as meninas?! Sujeitá-las a um vexame desses?! E para quê, sempre queria que me dissessem! Para que precisará de exames uma filha de família, uma mãe dos seus filhos, uma senhora da sua casa?
A partir deste dia a atmosfera da casa mudou por completo. Os rapazes, de mala às costs, iam todas as manhãs para a escola. Desciam a escada a correr e, ao sair, atiravam com a porta. Cada vez que os ouvia, a tia Emiliana, que estava a tomar o seu chá ou a ler o jornal, não perdia a ocasião de dizer com ironia: — Parecem uns carroceiros. Por este andar, não tarda que cuspam no chão. Estão muito adiantados, têm aprendido muito.
Maria da Lua e Princesa tinham mestras em casa. A escolha destas mestras fora penosa e difícil. O director da escola da Câmara — escola que, com grande indignação da tia Emiliana, os rapazes frequentavam por não haver outra capaz nas imediações — aconselhara uma professora da sua escola, pessoa instruída, séria, de confiança, que, depois das aulas, poderia perfeitamente ocupar-se da educação das meninas. — É uma pessoa competente, que nunca teve um desaire nos exames. Ainda o ano passado apresentou vinte alunas e todas ficaram aprovadas ou distintas.
Retrato de Fernanda de Castro por Anita Malfatti (detalhe), 1922. |
— Era só o que faltava! — sibilou a tia Emiliana, A Conceição Lamosa a dar lições às minhas sobrinhas! Ainda me lembro de ver a mãe a vender criação às portas! — Que se há-de fazer, minha tia? Não temos por onde escolher, é a única pessoa competente destes sítios.
— A única? Então a Alzira... a Alzirinha? Essa, ao menos, é uma senhora, tem maneiras, sempre é filha de um major... — Não pode ser, minha tia... A Alzira estava bem, escapava, para os ensinar a ler e a escrever... Mas agora, que têm de ir a exame, precisam de aprender gramática, aritmética, geografia, coisas que ela não conhece nem de nome.
Finalmente, para evitar o mal-estar que, certamente, resultaria de uma intransigência absoluta, Conceição Lamosa, a filha da galinheira, tomou conta de Maria da Lua, Alzirinha, a filha do major, encarregou-se dos estudos da Princesa que, pela sua extrema simplicidade — a Princesa tinha apenas de fazer o 1.° grau — não requeriam ainda ciência especial, conhecimentos pedagógicos especiais.
A tia Emiliana, quando ouvia a campainha da porta duas vezes por dia, desabafava com Guilhermina: — Parece um portão de quinta... Quem quer entra e sai sem pedir licença, como na botica! Até a Lamosa!
Guilhermina abanava a cabeça e remoía velhas queixas: — Ainda se ao menos vendesse criação capaz! Mas qual! Eram só patos magros, galinhas tísicas que não deixavam nem uma olha na canja! E agora a fillha, de cadeira, a dar leis como se tivesse o rei na barriga!
— Modas novas, Guilhermina.….. Dizem que agora é assim, que nós é que estamos velhas... (1)
(1) Fernanda de Castro, Maria da Lua, Lisboa, 1945
Artigos relacionados:
Maria da Lua (retratos do passado)
Ao fim da memória
Liberato Teles
Ofélia
Leitura adicional:
Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Memórias (1906-1939), Porto, Verbo, 1986
Paula Morão, "'Ao Fim da Memória / Memórias' de Fernanda de Castro", Colóquio/Letras, n.º 181, Set. 2012, p. 102-116
Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf. Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986
Informação adicional:
Antonio Feliciano Telles de Castro Aparício (Google search)
José Dionísio Telles de Castro Aparício (Google search)
Fernanda de Castro (Fundação António Quadros))
Revista Colóquio/Letras n° 98 (julho 1987)
Atlântico n.º 5, 1944, Maria da Lua, por Fernanda de Castro, duas ilustrações de Ofélia Marques
Fernanda de Castro (1900-1994) descreve-nos a casa pombalina da sua bisavó, Maria Maurícia Telles de Castro e Silva casada com Francisco Liberato e Silva [ref. no Arquivo Distrital de Setúbal], 2.° comandante da Guarda Municipal, pais de Francisco Liberato Telles de Castro e Silva (1842-1902), nascido em Cacilhas [v. artigo dedicado].
A autora nasce do casamento de Ana Isaura Codina Teles de Castro da Silva (1879-1914), filha de Liberato Telles, com João Filipe das Dores de Quadros (1874-1943), Capitão-Tenente da Marinha e Comendador da Ordem Militar de Avis.
Do casamento de Fernanda de Castro em 1922 com António Ferro, nasceram António Quadros, filósofo e ensaísta, e Fernando Manuel de Quadros Ferro. A escritora Rita Ferro é sua neta.