Retrato do poeta Raimundo Bulhão Pato, Miguel Angelo Lupi, C. 1880 Imagem: ComJeitoeArte |
Imaginemos que a partida de caça é no Alemtejo a grande coitada do paiz.
Pernoita-se no Monte.
Temos á flammante lareira, onde crepita ó toro de azinho, as paredes alvissimas, a prateleirinha um brinco, a cantareira um primor; duas enormes talhas com vinho novo, que se provou ha dois dias; que está magnífico: — tudo isto ahi... por princípios de novembro.
Ainda não houve a entrada real das gallinholas.
Nos montados os pombos são ás bandadas, são como nuvens, e arrazam a boleta; mas nós não vamos aos pombos.
Parte dos companheiros batem as perdizes nos montes; outra, com as buscas e os galgos, correm as lebres a cavallo nos espragães e nas Sumarias.
Dois, com menos pernas, atiradores mais somenos, vão até um pedaço de juncal a ver se levantam alguma còdorniz crioula, e eu lhes direi logo o por quê.
Temos lebre, temos perdiz, e por ahi umas vinte codornizes.
Vamos ao banquete.
Açorda á Andaluza — Corte se um pão em fatias; torrem-se as sobreditas fatias; façam-se em quadrados, não em quadradinhos; pisem-se n'um almofariz vários dentes de alho, deixando três ou quatro com a casca — dá-lhe isto um certo sainete — sal, colorau doce e colorau do que morde; deve sair um bocadinho picante, que o palhete lá o está pedindo.
Sobre o pão torrado corram-se uns bons fios de azeite, se for do A. Herculano é oiro sobre azul.
Deite-se por cima el majado, isto é, o conteúdo no almofariz, e agua a ferver, mas com cautela, que fique enxuto.
Abafe-se, deixe-se abeberar por cinco minutos, venha para a mesa.
Temos uma sopa opipara!
Perdizes á Castelhana — Depennem-se quatro perdizes com todo o cuidado e o maior asseio — a caça fica dissaborosa em se lavando.
Tirados os interiores, mettam-se as perdizes n'uma panella de barro poroso.
Uma cabeça de alho inteira e com a casca, sal, colorau doce e pimenta preta em pó.
Duas chicaras de azeite e uma só de vinagre, quando seja muito forte; tape se a boca da panella com uma folha de papel passento; metta-se no borralho, isto é, onde a braza morde, debaixo da cinza; deixe-se ferver até que o garfo entre com facilidade.
Venham para a mesa os convivas, e se sobrar alguma cousa guarde-se como oiro, porque depois de frio, ao almoço... isto é da gente lhe lamber os dedos!!
Arroz opulento — Se os dois marteleiros metterem na rede vinte, quinze — uma dúzia de codornizes que sejam; se na sociedade houver um caçador jubilado, um immortal companheiro que se chame Lopes Cabral de Medeiros, e trouxer na mala, dentro de uma caixa de lata, um pedaço de queijo parmesão, d'aquelle que faz lagrimas, então o caso é serio!
Aproveitem-se figado, coração e moela; arranjem-lhe um refugado qualquer.
Noutra vasilha mettem-se as codornizes, com umas pedrinhas de sal e cobertas de agua, como para um caldo.
Numa fervura branda, ao cabo de três horas, as codornizes, tenrissimas, estão completamente delidas.
Coam-se por um passador fino. No caldo deita-se arroz. Vae-se ralando o queijo.
Quando o arroz estiver cozido, em boa conta e enxuto, dá-se-lhe graça e côr com uns longes de, açafrão: misturam-se-lhe òs interiores já competentemente guisados.
No momento de se tirar do lume deitam-se-lhe umas boas colhéres de manteiga — sendo fresca sobe de ponto o primor do acepipe. Queijo parmezão com mão larga.
Revolva-se; sirva-se bem quente, e temos um prato capaz de abalar a coragem do mais austero cenobita!
Lebre á Bulhão Pato — Esfole-se a lebre, esfregue-se com pimentão e sal; metta-se na vasilha onde deve estar aproveitado o sangue.
Vinagre forte e de bom vinho; rodas de cebola, alguns dentes de alho, poucos; uma folha de louro.
Como estamos no Monte ha de haver um pedacito de chão tratado de horta e na horta um canteirinho de salsa. Se a encosta próxima for de mato-jardim lá ha de estar o aromatico tomilho.
Venham também uns raminhos de salsa, e um tudo-nada de tomilho.
Passadas doze horas (se forem vinte e quatro não perde) envolva-se a lebre em pranchas finas de bom toucinho.
Espeto com ella;
De quando em quando constipada á corrente do ar; a espaços borrifada com a vinha, e, se, á falta de sercial ou malvasia, algum companheiro previdente tiver trazido uma garrafa de fine Champagne, para cortar a agua por causa das sezões, minutos antes de vir para a mesa borrife-se a lebre com um copito de cognac.
Quente é um assado optimo, e frio um fiambre primoroso.
Aqui ficam quatro receitas.
Agora se n'este inverno, que se annuncia próprio para os caçadores, por esses montes de Christo, um meu camarada, depois de uma boa batida, pozer em pratica algumas d'estas receitas e achar saboroso o guisado, beba um copo de vinho á saúde do seu confrade.
Outubro, 9, 1870, Bulhão Pato (1)
Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro, Album Glórias, 1902 Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
Raimundo António de Bulhão Pato nasceu em Bilbau e morreu no Monte da Caparica (1829-1912), viveu a sua infância no país basco sob os efeitos dramáticos da guerra civil.
Em 1837, a família veio para Portugal, cansada das agruras da instabilidade espanhola, e em 1845 o jovem inscreveu-se na Escola Politécnica, frequentando, desde muito cedo os meios literários, onde conheceu Herculano, Garrett, Andrade Corvo, Latino Coelho, Mendes Leal, Rebelo da Silva e Gomes de Amorim.
Com Herculano estabeleceu uma relação muito especial e intensa bem patente nas suas recordações, através das quais conhecemos muitos pormenores biográficos do historiador.
Como poeta cultivou a influência romântica.
A sua primeira obra é de 1850 ("Poesias"), tendo publicado em 1866 a muito celebrada "Paquita" (depois de ter dado à estampa "Versos", em 1862).
Apesar dos elogios dos seus contemporâneos sobre a sua poesia, em especial de Herculano e Rebelo da Silva, o certo é que será como memorialista de primeira água que Bulhão Pato se afirma.
A sua prolífera criação chegou aos palcos do Teatro Nacional, em pelo menos um original e em traduções de obras clássicas.
Escritor dotado e de pena fácil dedicou-se também ao jornalismo. Amigo de Antero de Quental, sobre este disse: «bem no fundo, Antero foi sempre um romântico. [...]
Sobre a perfeição da verve disse do poeta micaelense [Antero de Quental]: "a língua, que principiava a ser desfeiteada, respeitou-as ele sempre. Percebeu que quanto houvesse moderno, seguindo todas as correntes, numa evolução progressiva, se podia dar dentro dela. Logo na infância a tinha bebido na fonte mais cristalina e abundante, porque fora discípulo de Castilho, quando o luminoso cego abrira o colégio do Pórtico. Na sua obra capital – os "Sonetos" - se pode ver como ele a maneja. Se não conhecesse a língua, não tinha feito aquela obra-prima". [...]
Lembremos sobre Herculano a invocação do Vale de Santarém: "Era plena primavera. Num ramalhete ondeante de loireiros, que sombreavam a azenha, os rouxinóis cantavam e eu julgava ver os olhos verdes de Joaninha, faiscando como esmeraldas, ao escutar os hinos daqueles inovadores alados que, do carinho da noite até à madrugada, improvisam, há milhares de anos, o poema vivo que faz palpitar todos os corações juvenis". [...]
E cabe uma derradeira nota, gastronómica.
Bulhão Pato aparece associado às amêijoas que não são suas, mas uma homenagem do grande João da Matta.
Guilherme d'Oliveira Martins (2)
Ameijoas à Bulhão Pato
Ingredientes:
1kg de ameijoas
6 dentes de alho
1dl de azeite
1dl de vinho branco
1 pitada de sal
1 pitada de pimenta
Piripiri
1 raminho de coentros
1 colher (sopa) de manteiga
Sumo de 1/2 limão
Preparação:
Lave as ameijoas e ponha de molho em água fria durante algumas horas.
Descasque e lamine os alhos e refogue-os ligeiramente num tacho com o azeite quente.
Quando estiver a ficar louro, regue com o vinho branco e junte as ameijoas.
Tempere com sal, a pimenta e um pouco de piripiri.
Aromatize com os coentros e deixe cozinhar com o tacho tapado, até as conchas abrirem.
Nesta altura, retire o tacho do calor e incorpore a manteiga no molho, agitando até derreter.
Regue com o sumo do limão, transfira para uma travessa de servir e decore com coentros. (3)
(1) Plantier, Paul, O Cozinheiro dos Cozinheiros, Lisboa, P. Plantier, 1905, 797 págs.
(2) A vida dos livros in Centro Nacional de Cultura
(3) Petitchef
Leitura adicional:
Illustração Portuguesa, 1906, Lisboa, Empreza do Jornal O Seculo, 1903-
Artes e Letras, 1902 (referências a Bulhão Pato, Paulo Plantier, Miguel Ângelo Lupi etc.), Rolland & Semiond, Lisboa
Obras de Bulhão Pato em Archive.org (ver todas):
Bulhão Pato, Raimundo António de, Memórias, Vol. I, 1894, Typ. da Academia Real das Sciencias, Lisboa
Bulhão Pato, Raimundo António de, Memórias, Vol. II, 1894, Typ. da Academia Real das Sciencias, Lisboa
Bulhão Pato, Raimundo António de, Memórias, Vol. III, 1894, Typ. da Academia Real das Sciencias, Lisboa
Em que se sustenta a afirmação de Oliveira Martins segundo a qual João da Mata é o criador de "Amêijoas à Bulhão Pato"?
ResponderEliminarFernando Miguel
Possívelmente em factos da convivência do historiador Oliveira Martins, seu tio-avô, como o próprio Bulhão Pato, mas só o próprio o poderá dizer.
ResponderEliminarCmpts.
Pois é, "possivelmente". Por ocasião do passamento do poeta, assisti a várias palestras, uma delas em que participou o Oliveira Martins, no C.N.C. Nada lhe ouvi, que sustentasse a afirmação. Se, efetivamente, O.M., sabe o que diz, então deveria provà-lo sempre que o afirma.
ResponderEliminarA questão das "amêijoas..." atribuídas a Bulhão Pato, fica-se sempre põe evasivas, bem como a intervenção do João da Mata nessa "narrativa". Ou se apresentam provas, ou então, há que ser prudente e avisado, e não por o carro à frente dos bois. Uma afirmação, seja ela qual for, carece sempre de justificação.
Do que sei, com os elementos que me é dado conhecer, elaborei este apontamento.
Até ficaria agradado que ae provasse que o delicioso acepipes é da autoria do Patinho.....................
AMO-TE CAPARICA
13/7
BULHÃO PATO!
E, então.........as AMÊIJOAS??!
Escritor, homem de caçadas "de sala e de laboratório culinário....derradeiro sobrevivente do romantismo", como o descreve Alfredo Morais, in "O Cronista", n.º 21 de 27/4/1955, foi, Bulhão Pato, celebrado por Júlio Dantas com um elogio, proferido em 1913, na Academia das Ciências, que sobre ele disse: "Toma em Sèvres e oiro o caldo de galinha das sauteries do Farrobo" e entre preciosos manjares "na sua casa da Torre, servia aos convidados a lebre caçada na véspera ou lebrão marinado em vinho".
A revista semanal "Ilustração Portuguesa", II série, n.º 30, 17 de Setembro, 1906, pp. 193-198, em artigo não assinado, dele refere "...depois da caça a sua paixão é a cozinha, uma cozinha toda de emoções e de colorau picante, uma cozinha declamatória e grandiosa, cortada de especiarias e drogas como um Colóquio de Garcia da Orta, e puxando a lágrima à força de pimentão como um sermão de frade "Lagosta"." Todo o bom português leu um dia a "Paquita", ou comeu, ao menos uma vez na vida, "Lebre à Bulhão Pato", receita que é descrita na revista, tal como uma de cada um dos escritores gastrónomos: Júlio César Machado, Luís d´Araújo, Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida e o padre Raphael Bluteau.
Para além da "Lebre à Bulhão Pato", três outras receitas do poeta são descritas, desta vez, num opúsculo intitulado "Receitas para os gastrónomos requintados - inventadas e executadas por distintos artistas e escritores portugueses", editado pela Compendium em 1944, e transcritas das páginas 15 a 18, das receitas de Bulhão Pato, que Paulo Plantier recolhera, em 1870, na sua obra "O Cozinheiro dos Cozinheiros".
Albino Forjaz de Sampaio, na sua obra "Volúpia, a Nona Arte: a Gastronomia", publicada por Domingos Barreira editor, em 1940, escreve na pág. 51 "....Quando com o grande Ás da Gastronomia que é António Belo, eu ajudei a fundar a Sociedade Portuguesa de Gastronomia, pensei um segundo em criar, como nas academias eruditas, vinte e cinco fauteuils, poltronas à portuguesa, para gastrónomos nacionais e outras tantas para a gastronomia mundial, antiga, moderna ou exótica, poltronas que teriam o nome de escritores da especialidade, cultores da arte, grandes cozinheiros ou gastrónomos somente" e mais adiante "...pode consagrar-se a décima poltrona a Bulhão Pato, grande poeta e gastrónomo notável...". Os virtuais assentos eram vinte e cinco.
Diz-se, por vezes, que as "Amêijoas à Bulhão Pato" seriam um prato com que João da Mata (grande cozinheiro) teria pretendido homenagear o poeta. Azar dos azares! No seu livro "Arte de Cozinha", publicado pela Parceria António Maria Pereira em 1924 (6.ª edição), o mestre cozinheiro não faz qualquer referência às amêijoas mais o seu perfumado molhinho. Frequentes são as alusões feitas a Bulhão Pato, no âmbito da gastronomia, pelos seus contemporâneos. Referências às amêijoas ( “talvez o que ainda o mantém "vivo", já que a sua obra literária, essa levou-a o tempo) associando-as ao poeta - como refeiçoeiro - há, que eu conheça, uma: a de Alberto Bramão, seu amigo, que em "As Últimas Recordações", Lisboa, Oficina da Empresa Nacional de Publicidade, 1950, pp. 61-69, descreve assim a ementa habitual do autor do "Livro do Monte" no restaurante Estrela de Oiro, na Rua da Prata: "um grande prato de sopa de camarão, um prato de arroz com amêijoas e outro de peixe guisado; queijo, fruta e uma garrafa inteirinha de vinho de Torres".
ResponderEliminarAh! Grande poeta, que bem te deverá ter sabido o arroz……… com amêijoas...............
Fernando Miguel
https://www.facebook.com/pages/AMO-TE-CAPARICA/186509761426925?ref=hl
P.S.: Ainda sobre as amêijoas versus Bulhão Pato
ResponderEliminarSe bem que a orientação geral tenda para que não sejam da sua autoria, ou que seriam uma forma de homenagem à sua pessoa ( de João da Mata ou outro….), há algumas referências a Bulhão Pato, na sua relação com a cozinha, que conviria explorar…….. No prefácio à 1ª edição (1875) da “Arte de Cozinha”(teria Bulhão Pato para aí 46 anos), Alberto Pimentel escreve ".....se não há já todos os dias nos dois hotéis do Mata um prato de Bulhão Pato é porque B.P. sempre que pode fugir de Lisboa........" - o que atesta a importância de B.P. no que à culinária respeita. Facto corroborado pelas receitas da sua autoria, incluídas no “Cozinheiro do Cozinheiros”, de Augusto Plantier, e, também, na revista “Ilustração Portuguesa”. Porém, nunca foi dada a conhecer a receita das amêijoas - À Bulhão Pato - como sendo, comprovadamente, da sua autoria. Para baralhar um pouco mais, Alberto Bramão, que no seu livro "Últimas recordações" descreve o menú de um jantar, que fez com B.P. no restaurante "Estrela de Ouro", sito na que é a actual Rua da Prata (restaurante este "onde [segundo este autor] havia sempre indicado na lista um prato que teve fama: Amêijoas à Bulhão Pato"), cita-as sim, mas na companhia de arroz. Porém, há um indício que, porventura, encandeia B.P. às amêijoas (às ditas): Albino Forjaz Sampaio, em “Volúpia a Nona Arte: Gastronomia”, publicado em 1940, portanto 28 anos depois do falecimento do poeta", escreve "....mas não falta quem coma as amêijoas, lhe saboreie a açorda, lhe repita a lebre. Amêijoas à Bulhão Pato é o prato mais gostado, e o mais popular da sua obra gastronómica......"
Foi ou não Bulhão Pato o criador de tão saboroso e perfumado pitéu? Alguma vez o saberemos?...............
Fernando Miguel