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quinta-feira, 17 de julho de 2014

O baile

O vestíbulo da Sociedade em um pequeno compartimento; o bengaleiro no vão de uma escada, estava atochado de chapéus e abafos. Mais adiante junto à porta do salão de festas, uma mesinha: sobre o tampo um gordo livro — as quotas da colectividade.

Sociedade Filarmónica Incrível Almadense.
Imagem: Restos de Colecção

Rondavam dois homens graves e antiquados.

Dupont et Dupond.
Imagem: WillGoTo, © Hergé-Moulinsart 2009.

O Zé mostrou-lhes o cartão de associado, e passámos adiante.

— Ih, que enchente! — fez a minha irmã.
— Que calor!

Dançava-se à meia-luz. A colorir os pares, desciam do tecto dois focos azuis. Um ambiente encantador!

Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, vista parcial do festival, 4 de abril de 1959.
Imagem: Almada Intemporal

— Não se sentam? — perguntou o Zé.
— Quando acabar este fox, furamos a arranjar cadeiras... — esclareceu a namorada. — Está aqui muita gente à espera do mesmo!...

Toda a sala jazia mergulhado na penumbra — somente o cacho de dançarinos recebia a luz dos dois focos. Notei logo a Jacinta, de vestido verde de organdi até aos pés, cintado por uma barra do mesmo tecido.

Bailava nos braços de um rapaz alto, morenaço, colarinho de meia goma. uma figura muito fina.

Beauty and the Beast, Walt Disney, 1991.
Imagem: Gaia Online

— Estão cá rapazes de Lisboa! — disse a minha irmã.
— Ja viste a Jacinta?
— Tá zangada com o namorado... Baila com outro. pra lhe meter pirraça!...

Todo o ambiente era deslumbrante! Os cavalheiros, a resplandecer de brilhantina, engravatados, fotogénicos, trajavam paletós de moderno corte.

Elas, vaporosas, um traço rubro nos lábios, cabelos ondulados, mostravam-se estranhamente favorecidas pelo colorido.

Anastasia, Drizella and Lady Tremaine, Cinderella, Walt Disney, 1950.
Imagem: why so blu?

A atmosfera rescendia a tabaco, suor se perfumes.

— Que luxo, Delfina! Que luxo formidável! — ciciei, preocupada, receosa do nosso trajar.

No palco, os rapazes da orquestra concluíram o fox. Reacenderam-se as lâmpadas do salão, ao mesmo tempo que os focos azuis se sumiam, como que envergonhados de tanta claridade.

Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, baile em 1959.
Imagem: Casario do Ginjal

Desfazendo o abraço, cada cavalheiro conduziu a respectiva dama ao seu lugar, agradecendo num respeitosa meneio de cabeça.

Que curioso! Os pares, agora banhados pela abundância de luz trivial perdiam todo o sumptuoso aspecto quase solene, que a penumbra e o colorido dos focos lhes emprestavam.

Afinal tudo caras conhecidas, corpos sem nada de especial: costureiras, raparigas domésticas, empregados do comércio, operários — umas e outros a trajar com sacrifício.

Nós, as sem cadeiras, furámos em onda, acotovelámos, pisámos os últimos dançarinos, ciosas de lugares.

Mas aparecia sempre qualquer mão a preservar os assentos vagos:
— Esse lugar tem dono!

Ou então:
— Essa cadeira é da minha filha, que foi lá dentro!... — E punham casacos sobre os tampos, amarravam lenços às travessas.

A Delfina, impaciente, tornou-se irascível:
— Seu?! Vossemecê, quando for pra casa, leva a cadeira?!...

Um cadeirão comprido saiu do balcão, em charola, sobre os ombros de dois membros da Direcção.

— Não chega pras encomendas! — disse uma rapariga de óculos, à nossa beira.
Ainda o móvel vinha a aterrar, já uma horda de braços se estendia, num atropelo feroz.

— Vacarronas! — rugiu a minha irmã, fora de si.

Une vache à la rédaction, Franquin.
Imagem: inediSPIROU

Suados, as gravatas torcidas nos peitilhos, as repas desarrumadas nos crânios, os membros da Direcção imploravam calma: "porque, felizmente, a Sociedade ainda possuía cadeiras para os sócios".

A mãe da rapariga de óculos rosnou: — Cadeirões velhos!... Vão buscá-los ao sótão!... Rasguei o ano passado um vestido novo!

Mas vieram mais quatro bancos corridos — e conquistámos assentos.

O pior foram as raparigas da primeira fila, agora relegadas para a segunda ordem de cadeiras:
— Nós chegámos primeiro! A primeira fila é nossa!... Saiam! Saiam...
Venham ca pra trás! — É o sais!...
— Saem, pois! — E, ajoujadas de abafos, abandonavam as posições, lançando mão aos nossos assentos. 

— Aí ninguém se senta! — E gritavam para as que iam adiante: — Reserva... Reserva aí três pra gente...

Anastasia e Drizella Tremaine, Cinderella, Walt Disney, 1950.
Imagem: The Mary Sue

— Alarguem-se! Alarguem-se — berrávamos nós, solidárias, enchendo o cadeirão — Aqui não põem elas o rabo!

— Ó Direcção! — clamavam as logradas.

Puxei a Delfina, já a agatanhar uma magrizela de Setúbal: rr, muitos rr, na sua voz de falsete. A Carminda e a mãe estavam nesse cadeirão — e não fizeram mais do que rir, rir muito.

E a paz e a arrumação só foram possíveis quando o presidente da colectividade, o Sr. Trigueiros, sujeito muito lido e de imenso prestígio associativo, foi ao meio da saia expor "a inconveniência de cenas de tal jaez".

O salão estava decorado de flores artificiais, dísticos, versos alusivos à Primavera. Colchas de seda, emprestados, ernbicavam da galeria. 

O palco não tinha o pano habitual! Um lindo cortinado cor-de-rosa, descida a meio da cena, encobria o quer que fosse na retaguarda.

Na ribalta, uma trupe de seis músicos, trajando à marinheiro. Um letreiro desenhado corria as estantes: "OS MARUJINHOS". (1)

Woodward-Davis Family Band, 1917.
Imagem: TempoSenzaTempo


(1) Correia, Romeu, Trapo Azul, Guimarães Editores, 1953, 231 págs.

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