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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Nossa Senhora da Piedade

Cova da Piedade, igreja Nossa Senhora da Piedade, década de 1970.
Imagem: almaDalmada

No século XIV há várias referências em Almada, desde pelo menos 1366, ao sítio de S. Simão na Mutela, lugar pelo qual era conhecida a actual Cova da Piedade, contudo esta referência pode ter sido apenas uma imagem, nicho ou cruzeiro.

Em 1402, regista-se a primeira referência que conhecemos da Ermida de S. Simão, que confrontava então com uma Quinta dos Padres de S. Domingos de Lisboa, [Quinta dos Frades] actual Museu da Cidade.

Em 1553, numa Visitação da Ordem de S. Tiago, temos a primeira descrição conhecida da ermida, a qual tinha uma orientação e possivelmente localização diferentes da actual Igreja da Piedade.

Em 1574, toma posse da ermida um ermitão, por nome Frei Fernando, o qual adquire novas imagens para a Ermida de S. Simão e nela manda fazer obras com esmolas dos fiéis.

Entre 1582 e 1595, a Casa de S. Simão da Mutela serviu de pequeno cenóbio religioso de irmãos da Ordem Terceira de São Francisco provenientes do Convento de Santa Catarina de Vale Mourol de Santarém, os quais aqui ficaram até se mudarem para uma nova casa, no Vale dos Cardais em Lisboa, depois Convento de Jesus.

Entre as imagens mais antigas, hoje existentes no espólio da Igreja da Piedade, a mais antiga de todas é a de um Cristo arcaico, imagem popular talvez datada do século XVI, as restantes são já, presumivelmente do século seguinte, nomeadamente as esculturas de Nossa Senhora da Piedade, a de Santo António de Lisboa e a do Cristo crucificado, esculpido em madeira brasileira (recentemente restaurada), havendo também duas pinturas seiscentistas, uma representando a Virgem da Piedade e a outra o Evangelista São Mateus.

Tudo indica pois que, ou por devoção do ermitão, como relatam as memórias setecentistas, ou por influência franciscana, o culto de Nossa Senhora da Piedade, devoção profundamente franciscana, e marcadamente pós-conciliar, tenha sido introduzido na Casa de São Simão de Almada no fim do século XVI, de tal modo que já em 1606, devotos de Lisboa decidem aqui erigir uma Irmandade de N. Sr.ª da Piedade, cujo Compromisso tem entre os seus signatários o mesmo Fr. Fernando.

Frontespício do Compromisso da Irmandade da Virgem Nossa Senhora da Piedade sita na ermida de S.Simão de Mutela termo de Almada.
Ordenada no ano de 1606.
Imagem: Rui Manuel Mesquita Mendes

O Compromisso de 1606 fala da devoção à imagem que estava na Ermida de S. Simão da Mutela, mas também refere uma Igreja de S. Simão, não sendo clara a localização de ambas.

Talvez a segunda estivesse então a ser de novo edificada, pois os relatos do século XVIII dizem que "segundo a tradição passado algum tempo sonhou o Ermitão com huma Senhora da Piedade, e fazendo diligencia pela Imagem, com que tinha sonhado, a fora achar em huma casa da Sé de Lisboa, [hoje Basílica de Santa Maria] e pedindo-a se lhe deu; 

Nossa Senhora da Piedade, escultura do século XVII.
Imagem: Paróquia da Cova da Piedade

e trazendo-a para a Ermida de S. Simão, ahi começara a Senhora a fazer muitos milagres, e com esmolas, que concorrerão se fez o Recolhimento com o nome da Piedade".

De facto o referido Compromisso também determina aos seus irmãos que colhessem esmolas para erigir uma nova Capela de abóbada e arco de pedraria, para aí alojarem condignamente a imagem de Nossa Senhora da Piedade.

Em 1609, um novo ermitão, Pe. Jorge Freire, já aparece como Ermitão da Ermida de S. Simão e N. Sr.ª da Piedade.

Em 1616, funda-se de facto o Recolhimento de Nossa Senhora da Piedade para senhoras Beatas, e em 1620 constroem-se casas para os romeiros e para a irmandade.

A partir da segunda metade do século XVII perdem-se as referências de uma igreja e de uma ermida separadas e as descrições do século XVIII (Dicionário Geográfico) falam de várias edificações e de ermitães, mas são inconclusivas quanto a datas…. a certeza porém que, após o Terramoto, a igreja foi reedificada entre 1762 e 1764, sendo a partir dessa data conhecida apenas como Igreja de N S da Piedade! (1)

Mouth of the River Tagus (detail), page from Gentleman's Magazine, Jan 1756.
Imagem: UNIVERSITY ARCHIVES

Estes e outros elementos sobre a Nossa Senhora da Piedade podem ser encontrados no Centro de Documentação de Instituições Religiosas e da Família.
Este serviço, inaugurado em 4 de Novembro de 2012 e integrado no Centro Social Paroquial Padre Ricardo Gameiro (Cova da Piedade), instituição actualmente dirigida pelo Pe. José Pinheiro, pároco da Cova da Piedade, tem por finalidade apoiar as paróquias e outras instituições sociais do concelho de Almada (tendo para esse fim o acordo do Sr. D. Gilberto, Bispo de Setúbal, e um protocolo com a respectiva Comissão Diocesana de Arte Sacra) no inventário, conservação e digitalização do seu espólio arquivístico e bibliográfico.
É um trabalho feito, na sua larga maioria, por uma equipa de voluntários, da qual faço parte, embora com o apoio de profissionais especializados, coordenados pela Dr.ª Alexandra Figueiredo.
Já se encontram digitalizados a totalidade do espólio conhecido das Paróquias de Cova da Piedade e Monte de Caparica, assim como do Jornal de Almada, e encontra-se neste momento em tratamento e vias de digitalização o espólio do Seminário de Almada e da Paróquia de Almada. Outras se seguirão.
Este espaço está situado na Quinta da Ramalha, Cova da Piedade, antiga propriedade rústica também recentemente restaurada, dotada de uma magnífica capela com origens no século XV e reedificada no século XVII.
Fica aqui o convite para uma visita para conhecerem um pouco da nossa história e património. (2)

Adro da igreja Nossa Senhora da Piedade, 1962.
Imagem: AMVC

No da 18 do corrente, véspera da sua festividade annual, se cantará huma solemne Missa, por múzica vocal e instrumental, pela conservação da Precioza Vida de Sua Magestade o Senhor D. Miguel I, Augusto Protector Prepétuo da mesma Real Irmandade, finda a qual se fará a inauguração das Reaes Armas no frontespício da Real Capella do Apostollo S. Simão, onde a mencionada Irmandade se acha erecta (...) pelas Mercês que o Mesmo Augusto Senhor foi servido liberalizar a esta irmandade declarando-Se seu Protector Perpétuo, e concedendo á mesma, e á Capella, em que se acha erecta, o título, Honras e Privilégios de Reaes.

in Gazeta de Lisboa, 18 de agosto de 1830 (3)


Bandeira nacional de Portugal de 1826 a 1830,
Bandeira de D. João V, usada pelos Miguelistas ou Absolutistas.
Imagem: Wikipédia


(1) Rui Manuel Mesquita Mendes, 19 de abril de 2014
(2) Idem

(3) Centro de Arqueologia de Almada, Cova da Piedade, Património e História, Cova da Piedade, Junta da Freguesia, 2012.

Artigo relacionado: S. Simão das Barrocas

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Terras da Costa

Era num juncal sáfaro e ruim. 

Com o céu imundo de nuvens a noite adensava-se. O vento e o marulho do oceano fundiam-se num rosnar cavo e profundo. À distância choupanas de colmo, negras e escorridas, figuravam, pelo cair da tarde, guedelhas, lanuça de maltês.

Pequenas hortas denunciavam a presença de gente em tão ermas paragens. 

Costa da Caparica, vista geral (detalhe), Mário Novais, década de 1940.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Ali, uma mulher talhava regos, abrindo e vedando caminho à serpente de água preciosa, que um homem, balde a balde, içava do poço.

Costa da Caparica, vista geral (detalhe), Mário Novais, década de 1940.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Por vezes, suspendiam a tarefa, e olhavam para as nuvens negras, tão negras de esperança: Chove? Não chove? Deus permita que chova! (1)

A Praia do Sol, Uma vista parcial, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 108, década de 1930.
Imagem: Delcampe

Os "agricultores das Terras da Costa" são um grupo de pequenos e médios agricultores dispersos por pequenas parcelas (sempre inferiores a 1 ha.) ao longo da planície litoral — ocupando cerca de 186 ha. — inserida entre faixa costeira da Caparica e a arriba fóssil que nela desemboca [...]

Os agricultores locais são na sua maioria descendentes de um núcleo original de famílias povoadoras (no final do século XVIII) do local hoje conhecido como Costa de Caparica, famílias oriundas do Algarve e da região de Aveiro e — supostamente — originalmente dedicadas à actividade piscatória.

Especula-se sobre a origem da agricultura nas Terras da Costa, se terá surgido como complemento à actividade piscatória (e portanto realizada pelas mesmas famílias) ou como actividade independente da mesma (hipoteticamente por pessoas oriundas da Trafaria).

A Praia do Sol, As primitivas barracas dos pescadores, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 111
Imagem: Delcampe

[...] a planície das Terras da Costa, junto com os terrenos que a limitam a Sul, terão sido mesmo das últimas áreas a serem povoadas em termos concelhios.

Este facto dever-se-á às mínimas condições de habitabilidade alí verificadas até sensivelmente ao século XVIII, altura em que populações de pescadores terão começado a povoar permanentemente as zonas dunares e pós-dunares.

[...] durante o século XVI deu-se o chamado “grande aterro”, ou seja, o período posterior a uma "pequena idade do gelo" que terminara no século XV, que implicou a subida do nível do mar e consequente açoreamento das grandes barras e entradas de mar ao longo das orlas costeiras, o que alterou significativamente a paisagem local, fomentando bancos de areia e areais na zona posterior ao depósito de vertentes da arriba.

Plan du Port de Lisbonne et de ses Costes Voisinnes (detalhe), Jacques Nicolas Bellin, 1756.
Imagem: Bibliothèque nationale de France

Por outro lado, o terremoto de 1755, para além de provocar inúmeros estragos e perdas, terá ainda implicado um movimento geológico de elevação (emersão) e estabilização da planície litoral onde hoje encontramos a frente de praias, a zona dunar e as Terras da Costa.

Costa ocidental da península de Setúbal, fotografia satélite.

Isto terá permitido a ocupação e utilização de terrenos até então inexistentes – a orla costeira entre a Trafaria e a Lagoa de Albufeira, onde nascerão a Costa de Caparica e, para o interior e Sul, as Terras da Costa.

Em termos gerais, o povoamento da margem sul do Tejo é já antigo: vestígios arqueológicos na chamada Ponta do Cabedelo (ao lado do actual Convento dos Capuchos) evidenciam uma ocupação humana desde o período do paleolítico e indústrias do paleolítico quaternário.

Costa da Caparica, Descida do Cabedelo, ed. desc., década de 1920.
Imagem: Delcampe

[...] as primeiras notícias de povoamento permanente na “Costa do Pescado” datam aproximadamente de 1770, quando alguns grupos de pescadores – que até então migravam sazonalmente do Norte (região de Ílhavo) e Sul (Algarve) em direcção aos extensos areais e alí pernoitavam durante as suas campanhas de pesca – lá se fixaram.

A topographical chart of the entrance of the river Tagus (detalhe), W. Chapman, 1806.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

"Parece terem sido os ilhavenses os que também primeiro ali passaram a viver com carácter permanente; os algarvios regressavam ao Algarve quando acabava a safra.

Ainda em 1770, esta praia era habitada todo o ano por um número muito reduzido de pessoas, e só no ano seguinte ali se fixaram os primeiros "mestres de pesca", dois ilhavenses Joaquim Pedro e José Rapaz e dois algarvios José Gonçalves Bexiga e Romualdo dos Santos — (...) com as suas companhas."

in Oliveira, Ernesto Veiga de, Galhano, Fernando, Pereira, Benjamim, Construções Primitivas em Portugal, Lisboa, Centro de Estudos de Etnologia — Instituto de Alta Cultura, 1969.

Uma constatação frequente nas Terras da Costa é a de que a agricultura lá praticada terá surgido a partir dessa época, por necessidade de subsistência e complementando a actividade pesqueira nos seus períodos de menor produtividade.

Será portanto nesta época que se terá iniciado o progressivo desbravamento de extensos juncais que cresciam nas zonas pantanosas que se formavam entre a arriba e as dunas zonas resultadas da acumulação de águas pluviais e de marés vivas nas diversas depressões dunares.

[...] outro tipo de acções intervieram na constituição da paisagem local, nomeadamente iniciativas individuais e colectivas dos habitantes e trabalhadores locais, que, consoante as suas necessidades e conveniências, foram moldando detalhadamente o seu espaço envolvente, processo contínuo ainda hoje em curso: desde o desvio de cursos de água à terraplanagem de parcelas à plantação de árvores e arbustos...

[...] podemos enumerar os acontecimentos promovidos pelas entidades oficiais que terão sido fundamentais neste processo de "construção paisagística" das Terras da Costa:

Algures durante o século XVIII, D. João V terá ordenado a plantação de pinhais imediatamente a sul da área que nos ocupa, na agora chamada Mata dos Medos, de forma a fixar os medos de areias que invadiam progressivamente a área litoral em direcção à área posterior da arriba (nesta secção já com uma altura pouco elevada), ganhando assim solo produtivo.

Em 1867, a Junta de Melhoramentos Interna terá promovido a construção de valas de drenagem entre a Trafaria e as Terras da Costa, com eclusas de portas automáticas - de forma a melhor aproveitar o escoamento de águas e as marés para eliminar as áreas pantanosas que se acumulavam mais perto da arriba.

[v. Wikipédia: Junta Geral]

Neste contexto, realiza-se em 1883 um termo de contrato entre o Ministério de Obras Públicas, Comércio e Indústria e a Câmara Municipal de Almada para a compra pelo Estado de "(...) todos os terrenos municipais comprehendidos entre a Trafaria até ao extremo do Concelho em toda a parte do littoral, exceptuados tão somente: os comprehendidos dentro das povoações uma superfície de duzentos metros de cada lado Norte e Sul da povoação da Costa, que fica destinada para novas edificações; e uma facha de areias movediças, tendo de comprimento a extensão que vae da Capella de Nossa Senhora da Conceição, na povoação da Costa, até à Fonte da Telha, e de largura a distancia de quatrocentos metros contados à linha de praiamar de águas vivas; facha que fica reservada para os serviços de pesca."

Esta aquisição visava prolongar os trabalhos iniciados em 1867 e inseridos, provavelmente, em campanhas de higiene pública e de ordenamento do território nacional: "(...) tendo sido reconhecida a necessidade de dessecamento do pantano da Costa n’aquelle Concelho e da arborização dos areiaes da Trafaria e Costa de Caparica para os fins de remover as causas da insalubridade d’aquella região e de crear ali uma extensa matta para protecção das margens do rio e barra e para impedir o augmento dos açoriamentos (...)."

A propriedade estatal destes terrenos ainda se mantém parcialmente no dia de hoje (sob gestão do Instituto de Conservação da Natureza), e é sobre o que resta dessa propriedade que alguns dos agricultores que ocupam este trabalho habitam e trabalham...

Ainda na sequência destas campanhas, procede-se em 1929 à demarcação por parte do Ministério de Agricultura dos terrenos estatais – definidos no termo de compra de 1883 (ver citação acima) o que permitiu o levantamento das áreas que pertenciam tanto ao Estado como à Câmara Municipal de Almada como ainda a proprietários privados (donos de terrenos precisamente fora da jurisdicção decidida no termo de compra de 1883).

Já nos anos 50 do século XX verifica-se o melhoramento do caminho que ligava a povoação da Costa de Caparica à já referida Descida das Vacas, atravessando precisamente os terrenos adquiridos anteriormente pelo Estado.

Este caminho – hoje Estrada Florestal – foi construído pelos Serviços Florestais locais com mão-de-obra local (alguns dos que então participaram na infraestruturação rodoviária ainda hoje vivem), tendo sido macadamizada entre 1956 e 1957.

Neste mesmo ano, e na sequência deste empreendimento, será construída a ponte sobre a Ribeira do Rego.

Estes empreendimentos revelar-se-ão fundamentais em termos de comunicação e transporte de pessoas e mercadorias, assim como do próprio trabalho dos Serviços Florestais locais em termos de fiscalização e manutenção das áreas arborizadas.

Sensivelmente na mesma época, ter-se-á promovido uma complexa operação de fixação das dunas da faixa litoral a sul da Costa de Caparica, paralelas à já referida Estrada Florestal – um empreendimento motivado pelas mesmas razões que as campanhas realizadas no século anterior: impedir o avanço da zona dunar e ordenar o espaço interior.

Esta fixação, na qual participaram activamente os habitantes locais (proporcionando força humana e animal), consistiu essencialmente na plantação ordenada de acácias ao longo das dunas, árvores exóticas que se adaptaram perfeitamente ao clima eminentemente marítimo e ao solo arenoso, manifestando uma alta capacidade de colonização, marcando a paisagem que hoje observamos.

Costa da Caparica, Uma Rua da Mata, ed. Passaporte, 27, década de 1960.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Em termos concelhios, este desenvolvimento traduziu-se numa reorganização política e administrativa, onde a original freguesia da Caparica foi sucessivamente seccionada para dar lugar ao nascimento da freguesia da Trafaria (nos anos 20 do século XX) e da freguesia da Costa de Caparica (muito mais recentemente, em 1949). Neste contexto, a vila de Almada foi elevada a cidade em 1973, enquanto que a Trafaria e a Costa de Caparica foram elevadas a vila em 1985).

Na Costa de Caparica, este período caracterizou-se pela construção sucessiva da bairros inteiros, desde o Bairro de Santo António (entre a Costa de Caparica e Trafaria) nos anos 30 até ao Bairro do Campo da Bola (nos anos 70 do século XX, no seguimento das expropriações efectuadas aquando da construção da Ponte Salazar) e o Bairro dos Pescadores, inaugurado ainda nos anos 60 na sequência de investimentos vários efectuados pelas instituições locais e nacionais para a melhoria de condições de trabalho e habitação dos pescadores locais.

Tendo sido decretada "estância de turismo" em 1925, a Costa de Caparica rapidamente se transformou num dos mais importantes lugares de veraneio da região de Lisboa.

Costa da Caparica, vista geral, década de 1980 — 1990.

[...] Em relação à prática agrária propriamente dita, a recolha por nós efectuada permitiu-nos não só elaborar uma caracterização da realidade local actual mas também incorporar a través de testemunhos vários elementos de práticas “antigas”, isto é, escolhas e metodologias que pelas mais variadas razões foram caindo em desuso.

[...] Assim, em termos gerais, o que se verificava até sensivelmente a primeira metade do século XX nas Terras da Costa era uma agricultura realizada em "maceira", isto é, nas áreas dunares – que invadiam a plataforma litoral.

Este tipo de cultura é tido como oriundo da região centro e norte do país (Póvoa de Varzim, inicialmente, e posteriormente a região da Ílhavo, onde ainda se encontrarão vestígios dessa prática (facto que constitui um argumento a favor da ideia da origem piscatória dos primeiros agricultores locais) [...] e caracterizava-se por esse aproveitamento das zonas dunares através de uma horticultura intensiva, beneficiada pelo solo (obviamente) arenoso, pela protecção e abrigo das dunas e pelo aproveitamento de matéria orgânica específica para adubação...

[...] registamos nas Terras da Costa várias estratégias de desenvolvimento de empresas agrícolas.

O formato tradicional, ainda recorrente, são estruturas sócio-económicas de tipo familiar, perpetuadas em processos de transmissão, onde o núcleo familiar se organiza fundamentalmente em redor da produção agrícola, complementando tarefas de produção, transporte e venda das colheitas.

Vários núcleos habitacionais apresentam actualmente este formato; outros no entanto resultam de evoluções similares, onde alguns elementos da família partilham residência mas não participam na lavoura, optando por empregos na área dos serviços ou construção civil na Costa de Caparica, Almada ou Lisboa.

Nestes casos, verifica-se o desenvolvimento de núcleos habitacionais complexos onde coabitam famílias alargadas (ou várias famílias nucleares) de descendência comum, onde apenas um grupo restrito se dedica à exploração das parcelas.

Assim, e dado que estamos a falar de pequenos e médios agricultores, existem nas Terras da Costa muitos casos de empresas de carácter unipessoal ou familiar - onde marido, mulher e eventualmente filhos trabalham em equipa na exploração agrícola.

No entanto, no caso das gerações mais jovens o interesse pela actividade agrícola não é tão generalizado, preferindo aquelas a continuação da formação escolar ou o emprego noutras áreas. Este tipo de factores, que produzem um “desequilíbrio” em termos de manutenção de força de trabalho, obrigam a recorrer a mão de obra assalariada mais ou menos permanentemente. 

Noutras palavras, aqueles que não conseguem "dar conta do recado" em termos de "braços" são obrigados a recorrer a estratégias alternativas, que passam por essa contratação de mão de obra ou acordos de entreajuda entre a vizinhança ou amizades.

É neste contexto que vemos muitos cidadãos oriundos de países estrangeiros, desde as ex colónias portuguesas à Europa de Leste à procura de trabalho (mais ou menos ocasional) nas Terras da Costa, mesmo apesar das eventuais dificuldades de comunicação (sempre ultrapassadas).

Por outro lado, também é neste contexto que se verificam alguns fenómenos de associação (na maior parte das vezes informal) entre agricultores de forma a melhor explorar as parcelas agrícolas, suprindo carências pontuais e correspondendo a eventuais conveniências.

[...] a construção da Ponte Salazar permitiu um escoamento mais eficaz dos produtos locais para o grande mercado consumidor lisboeta; neste sentido, se há três ou quatro décadas colocar hortaliça fresca de manhã, por exemplo no Mercado da Ribeira ou no Martim Moniz, implicava um empreendimento que começava à meia noite do dia anterior, hoje em dia pode ser feito em apenas uma hora...

Antes, o transporte era feito com tracção animal até Porto Brandão e Trafaria — e mais recentemente Cacilhas — apanhando-se depois o barco (que evoluiu do batel a vela ao barco de vapor e, finalmente, ao cacilheiro) que fazia regularmente a travessia do rio Tejo. Conta-se que, naqueles tempos, o tempo era escasso para percorrer o trajecto entre a chegada do barco a Lisboa e a hora de fecho do abastecimento do mercado, pelo que frequentemente se desenvolviam correrias e galopadas pelas ruas da Baixa lisboeta, de forma a não transformar a viagem num empreendimento em vão...

Relatos por nós recolhidos situam a chegada do primeiro tractor às Terras da Costa por volta dos anos 30 ou 40 do século XX; na região da Caparica existiriam poucos (embora já desde o início do século), pertencentes ora ao Sindicato Agrícola ora a particulares com algum poder de compra.

Eram alugados pontualmente para realizar trabalhos mais pesados; hoje em dia a maior parte dos agricultores possui tractor, essencial para lavoura, sementeira, etc.

A utilização de técnicas de adubação tradicionais, como a estrumação (cavalo ou vaca), a queima, a utilização de pescado miúdo (petinga, etc.) – que se espalhava sobre a terra e se deixava secar, sendo posteriormente "enterrado" — ou o "arejamento" (dar a volta à terra, enterrando a camada exposta), embora persistam em alguns casos, foram complementadas ou substituídas por aplicações químicas, modificando precisamente a capacidade de controlo do agricultor sobre a sua terra e o seu produto.

Há algumas décadas, este tipo de fertilização era muito frequente, dada a abundância de peixes e espécies marinhas na costa da Caparica, e consequentes excedentes resultados da faina piscatória, que os agricultores adquiriam por um preço simbólico ou até a troco de hortaliça ou de graça.

Por outro lado, a abundância de gado vacum e de espécies equinas — instrumentalizados na lavoura — permitia acumular estrume suficiente para aplicar sobre as parcelas.

A progressiva mecanização da prática agrária, no entanto, tornou cada vez mais desnecessária (dum ponto de vista economicista) a existência de espécies animais nas Terras da Costa, reduzindo-as na actualidade a "mínimos".

Em relação à "manutenção" das culturas, encontra-se generalizado o uso de pesticidas (contra ácaros, etc.), fungicidas (míldio) e herbicidas, produtos de empresas multinacionais como a Bayer, Monsanto, Zéneca ou a Agroevo (Schering) aplicados manualmente durante o crescimento das culturas — processo resumido pelos agricultores locais no verbo "sulfatar". (2)




(1) Correia, Romeu, Calamento, Lisboa, Editorial Minerva, 1950.

(2) Blanes, Ruy de Llera, Caracterização Sócio-Cultural dos Agricultores das Terras da Costa, Lisboa, 2003.

Artigos relacionados:
A costa no século XIX
Caparica, 1923


Leitura adicional:
Cultura Avieira
, Folhas Informativas: Os palheiros da Costa...
Noutra Costa da Caparica