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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O Caramujo, romance histórico (14/18), pedido de casamento


PEDIDO DE CASAMENTO



Rocha do conde de Óbidos (e convento dos frades Hospitalários e forte de S. João de Deus),  Alfredo Keil, 1884.
Imagem: Restos de Colecção

Na madrugada do dia 24 de julho de 1833 toda a tropa que occupava Lisboa, em numero de mais de 6:000 homens, se retirou para o Campo Grande, e pouco depois a cidade sublevou-se acclamando o novo systema de governo.

Abriram-se então todas as cadeias, sairam os presos politicos e civis, e tambem Luiz Franco, o qual, apenas se viu solto, partiu para o Caramujo, sendo recebido por Antão Diniz, por sua criada Ignez, e por todos os seus amigos da Outra-Banda com testemunhos do mais completo contentamento.

O perigo imminente de morrer enforcado, e tres annos de prisão quasi completos, tinham-lhe enervado o corpo e o espirito, mas não tinham diminuido sequer um apice do seu affecto por Mathilde, nem esta lho queria menos; ao contrario, mais interessante se lhe afigurava agora, ennobrecido como estava pelas desgraças de que fôra victima.

Franco, em vez de se aproveitar da mudança politica e dos seus soffrimentos para obter um emprego, como muitos fizeram com menos direitos e habilitações, e mesmo sem nenhuma d'estas qualidades, não só o não fez, senão que até abandonou de todo a carreira de cirurgião militar limitando-se a exercer a sua profissão na Outra-Banda, o que apenas lhe dava com que passar parcamente.

Botelho era a antithese d'estas aspirações modestas, porque, não se sabe com que artes, conseguira que o novo governo o transferisse para o corpo diplomatico como secretario de embaixada, para ser convenientemente collocado apenas acabasse a lucta.

Dizia-se que de certo tempo por diante deixára de ser realista e se lançára no partido constitucional, guerreando a causa de D. Miguel de maneira importante pelos meios que lhe proporcionavam as funcções do seu antigo emprego na secretaria da guerra. Se assim foi, teve bastantes companheiros, que como elle só deixariam de bem merecer o epitheto de traidores, se houvessem procedido por convicção e sem a mira no vil interesse.

O caso é que Botelho nunca tinha largado a casa de Diniz; e de tal modo se houve sempre, que logrou captivar-lhe o animo, e mesmo a amisade de Mathilde, que o tratava como se fora seu irmão.

A nova posição que lhe foi dada pelo governo do Imperador esfriou um momento estas relações, mas Botelho já esperava isto, e tinha-se preparado. Por isso, quando a tempestade rebentou, arrostou-a com tanta perícia, que Diniz e D. Francisca pareceram satisfeitos, e chegaram até a louvar o seu procedimento.

Quanto a Gomes nunca mais foi visto no Caramujo, e pouco depois da sua ingratidão para com Franco tinha partido para o cêrco do Porto no regimento novo, que se formára do casco do 4 de infanteria.

A mudança politica, que foi vantajosa para Botelho, não prejudicou em nada a Antão Diniz, que pela sua edade e excellente caracter estava a coberto de desgostos politicos, principalmente na Outra-Banda, onde era idolatrado; assim como não prejudicou a Chrysostomo, que continuava na sua aula de primeiras lettras, não sem ouvir de vez em quando algumas allusões da tia Libania, e de um ou outro dos seus amigos constitucionaes, o que fazia sair de si o professor, que se desforrava com uma saraivada de improperios, mas acabava tudo em rizadas, porque elle era na verdade boa pessoa.

No cais do Tejo, Alfredo Keil, 1881.
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

Espanta-maridos esse andou por Lisboa á testa de um grande pelotão de marujada, bebeu muito, enrouqueceu a cantar hymnos, deu muitos tiros para o ar, salvou a vida a dois desgraçados que não conhecia e que o populacho queria matar, e no fim de tudo chegou a casa da tia Libania cançado e moido, dizendo que nunca se divertira tanto em toda a sua vida, e contando muitos episodios tragicos e burlescos, com que entretinha as noites os pandegos da Outra-Banda, de quem era a alma e o centro, desde a morte do Faria.

— Ah meus parceiros! dizia elle n'um domingo de tarde conversando com os seus pandegos na praia do Caramujo. Vossês ignoram quanto pode o amor da liberdade. Saibam que na manhã de 24 de julho muito cedo veio procurar-me o piloto do Conceição Flôr de Maria, e disse-me:

— A guarnição de Lisboa fugiu, o povo está sublevado; hoje entrou do Havre um navio inglez com fazendas francezas á consignação de meu pae e do inglez seu socio; no porto não ha auctoridades, policia, nem fiscalisação; os negociantes são como os padres, não perdem occasião. Trata-se de passar esta noite a carga para terra sem pagar direitos. Queres ajudar?

— Prompto, disse eu. Mestre mandar, marinheiro fazer.
— Bem, disse o piloto. Por ora guarda segredo. A tripulação ninguem a contem a bordo, todos querem ir a terra. Toma dinheiro, e vae com elles. Divirtam-se, mas não m'os deixes embebedar, e trazem'os todos á noite para começarmos a faina.

— Dito e feito. Recebi tres moedas em bons pintos, e eis-nos em terra, e entrando formados pelo Arsenal da Marinha. Armámo-nos, enchemos de polvora as patronas, e toca pela cidade aos tiros e ao vivorio. Isto até quasi á noite.

Já lhes contei o que se passou n'aquelle dia; mas de tudo o que mais notavel achei foi um grupo de judeus que davam grandes vivas, e que sempre appareciam com armas diversas. Ora eram clavinas, ora traziam espingardas, ora appareciam de refles. Aquillo, quanto a mim, era deposito de armas que andavam a fazer para negocio. Emfim tratavam de ganhar a vida a seu modo!

Á noite fomos todos atrás de Nosso Pae, que ia da Encarnação para um ferrageiro que por equívoco tinham ferido mortalmente lá para a Patriarchal. Não se cantava o bemdito, todos cantavam o hymno com acompanhamento de muitas musicas. Eramos mais de 2000 pessoas. Depois toca a cear, e vim com a maruja para bordo, com os armamentos, já se sabe.

O navio inglez estava fundeado muito á terra defronte das lamas da Boa-Vista, onde ha os estaleiros. Os tres escaleres d'elle e os tres do Flor de Maria não fizeram até á alvorada senão descarregar fazendas para um dos taes estaleiros. E assim vieram para terra 160 contos de fazendas francezas sem pagarem direitos.

Nunca me ha de esquecer o enthusiasmo do meu antigo patrão e do seu socio inglez no outro dia depois da descarga. Berravam como touros — Viva a Carta e a Rainha!

— Mim sêrre muite amigue de liberredade — dizia o inglez no Café Grego do Caes de Sodré. Mim e mi socie darre 20 libres pârre luminacione in cáes á note. Morre despotisme!

E todos aos abraços a elle, e a populaça mal informada a gritar "Viva o negociante inglez!" Ah! ah! ah!

— Depois quando me despedi d'elle disse-me:

— Good bye! Vocemecê senhorre Espante-marrides, seje semprre muite liberrale. Mim digue a vocemcê — que no ha nade pârre gente sêrre muito satisfeite côme é liberredade e constitucione.

— Cem libras foram o premio de tanta fadiga para as tripulações dos dois navios. A mim couberam-me seis, e ellas aqui estão — disse elle, fazendo tilintar o dinheiro na algibeira.

Em quanto Espanta-maridos assim folgara, na praia, e interrompendo-se a cada sorriso e bichancros para a sua querida Felizarda, que de vez em quando o vinha observar das janellas de seu amo Antão Diniz, estava este na sua sala conversando com a familia e Botelho.

Paul da Outra banda, Pântano, Vista do Alfeite, Charco de Corroios, José Malhoa, 1885.
Imagem: Blog do Noblat

Nunca Botelho se mostrara tão affavel como então. A matéria em que se discorria era agradavel: fallava-se em casamentos, e citaram-se alguns de pessoas conhecidas da Outra Banda, que haviam sido muito felizes.

— É verdade, dizia Diniz. Mas sendo os casamentos felizes uma excepção, e sendo os infelizes um verdadeiro inferno, não se póde dizer que o estado de casado seja bom. É necessario, mas nem tudo o que é necessario é bom. Não fallo de mim, porque eu e a sr.a D. Francisca somos dos exceptuados.

— Assim é, disse Botelho; e os meus maiores desejos são de que a sr.a D. Mathilde possa um dia dizer o mesmo. — Obrigado, respondeu Mathilde. E acrescentou, lembrando-se de Franco e fazendo-se muito vermelha: Parece-me que se pode esperar ser dos exceptuados quando o marido é da livre escolha da mulher e da approvação dos paes d'ella.

— Que desvio tão impertinente que vae tendo a conversação, disse D. Francisca em voz baixa a Diniz, que se occupava em examinar uns cravos collocados sobre a jardineira n'uma jarrinha do Japão — e fazendo com os olhos um signal a Mathilde, que ella não percebeu.

— Animo! dizia comsigo Botelho. A occasião é quasi de todo calva, e ella ahi vem a passar: se não agarro a unica madeixa que lhe resta, foge-me, e quem sabe se passará outra vez.

— Senhora! respondeu elle. Eu considerar-me-hia o mais feliz de todos os homens se podesse ser o objecto d'essa escolha.
— Ah!... exclamou Mathilde, fazendo-se pallida, e não acertou em dizer mais nada.

D. Francisca e Antão Diniz, que estavam muito longe de esperar ouvirem estas palavras, ficaram estupefactos olhando para Botelho.

Quanto a este observava com a maior impassibilidade o mau effeito que fizera a sua declaração, julgando ter-se enganado agarrando a Tolice em vez da Occasião.

Esta scena muda não podia durar muito; e Diniz ia responder com certo azedume, quando um novo personagem o veio tirar da difficuldade.

— Dão licença? Disse a voz de Chrysostomo, e immediatamente entrou o seu proprietario.

Chrysostomo, não vendo na escada o criado, que se tinha ido juntar ao rancho dos pandegos de Espauta-maridos, subiu, chegou até á porta da sala, e ouvindo a voz de Botelho não puzera duvida em entrar, vista a familaridade com que Diniz o tratava, e chegou muito a tempo para evitar que a conversação terminasse do um modo desagradavel para todos.

Ficou porém muito admirado do ar glacial que observou no rosto dos seus amigos, e como tinha grande susceptibilidade, pensou que estariam agoniados por se terem passado alguns dias sem os visitar.

— Bem sei que V. Ex.as, disse elle, me devem considerar como um grande grosseirão pela ausencia que tenho feito; mas se deixei de apparecer é porque tenho andado adoentado, por isso mereço desculpa. — E acrescentou: — Muito estimo ter encontrado o sr. Botelho, mesmo porque estava desejoso de saber novidades do theatro da guerra. Botelho respondeu: São boas para a causa da sr.a D. Maria II, e más para a causa do sr. D. Miguel, que considero perdida, porque não ha situação politica que possa resistir á perda das duas capitaes do reino e da marinha de guerra, principalmente quando as primeiras nações da Europa lhe são hostis.

— Eu tambem o entendo assim, disse Antão Diniz, procurando desvanecer a má impressão que lhe havia causado a declaração de Botelho a Mathilde.

O sr. D. Miguel era inferior á sua posição; precisava por isso de algum homem de altas qualidades por quem se deixasse guiar. Mas desgraçadamente desconheceu esta necessidade. Portanto, entregue a a si, afastou os sabios e rodeou-se dos ignorantes, que abusaram da sua insufficiencia e o perderam.

Lembra-me de um régulo de Africa, que era cóxo, e os seus fidalgos fingiam-se mais cóxos do que elle. Assim acontece sempre. Quando os chefes de um povo procedem com sabedoria, os seus ministros e conselheiros procuram excedel-os e governam bem; mas quando procedem de modo ditferente, os ministros e conselheiros ainda são peiores e governam mal.

O resultado então, entre as nações cultas, é a prompta mudança de rei e de governo; mas esta mudança não se faz sem muito sangue do pobre povo. N'isto que digo não sou suspeito, porque todos sabem a minha dedicação pelo sr. D. Miguel; mas a verdade primeiro que tudo.

A conversação ainda durou mais algum tempo, até que Botelho, fazendo-se-lhe tarde para se retirar a Lisboa, se despediu até ao dia seguinte.

Tendo saido Botelho, Diniz e D. Francisca contaram a Chrysostomo o que se havia passado com elle. Ficou Chrysostomo aturdido com o atrevimento de Botelho; e em presença d'este caso, e vista a muita amisade que tinha á familia de Antão Diniz, não duvidou contar-lhe os amores de Botelho com Josephina, pedindo-lhe o mais inviolavel segredo a respeito da pessoa que os tinha informado.

Não faltou Botelho no dia seguinte em vir ao Caramujo, onde foi recebido só por Antão Diniz e sua mulher. Depois de conversarem algum tempo sobre coisas indifferentes, fallou Antão Diniz muito de proposito da sua estada no Rio de Janeiro, quando era capitão do antigo regimento 18, e disse:

— N'esse tempo salvei a vida a um alferes do meu regimento, que, vivendo amancebado com uma linda mulatinha da rua do Hospicio, foi pedir em casamento uma menina branca, filha unica de uma honesta familia; e sabendo-o a mulata, mandou-o esperar por dois capoeiras para o matarem, e já um d'elles o tinha deitado no chão com uma marrada, quando eu cheguei, e os fiz fugir as pranchadas.

Que lhe parece, sr. Botelho, o procedimento do tal alferes?

Natan pune David, gravura, Julius Schnorr von Carolsfeld.
Imagem: Wikipédia

Botelho, apezar de toda a sua presença de espirito, fez-se livido como um cadaver, percebendo que , Diniz estava inteirado do seu viver, que elle tinha tão cuidadosamente occultado; e saiu pouco depois cheio de odio contra Chrysostomo, a cuja indiscrição attribuia a allusão de Diniz.


Silva, Avelino Amaro da, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863, 167 págs.

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