Páginas

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Ramalho Ortigão, verão de 1886

Cartas portuguezas*

Cova da Piedade, 22 de outubro [de 1886]

Escrevo-lhes estas linhas de uma pequena, mas bem interessante povoação, aonde vim passar o verão.

Cacilheiro, D. Carlos de Bragança, aguarela, 1893.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

A Cova da Piedade fica ao sul do Tejo, a vinte minutos da ponte dos vapores, na estrada de Cacilhas a Cezimbra. Da bacia da Piedade faz parte a praia do Caramujo para léste, e para oeste o lindo e fértil valle de Mourellos, todo elle um pomar, em que a bella uva trincadeira, de bagos grossos e duros como cerejas, amadurece em enormes cachos, por entre as romanzeiras, as figueiras moscatel, as macieiras e os medronheiros cobertos de fructo. É uma terra abençoada para a producção. N'uma estreita nesga de quinta, uma familia habilidosa e diligente vive n'um confortável commodo burguez sem outra renda além da que resulta do cuidadoso amanho da sua vinha e da sua horta.

Cova da Piedade, zona rural, Francesco Rocchini, anterior a 1895.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Não se faz vulgarmente idéa do gráu de intensidade a que se póde chegar na cultura, porque a verdade é que em geral a terra portugueza produz como muito bem quer. Ainda ha muito pouco tempo principiámos a estrumar as vinhas, mas os cuidados de que a cepa é objecto, estão ainda a uma distancia infinita d'aquelles que se lhe consagram, por exemplo, nos vinhedos do Rheno. De sorte que, apparecendo um proprietario entendido e zeloso, assíduo ao trabalho, vigiando elle próprio dia a dia a sua vinha, curando por assim dizer a cacho por cacho, suspendendo aqui, amparando acolá, abrigando n'uns sitios, desparrando n'outros, pondo estes cachos á sombra e expondo aquelles ao sol, torna-se enorme, no pequeno terreno assim tratado, a differença remuneradora no lucro.

Ha nas visinhanças duas grandes quintas reaes : a quinta do Alfeite, pertencente a el-rei, e a da Amora, tambem chamada da princeza, pertencente ao Sr. infante D. Augusto.

Nenhuma d'estas propriedades póde infelizmente considerar-se um modelo de cultivo. São meras quintas de recreio, no triste sentido portuguez d'esta infeliz expressão.

O Alfeite é quasi inteiramente um parque, parque enorme, principalmente ensorabrado de pinheiros mansos, arruado por entre moitas de giestas, de tojo e de rosmaninho, d'onde rompem, atravessando os caminhos, ao ruído de passos, as abaladas de coelhos. Desde que, sendo os príncipes crianças, a rainha aqui passou com elles alguns dias para os curar de tosse convulsa, nunca mais — creio — tornou o Alfeite a ser habitado por pessoas da familia real, e o palácio é apenas um descanço de caça para as rápidas excursões venatorias de suas altezas, quo nos bons dias de inverno aqui vêm, ás vezes, dar alguns tiros aos coelhos ou ás gallinholas.

Paço Real do Alfeite, Aguarela, Enrique Casanova
Imagem: Cabral Moncada Leilões

A quinta da Princeza, na Amora, que o Sr. D. Augusto recentemente alargou com a compra de terras adjacentes, construindo uma nova e grande casa de habitação no alto chamado de Cheira-ventos, é uma bella propriedade do seculo passado, entrecortada de jardins de murtas, de restos de cascatas, a que cahiram os velhos embrechados, e de antigas escadarias de pedra, hoje desconjuntadas pelos escolrachos e cobertas de musgo. Tem sombras espessas, doces meandros de alameda, platanos magníficos, e á beira da agua que a cingo n'um d'esses longos e contorcidos bracejamentos do Tejo, nos espraiados da margem esquerda, perto da confluência do Coina, um grande lago com as ruinas de tres ilhas, a que cahiram as pontes, a com um viveiro de peixes, separado do Tejo por adufas de represa. N'outra vertente da propriedade, ha vinhedos de optimas castas, comparaveis ás do Lavradio, algumas terras de semeadura e pomares dè larangeiras. Creio, porém, que o infante Sr. D. Augusto não tem por esta quinta predilecção mais vivamente manifesta, que a de seus parentes pelo Alfeite. O palácio de Cheira-ventos, inteiramente deshabitado, acha-se por mobilhar desde que foi concluído, e os ventos do logar, n'uma exposição magnífica sobre Lisboa, sobre a enseada de Seixal e sobre as colunas, acastelladas de Palmella e de Cezimbra, são cheirados apenas por meia duzia de poldros e por tres ou quatro éguas de criação, em pastagem nas terras de Sua Alteza.

Palácio da Quinta da Amora, Cheira-ventos, 1899.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Durante a mocidade de nossos paes, a Cova da Piedade foi celebre pela casa de pasto do antigo Escoveiro, theatro de memoráveis noitadas de amor e de batota.

Botequim de Lisboa no século XIX, Alberto de Sousa, 1924.
Imagem: Museu da Cidade de Lisboa

O pretexto da concurrencia ao Escoveiro era a sua afamada sopa de camarões e os salmonetes, que elle preparava do um modo especial, mettendo-os no forno envoltos n'um papel com manteiga, e servindo-os em sumo de limão, polvilhados de pimenta. Uma belleza! Comidos os salmonetes, armava-se a mesa do monte e muitos dos estroinas celebres da terrível Lisboa de ha trinta annos abancavam ao jogo até o outro dia pela manhã. N'uma noite que lhe deveria ter ficado de memória, o pobre Escoveiro deixou as caçarolas, para ver a jogatina, em que se faziam, paradas de cincoenta moedas, e arriscou de porta um cruzado novo. Cruzado novo foi elle, qua puxou atraz de si para o panno verde, dentro de pouco tempo, toda a linda fortuna que o Escoveiro accumulara om longos annos de sabia economia e de lucrativa gloria culinária. O infortúnio do estalajadeiro destingiu lugubremente na estalagem, e toda clientella — noivados, que por vezes vinham aos sabbados com os padrinhos, os parentes e os convidados celebrar os bodas com um jantar; raparigas alegres, rapazes patuscos, simples burguezes, pacatos amantes da boa mesa, e os próprios batoteiros, — fugiu, como de um lugar sinistro, da assignalada casa do Escoveiro arruinado Ainda hoje, depois de tantos annos, o prédio respectivo, á entrada da estrada de Cezimbra, sempre fechado, de frontaria apalaçada, mas ennegrecida, tem como um ar de desgraça.

Extinto o Escoveiro, veio o José [Joaquim?]dos Melões, e as merendas populares suecederam-se aos jantares e ás ceias da burguezia romântica.

No Lazareto de Lisboa, Joaquim dos Melões, Rafael Bordalo Pinheiro, 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Hoje, o logar é um considerável centro industrial, com uma grande officina da moagem a vapor e quatro fabricas de rolhas, no sitio do Caramujo. Ha abastados agricultores, intelligentes e instruidos, tomando a terra a serio como Pompeu Dias Torres, que amanhece a anoitece a cavallo, e percorre quotidianamente a área de toda a sua lavoura, dirigindo em pessoa as cavas, as mondas, os varejps, as podas, as vindimas, as lagaradas, as cortimentas, todos os serviços emflm da grande lavra; e como Paulo Plantier, que na sua quinta do Pombal fabrica o mais especial vinho branco da região e as mais bellas rosas de todo o paiz, em rosaes de dez mil pés, cingidos de sementeiras preciosas de morangos e de melões da mais fina e delicada selecção horticola.

Além d'estes elementos de actividado o de riqueza local, quasi todas as pequenas casas da população indígena da Piedade são, mais ou menos, restaurantes campestres, com a taberninha á frente, o retiro bucólico ao fundo, com a mesa de jardim debaixo do parreiral ou do aboboreiro, e o terreno para o jogo da malha ou do chinquilho, a um lado da horta. Porque não ha dia lindo, com céu azul, quer de verão, quer de inverno, em que uma alegre burricada ou uma cavalgada impetuosa não passe com os respectivos cavalleiros aguçados de appetite pelo ar vivo do campo, uns ávidos de coelho guizado, de fritura d'ovos e chouriço, e de salada de pimentas, outros sequiosos da frescura de um melão maduro e da espuma vermelha do vinho palhete de Santa Martha ou do S. Simão, sugado pela chupéta ao batoque do casco e decilitrado ao pé da mãi.

Os estudantes e os caíxeiros preferem nas excursões equestres os esgalgados o escancellados cavallos de Cacilhas, aos quaes elles se impõem o dever sagrado de tirar em duas horas de gineta as manhas de uma vida intoira de mortificação e de jejum.

Os mestres d'officios com suas mulheres, os pequenos logistas com as sua. famílias, as coristas do theatro do Recreio ou da Trindade com os músicos ou com os poetas seus amigos, as costureiras e as cocottes com os seus companheiros, optam pelos burrinhos, em cujos albardôes o guarda-pó do cavalleiro, enfunado ao sopro, da brisa, e as bamboloantes botinas da dama, descobertas até o ultimo botão, são logo dopois de montar um começo auspicioso de festança. E na minha qualidade de paizagista eu bemdigo os que continuam a ser pela velha tradição da burricada cacilheira, porque não ha cousa que mais avivente e alegre o macadam poeirento, faiscante de sol, entre os aloés e as oliveiras alvacentas da beira das estradas, do que essas luminosas manchas movediças de guardas-sol brancos, azues e vermelhos, trespassados de sol, por baixo das quaes tremeluz em leves e fugidias pulverisações de prata, a terra solta, ferida pelo choto miudinho dos jericos.

Almada [Cova da Piedade], Uma Burricada, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 14, década de 1900.
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade, Almada, Câmara Municipal de Almada, 1990, 318 págs.

O burriqueiro de Cacilhas, para o qual me glorio de chamar por um momento a benigna attenção do leitor, não é um ser tão indifferente para a civilisação, quanto á primeira vista poderá parecer. Elle é por educação muscular o melhor dos andarilhos, e seria o mais ligeiro soldado de caçadores. Pela intimidade do seu trato com o burro, adquire, além d'isso, singulares qualidades contagiosas de tenacidade e de resistência, equivalentes á posse de toda uma philosophia. O burro teima com todo o mundo — excepto com o hurriqueiro, porque a experiencia dolorosa e amarga lhe tem demonstrado, que o burriqueiro é mais teimoso que elle. Da classe dos burriqueiros sahiu para a litteratura nacional um eminente escriptor, de cuja obra individual é fácil deduzir a índole da corporação.

Foi tangendo os burros em que pesadamente se transportavam ao vir de Lisboa, que os barrigudos frades de S. Domingos conheceram em Cacilhas a José Agostinho de Macedo, a quem se affeiçoaram, que recolheram, e que por fim educaram como noviço nas escolas da communidade.

Padre José Agostinho de Macedo (1761 - 1831).
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O padre José Agostinho, tirado de traz dos burros, da carreira de Cacilhas á Cova da Piedade, para a carreira das lettras, foi, como se sabe, um dos mais eruditos escriptores e um dos primeiros litteratos do começo d'este século. Mas a profissão que primeiro exerceu, a indole nativa de cavallariceiro e de tangedor de burros, imprimiu-lhe caracter tão indelével, como o da tonsura ou o das ordens sacras.

Em toda a sua obra encyclopedica, no púlpito e no livro, em prosa o em verso, desde o poema épico do Oriente até ao pamphleto da Besta esfolada, orador, poeta, philosopho, critico, elle foi sempre, invariavelmente, inconfundivelmente, essencialente — através de tudo e acima de tudo — o arrieiro.

Ramalho Ortigão (1836 - 1915).
Imagem: Wikipédia

Macedo fez escola, deixou numerosos e imitadores na publicidade portugueza, e é dos escriptores do seu tempo, aquelle talvez de cuja influencia encontram mais vestígios na prosa ontemporanea. No estylo, por exemplo, da controvérsia política, nos jornaes de Lisboa, é palpável a ascendência do macedismo.

Os Vencidos da Vida (com excepção de António Cândido) fotografados por Augusto Bobone em 1889, no jardim da casa do conde de Arnoso, na Rua de S. Domingos à Lapa: marquês de Soveral (Luiz Pinto de Soveral, 1850-1922), Carlos Lima Mayer (1846-1910), conde de Sabugosa (António José de Mello Cezar de Menezes, 1854-1923), Oliveira Martins (1846-1894), Carlos Lobo d’Ávila (1860-1895), Eça (1845-1900), Ramalho Ortigão (1836-1915), Guerra Junqueiro (1850-1923), conde de Arnoso (Bernardo Pinheiro Correia de Mello, 1855-1911) e conde de Ficalho (Francisco Manoel de Mello Breyner, 1837-1903).
Imagem: Lisboa Desaparecida

Mal sabe o burriqueiro, mal sabe o burro de Cacilhas, que é d'elles ambos que procede essa notável corrente da arte applicada á sova entre escriptòres, e tendo por base suggestiva e inicial a incidência combinada, do coice, da arrochada e da cólera fradesca, sobre a litteratura de uma raça!

* Reservando-so o direito de reedição, o auctor d'este artigo roga aos seus confrades da imprensa portuguesa o obséquio de o não transcreverem.

Ramalho Ortigão (1)


(1) Gazeta de Noticias, 7 de dezembro de 1886

Sem comentários:

Enviar um comentário