O meu coração está cheio de sepulturas. Entre as que me despertam maiores saüdades está a do nosso querido Jaime Ferreira Dias. Nunca conheci quem o excedesse em bondade, simplicidade, em candura. E rarissimos serão os que poderemos comparar com êle na gentileza da vida tão limpida e, ao mesmo tempo, tão infortunada. Militante dos ideais socialistas, Jaime Ferreira Dias foi um socialista que se impunha ao respeito de todos pela sua coerência, pela sua probidade, pelo seu sincero idelismo, foi, numa palavra, um socialista digno desse nome. Proferindo estas palavras de inteira justiça, perpassam-me pelo espírito algumas cartas que dele guardo e em que a grandeza da sua alma se reflectia como num puro cristal. (1)
Jaime Ferreira Dias entre os seus: D.a Helena Reis Ferreira Dias e as filhas Maria Otília e Maria Gabriela. Imagem: Correia, Romeu, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada |
Gente desapossada da terra, onde trabalharam pais e avós (que eram poucos por estes sitios) e ainda homens, mulheres e crianças de campos longinquos, como Charneca, Sobreda e até Fernão Ferro. que todas as madrugadas iniciavam uma marcha forçada e caminho da fábrica, distanciada uma légua, e, quantas vezes, duas e até três. No regresso (havia ainda o regresso, com o corpo já moido de fadiga), outro tanto seria palmilhado, o que perfazia, por vezes, dez, vinte e trinta quilómetros diários para obter o aluguer da força de trabalho.
Ao recordarmos Jaime Ferreira Dias, a criança que nunca foi menino, o pequeno operário arrancado à paisagem rústica, mas a quem um golpe de adversidade, em contrapartida, dá a possibilidade de se cultivar, melhor compreendemos e sentimos quanto o peso da ignorância paralisa ou ergue barreiras a tantos dos seus antigos irmãos de classe. Mas tentamos esboçar a sua figura, uma das mais limpidas, generosas e fraternas de quantas viveram na margem esquerda do Tejo.
Nasceu na Charneca de Caparica a 26 de Maio de 1903. Filho do operário corticeiro Alfredo Ferreira Dias, ainda garoto empregou-se na fábrica onde seu pai trabalhava, no Caramujo, da firma Henry Bucknall & Sons, Ltd. Caminhava todas as manhãs muitos quilómetros para ser pontual no iocal do trabalho. Ele e o pai, munidos do saco com o almoço, faziam aquela jornada de manhã e à tarde. Em épocas de invernia tornava-se um inferno aquela caminhada de dois pobres e solitários trabalhadores.
Aos doze anos, devido a ter sido atingido por uma das máquinas daquela fábrica, viu-se privado do braço direito. Regressado do Hospital ao Caramujo, o então gerente da casa Bucknall, Sr. David Ferguson [sic, David Fergusson (?-1930)], resolveu manda-lo educar, pagando do seu bolso o preço dos estudos.
Cedo as faculdades de inteligência de Jaime Ferreira Dias começaram a demonstrar tendência para as lutas de emancipação da classe operária. Ingressando por esse tempo nas fileiras do Partido Socialista Português [partido fundado em 1875 e suprimido em 1933, realizou ainda uma conferência em 1933], o seu dinamismo tornou-se notado, conquistando a estima e a admiração dos dirigentes deste partido, entre os quais se contavam o advogado e dramaturgo Ramada Curto e o jornalista e escritor Bourbon e Meneses. É surpreendente a actividade literária do nosso blcgrafado: contos, poesias, crónicas, artigos doutrinários, polémicas, traduções, criticas literárias e teatrais, textos ao sabor do quotidiano. A defesa das crianças, dos humilhados e ofendidos, dos "escravos da gleba" —esta uma frase tantas vezes repetida por Jaime Ferreira Dias! — inundou a Imprensa nos poucos anos que lhe restavam para viver [...]
Faleceu no Hospital de S. Marta, a 14 de Novembro de 1932, apenas com 29 anos de idade. Deixou mulher, D. Helena Reis Dias, e duas filhinhas de tenra idade. O seu corpo veio para Almada, seguido por densa multidão. Gente de todas as tendências e classes quisera prestar assim a última homenagem a Jaime Ferreira Dias. A banda da Sociedade Filarmónica União Artística Piedense esperou o corpo, em Cacilhas, para o acompanhar ao cemitério de S. Paulo.
À beira do coval falaram Bourbon e Meneses, Ramada Curto, José Augusto Machado, que representava os inválidos do Comércio, e José Alaiz. Foram lidas duas mensagens: uma de D. Francisco de Melo e Noronha e outra do Clube Columbófilo "Os Voadores" [...]
Jaime Ferreira Dias escreveu entre outros opúsculos: Os Escravos da Gleba, Duas Uniões Vitoriosas, sendo este uma peça teatral em 1 acto.
Teatro, Duas Uniões Victoriosas, Jaime Ferreira Dias, 1931. Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade |
Traduziu, e Bourbon e Meneses prefaciou, o livro de Paul Lafarge Porque crê em Deus a Burguesia.
Amante do movimento associativo almadense, era sócio honorário do União Piedade Futebol Clube e do Clube Columbófilo "Os Voadores".
Jaime Ferreira Dias foi uma personalidade com destaque na vida cultural e associativa de Almada.
Foi sócio e dirigente da Sociedade Filarmómica União Artística Piedense e da Cooperativa Piedense.
Foi igualmente sócio honorário do União Piedade Futebol Clube e do Clube Columbófilo “Os Voadores”.
Foi ainda um dos fundadores da Associação de Classe dos Empregados no Comércio e Indústria de Almada (1931) [...]
A sua actividade literária distribui-se pelo conto, poesia, crónica, artigos doutrinários, polémicas, traduções, críticas literárias e teatrais.
Publicou os folhetos de crítica social Escravos da Gleba, [1928] (existente na Biblioteca/Arquivo de História Social, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa - PT/AHS/PQ1170-B0140) e A Mulher: escrava do lar e das convenções sociais, Lisboa, Biblioteca de Educação Social, 1929, 24 p. (existente no Centro de Informação & Documentação da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género e no Arquivo Histórico Social).
Publicou a peça de teatro Duas Uniões Victoriosas, peça em 1 acto que foi representada pela primeira vez, no teatro Garrett, na Cova da Piedade, a 24 de Maio de 1931.
Cova da Piedade, Cine-Teatro da Sociedade Filarmónica União Artística Piedense.
Imagem: Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial
in Arquivo Histórico-Social / Projecto MOSCA (disponível ocasionalmente)
Segue uma longa lista (pelo punho do próprio) da sua colaboracão na Imprensa:
Em O TRABALHO
001.° A Ideia em Marcha
002.° Lei que se deturpa
003.° Os descrentes
004.° À Mocidadez (O campo — soneto)
005.° A Luta de Classes
006.° Aos Escravos da Gleba
007.° Processos de Luta
008.° Os sem Trabalho
009.° A Humanidade deles
010.° lniquidades Sociais (Soneto)
011.° À Mocidade de Almada
012.° Colaboracionismo
013.° A Coerencia da História
014.° O Natal
015.° A Todos Os Escravos (Um soneto)
016.° A Expressão dum Fracasso
017.° A Actividade Socialista (Uma página)
018.° A Uma Tese
019.° O Problema Emancipador
020.° Ex-Homens
021.° Emigrantes
022.° A Educação Operária
023.° Um Grande Vulto de Socialista Antero de Quental
024.° Gruta de Trogloditas
025.° A XI Conferencia lntemacional do Trabalho
026.° Os sem trabalho
027.° A Fome
028.° Bodos
029.° A Linha Comungante (Novela)
030.° A Crise
58 colunas de prosa em O TRABALHO
Em O VEGETARIANO - 1927
015.° O Alvorecer (Soneto)
016.° A Angústia de Mãe (Soneto)
017.° Contradiçóes Absurdas (com gravura)
019.° ldílio-versos, com gravura
020.° A Inocência (Soneto)
022.° Sonho e flores (Soneto)
023.° A vida do campo e a febre do êxodo
024.° Vozes da Natureza (Soneto)
Em O VEGETARIANO - 1928
025.° Ao cair da tard - (Soneto)
026.° Na Relva - (Soneto)
027.° O Sobreiro
028.° Um filho (Soneto)
029.° Resposta a D. Francisco de Melo e Noronha
030.° lnvernando
Em O ECO-TELEGRAFO POSTAL
001.° Processos de Luta transcripção d'O TRABALHO
002.° A Humanidade burguesa
003.° Bendita a Rebeldia - Soneto
004.° Os Escravos da Gleba - Soneto
005.° Carteiro da Aldeia - Novela
006.° Pai? — ... Incógnito - Novela
Em A VOZ DE ALMADA
001.° As Contradicões da Igreja
Em O LIBERTADOR
001.° Ao sr. Ministro do Trabalho
Em A MOCIDADE
001.° Vária colaboração
Em A ACADEMIA jornal comemorativo do 32.° aniv.
001.° Saudações - Soneto
Em A NOVA ARCÁDIA
001.° A Inocência - Soneto
Em O CONTRUCTOR CIVIL - Porto
001.° Bom Caminho» (Mais artigos que se perderam com os jornais).
Em A VOZ DO OPERÁRIO - V. N. de Gaia
001.° A Voz do Operário
Em O VEGETARIANO - 1926
001.° Encantos da Natureza - Costa de Caparica
002.° Maio - Soneto
003.° Espectáculos Deshumanos
004.° A tua imagem - Poesia
005.° Caramujo
006.° A Cidade Massiça e a Cidade ideal (c/grav.)
007.° Lavadeiras- - Soneto
008.° A Pena de Morte
009.° Bendita a Rebeldia - Soneto
010.° As vindimas (com gravura)
011.° Os Escravos da Gleba - Soneto
012.° Os Estupificantes (c/ estudo em gesso, grav.)
013.° A Miséria - Soneto
Em a REPÚBLICA SOCIAL - 1927
267.° A Todos os Escravos
267.° Coisas do Momento» - Soneto 269.° O perigo da Indiferença
277.° Caricatural esboço duma grande cidade
277.° A Infância - Quadras
279.° O Problema Sexual na Sociedade Futura
280.° A Magia dos Soneto
280.° A Era Nova - Soneto
281.° Em Almada - O Apego à Tradição
282.° Do Apego a Tradição a Injúria Soez
282.° O Malhador - Soneto
283.° A Inocência - Soneto
284.° Eclipses
292.° Marcelino - O Pastor N.os 292/298
293.° A Minha Crença - Soneto
294.° Contrastes Desprimorosos
296.° Liberto, enfim - Soneto
300.° Necrópole Insurrecta
305.° Esboço Novelesco, Thomaz, o sacristão
Em a REPÚBLICA SOClAL - 1928
309.° Emigração
310.° A Glorlficação do Trabalhador
311.° A Esquadra lngleza no Te]o
313.° Tema de todos os dias - O LAR
317.° Nós e a Protecção Operária
320.° Trabalhadores, filiai-vos no P.S.P.
324.° Uma data, um anseio. uma esperança
326.° Compromissos...
329.° Um grito de dor
333.° Acidentes de Trabalho (2 N.os
340.° Sangue na guerla e lucidez de espírito
341.° Sejamos Mulheres - pseud. M. Rosa da Luz
346.° A Mocidade e o Socialismo
354.° A Miséria e a Doença
Em O PROTESTO - 1927
227.° Os interesses dos que trabalham
233.° A Opolência dos mortos e a miséria dos vivos; Na Relva - Soneto
234.° Preito dos Novos
235.° Vozes da Natureza - Soneto
236.° Indiferença, analfabetismo — eis o caos social 1 1/2 ››
236.° 1.° de Maio — Em Almada
237.° Alerta Mocidade
237.° Interpretação cooperativista
238.° Lei que se deturpa
240.° Em Almada — O apego a Tradição
240.° A Miséria-Soneto
241.° Desmoronamento - Soneto (Mais colaboração)
243.° Lei que se deturpa
244.° Lei que se deturpa (continuação)
247.° A Margem da Vida - Soneto
252.° O que se passa pela Itália
255.° Saibam quantos
258.° A Escravatura Moderna
Em O PROTESTO - 1928 (continuação)
275.° A Ansia do Fim
280.° Discurso (Morte de A. Dias da Silva)
281.° Os Vencidos
283.° Nem um catre no hospital
283.° Bendita a Rebeldia - Soneto
285.° As épocas e as doutrinas
290.° O Curro e a Religião
291.° No Regime dos Senhorios
291.° A Terra, o Campo, a Riqueza (com m/foto)
292.° No Regime do Salariato
293.° A Higiene
307.° Almas do outro Mundo
309.° O Estado e a Assistencia Social (Mutilado)
310.° Emigrantes — critica a Ferreira de Castro
Em O ALMANDENSE
001.° Regionalismo
002.° Uma Ponte Levadiça
003.° Municipalismo
004.° Instrução, Problema Municipalista
005.° A Margem Sul do Tejo
006.° O Flagelo da época
007.° A Margem da Morte
008.° Realismo e Democracia
009.° O Ladir dos Críticos e o Riso dos Asnos
010.° Contrastes Oportunos /
011.° A Assistência
011.° Bocage
014.° A Dor Humana
015.° Mosaicos
016.° Um Pesadelo
017.° Oratória
017.° Almas do outro Mundo
017.° Contrastes Oportunos (Resposta)
019.° Concepções ideológicas
019.° Bosquejos locais
020.° A Evolução Mecânica e a Trans. Social
021.° Cosmopolitismo ou quê?
021.° Farrapos
022.° Martirológio
023.° A Luz do Alfabeto
024.° Fraticidas
025.° Urbanismo Almandense
026.° Quadros
027.° Terra de Ninguém - Novela de Cost. Regionais
028.° Traumatismo Social
028.° Crianças
029.° Duque de Vizeu (critica teatral)
031.° A Odisseia dos Marítimos
032.° Atrraz duma Quimera
033.° O Culto da Indiferença
034.° A Escola e a Crianca
[...] Três semanas após a abertura desta escola [escola primária na antiga Cardosa do Caramujo, actual rua Tenente Valadim], as aulas tinham uma frequência de 110 alunos, lecionados pelo saudoso professor José Martins Simões. Esta obra realizou-a o esforço de alguns ardorosos sócios. A escola possuiu um estandarte próprio, que era o enlevo da garotada, e um grande benemérito desta terra, que foi António José Gomes, de tal modo perƒilhou esta obra, que vestiu mais uma centena de alunos, dando-lhes um fardamento.
Os filhos da Piedade, que hoje são homens, devem a esta escola a instrução que disfrutam! António José Gomes patrocinou a escola que aquele punhado de homens criou, e sendo exígua já a capacidade das salas da Sociedade para a regular frequência escolar, edificou aquele benemérito a escola situada na Avenida que tem o seu nome e que é a melhor de todo o concelho!
António José Gomes, década de 1890.
Imagem: Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial
Este estabelecimento de ensino, foi. pois inspirado pela iniciativa que teve o seu campo de ensaio — e que profícuo ensaio! — na Sociedade Filarmónica União Artística Piedense.
in Dias, Jaime Ferreira, citado em Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial (1847 -1909), Cova da Piedade, Junta da Freguesia, 1992, 175 págs.
036.° Cooperativismo
038.° Economia Nacional — A Ind. Cort. e a Exportação da Cortiça em Bruto
039.° Crónica da Primavera 2
039.° Abril - Soneto
040.° Amor e a Sociedade
Jaime Ferreira Dias colaborou ainda por varias vezes no El Socialista, de Madrid. (2)
(1) Bourbon e Menezes citado em Correia, Romeu, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada, (nas Artes, nas Letras e nas Ciências), Almada, Câmara Municipal de Almada, 1978, 316 págs.
(2) Op. Cit.
Leitura relacionada:
Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade
Tanta gente lembrada nos topónimos da Charneca de Caparica, este é um nome que não me lembro de ver. Não deveria o mesmo ser homenageado, dando o seu nome a uma rua, ou mesmo a uma escola da terra da sua naturalidade?
ResponderEliminarO antropónimo Jaime Ferreira Dias existe na Sobreda, que na década de 1920 integrava a Charneca de Caparica
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