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terça-feira, 2 de junho de 2015

Astúcias de namorada

Havia baile, ou antes sarau dançante, n'uma casa em Almada.

Les vignobles des bords du Tage, foto Paul Witte, Munich, Grande géographie Bong illustrée, c. 1911.
Imagem: Delcampe

N'um pequeno jardim, que se espraiava até a beira dos rochedos pendurados sobre o rio, vinham os grupos dos convidados descançar um pouco das polkas e das valsas, respirar, e relancear os olhos pelo delicioso panorama do Tejo, em cujas aguas traçava a lua como que uma estrada argentea. De quando em quando enchia-se o jardim de risos, de segredinhos; a lua illuminava por entre as folhas roupas alvejantes, que passavam fluctuando como o véo dos sylphos; depois pelas janellas abertas da sala saía uma bafagem de harmonia, proveniente dos primeiros compassos d'uns lanceiros, os grupos dispersavam-se e engolphavam-se em turbilhão pelas portas de vidraças, e o jardim ficava de novo solitario, mas não silencioso; porque n'elle se escutava o rumorejar da brisa, o echo da musica do baile, e o murmurio do rio que gemia docemente em baixo nas fragas.

Vista de Lisboa tomada da margem esquerda do Tejo, Joseph Fortuné Séraphin Layraud, 1874.
Image: Musée Saint-Loup, Troyes, no flickr

N'um dos intervallos das polkas, e quando o jardim se povoava de novo com os fugitivos do baile, um par, mais fatigado talvez que os outros, veio sentar-se n'uma especie de caramanchão, que ficava na extremidade do jardim, mais proximo da orla do rochedo, e por conseguinte quasi suspenso, como um ninho de gaivotas, sobre as aguas. Devo rectificar o que disse; não foram ambas as pessoas indispensaveis para formarem um par, não foram ambas as pessoas, que se sentaram; só o fez uma senhora de vinte e cinco annos talvez, alta, elegante, morena e viva, de olhos rasgados e cabellos negros, que scintillavam como o ébano á luz brilhante da lua cheia.

O cavalheiro ficou de pé, apesar de sua gentil companheira lhe ter visivelmente proporcionado um logar junto de si, como se podia deduzir do modo como aconchegou o vestido, fazendo occupar á crinoline o menos espaço possivel; mas essas piedosas intenções foram perdidas, porque o seu braceiro não ousou percebel-as, e conservou-se, como dissemos, em pé, ainda que os seus olhos ardentes, cravados no rosto da sua companheira, quando esta o não podia ver, denunciavam que não era a indifferença que o impedia de aproveitar o favor que se lhe queria conceder.

E comtudo esse timido moço estava na idade em que esses favores se ambicionam com mais ardor do que aos trinta e cinco annos a pasta de ministro, estava na idade em que se devaneiam escadas de seda fluctuando ao sopro das auras, serenatas interrompidas por um amante cioso, amores aventurosos, mil perigos a atravessar para se obter um sorriso, uma flor, uma palavra, na idade feliz em que se inveja Leandro só ao pensar quantas vezes se teria accendido o pharol de Hero antes da terrivel noite, em que a morte, envolta em horrendas vagas, segundo a admiravel expressão de Bocage, arrojou um cadaver livido aos pés da torre, em que ainda não expirára o echo dos beijos da antecedente noite.

E o timido rapaz alisava a luva branca, e procurava com frenesi uma palavra qualquer, que lhe não occorria em presença d'essa formosa senhora, cujos pés desejava beijar; e pensava que immensa felicidade não seria a sua, se em vez de estar sem animo, embaraçado e vermelho, diante d'ella, estivesse na outra margem do Tejo, e tivesse que o atravessar a nado para cair offegante e exanime junto d'esse adorado vulto. Então não seria necessario fallar; a sua pallidez, os seus olhos cheios d'amor diriam tudo, e muito infeliz seria, se a nova Hero, vendo-o ensopado por causa d'ella, lhe não dissesse alguma cousa que lhe desembaraçasse a lingua, e partisse o gelo, que se interpunha obstinadamente a dois corações, que anciavam por se unir.

A gentil senhora esteve um instante olhando para elle com um sorriso meio despeitado, meio zombeteiro, e afinal, vendo que a malfadada luva branca ainda não parecia sufficientemente alisada, meneou a cabeça com um gesto encantador, que fez ondular as suas tranças negras, e que espalhou na atmosphera um aroma inebriante, aspirado com delicias pelo timido moço. Depois voltou os olhos para o rio, encostou a face á mão enluvada, e ficou-se a contemplar esse quadro magnifico.

A noite estava linda, uma d'estas noites de luar, como o calido estio as envia aos paizes meridionaes. 

No céu d'um azul suavissimo, algumas nuvens, volteando em torno da lua, recortadas em mil arabescos pela brisa nocturna, embebidas todas no candido fulgor do astro da noite, pareciam as maravilhosas rendas do véu luminoso que Phebe arrasta pelo firmamento, em noites assim languidas e serenas. O Tejo desenrolava a sua immensa toalha liquida, prateada no centro pelo luar, e negra junto do caes, ou á sombra dos mastros dos navios immoveis nos ancoradoiros. Ao longe Lisboa avultava, espraiando a sua casaria á beira do rio, e pelas faldas das suas sete collinas. As longas fileiras dos seus candieiros de gaz formavam á borda do Tejo como que uma fita de chammas. Alguns barcos de pescadores deslisavam silenciosamente, soltando ao sopro da brisa as suas velas brancas. Este panorama, que só tem rivaes na bahia de Napoles ou na enseada de Constantinopla, devia fascinar quem o contemplasse, como a gentil senhora em quem fallamos, do caramanchão d'um jardim, cheio de arvores, onde expiravam os ultimos echos d'uma valsa, onde o luar, coando-se por entre as folhas, luctava com os luminosos reflexos, que dimanavam dos lustres, scintillando nas salas.

No cais do Tejo, Alfredo Keil, 1881.
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

Parecia ella effectivamente toda absorvida na sua contemplação, quando a voz tremula e profundamente commovida do seu joven companheiro a fez estremecer.

Essa voz, toda vibrante de paixão, dizia simplesmente estas palavras:

— Que... linda... noite!

— Lindissima, não é? respondeu ella, voltando para o seu interlocutor o rosto ainda encostado na mão, o que lhe permittiu erguer os olhos para elle sem levantar a face, dando assim ás pupillas uma expressão voluptuosa, que encerra um encanto irresistivel, um magnetismo fascinador... Como que parecem fluctuar na atmosphera todos os sonhos dos poetas! Sabe no que eu pensava agora, vendo aquelle bote, que resvala á flor das aguas, como um cysne da noite? Pensava se seria esse o barco de Lamartine, e se levaria tambem dois amantes, que fossem murmurando um ao outro, com as mãos enlaçadas, as doces palavras que tanto nos encantam, quando o auctor do Lago as traduz na melodiosa linguagem da sua poesia.

— Ah! bem sei, respondeu o desastrado:
"Ainsi, toujours poussés vers de nouveaux rivages..."
— Oh! meu Deus, tornou a senhora visivelmente impacientada, conheço os versos, mas, como não quero prival-o do praser de os recitar, peço-lhe que me acompanhe á sala, e permitto-lhe depois que venha de novo confiar á lua e ao Tejo as inspirações de Lamartine.

E a formosa menina, rubra de despeito, levantou-se, e tomou o braço do seu interlocutor, que ficára fulminado por aquella inesperada apostrophe, e que debalde tentava balbuciar umas palavras sem nexo.

Frederico era um moço esbelto de vinte e dois para vinte e trez annos, d'uma gentileza verdadeiramente notavel, d'um espirito intelligente e cultivado, d'uma bondade proverbial, mas tambem d'uma timidez invencivel. D. Lucinda, a gentil senhora que entra n'este momento na sala, podera apreciar as brilhantes qualidades de Frederico, ouvindo-o conversar desembaraçadamente em uma reunião intima, onde o seu acanhamento não tivera motivo para se revelar. 

Deslumbrada por esse esplendido conjuncto de predicados, Lucinda tentára fixar a attenção do gentil moço, e a "coquette" conseguira-o em breve, mas, quando se tratára de dar o passo decisivo, manifestára-se toda a timidez do espirito virginal de Frederico. Era o seu primeiro amor, e só os tolos conseguem atravessar affoitamente essas columnas d'Hercules. Lucinda, experimentada n'essas questões, comprehendera primeiramente o embaraço do mancebo, e, lisongeando-se com isso, entendera tambem que o devia auxiliar.

Mas o que animaria qualquer outro, acanhou ainda mais, se me permittem o termo, a timidez desconfiada de Frederico. Se Lucinda fosse uma timida menina, que córasse como elle corava, que tremesse como elle tremia, os olhos d'ambos fallariam tanto, as palpebras mesmo, abaixando-se a um tempo, teriam uma linguagem tão eloquente, que afinal os labios ver-se-hiam obrigados a traduzir em palavras esse mudo idioma. 

Porém, como podia succeder semelhante cousa, se o olhar ardente de Lucinda deslumbrava aquelle em quem se fitava, se a sua tranquilla superioridade assustava Frederico, e o fazia tremer a cada instante, com o receio de desempenhar o papel de criança ridicula diante d'essa esplendida mulher?!

O ridiculo, que espera nos dois extremos da estrada da vida tanto os que avançam como fanfarrões, como os que recuam com demasiada fraquesa, assustando Frederico que temia vel-o diante de si, assaltava-o quando elle para lhe fugir retrogradava sem ter animo para obedecer ao férvido olhar, que lhe dizia: "Ávante." O pobre rapaz, vendo assim de subito desfeitos em pó os seus planos estrategicos, preferiria um abysmo abrindo-se-lhe debaixo dos pés a ouvir as palavras friamente zombeteiras de Lucinda.

At the ball, Václav Brozík (1851 - 1901), 1898.
Imagem: Wikimédia

Entretanto o baile findára, e os lisbonenses preparavam-se para atravessar o Tejo. Frederico e a familia de Lucinda eram as unicas pessoas, que tinham de emprehender essa excursão. Era pouco mais de uma hora quando Lucinda e sua mãe pozeram as capas, e foram arrancar ás delicias do whist o patriarcha da tribu, que saiu furioso de ter de se embrulhar em dez mantas e de ter perdido dez "rob" consecutivos, Frederico, depois da scena do caramanchão, bem desejaria ficar, mas a mãe de Lucinda, sabendo que era elle o unico dos cavalheiros presentes que regressava a Lisboa, reclamou sem ceremonia o auxilio do seu braço para descer a ingreme calçada.

Almada, Largo do Poço em Cacilhas, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 03, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Assim, Frederico viu-se obrigado a pegar no chapéu, e a seguir, supportando o peso da sua volumosa braceira, o pae de Lucinda, que se apoderára d'esta para lhe explicar durante o caminho as infernaes combinações que tinham dado em resultado a derrota memoravel d'essa noute, verdadeiro Waterloo nos seus annaes de jogador de whist.

As circumstancias conspiravam-se todas contra Frederico. Chegados ao caes de Cacilhas, notou-se que apenas um barco se baloiçava nas aguas negras, que batiam murmurando nos degraus da escadaria. Bradou-se pelos barqueiros, que dormiam no fundo do bote, e, quando estes se levantaram, reconheceu-se que eram os remadores de Frederico. Os venerandos progenitores de Lucinda protestaram, em alta voz, contra a insolencia dos seus barqueiros, que os tinham posto inconsideradamente na dolorosa necessidade de atravessarem o Tejo a nado, ou de dormirem ao relento nas pedras humidas do caes. Frederico offereceu immediatamente o seu bote.

Lisboa, Vista tomada de Cacilhas, ed. Martins/Martins & Silva, 7124, década de 1900
Imagem: Delcampe

Não era possivel proceder d'outro modo. Por infelicidade o barco era vasto bastante para que todos coubessem. Frederico viu-se obrigado a entrar e a sentar-se defronte de Lucinda. O pobre rapaz nem ousava levantar os olhos. Desfraldou-se a vela, e o barco resvalou silenciosamente á flor das aguas [...]

A brisa refrescára, e, infunando a vela, fazia tombar o barco para um lado. Os marinheiros pediram a Frederico que se fosse sentar junto de Lucinda.

Já vêem que o acaso continuava a fazer das suas.

Foram calados um instante, com os olhos fitos na lua, que desdobrava a sua placida luz pelo céu azulado e pelas aguas do rio. A face formosa da antiga Diana reflectia-se no espelho vacillante das ondas encrespadas pela viração. Ouvia-se o chapinhar das aguas batendo no costado de uma fragata immovel; um bote de remos passou rente do barco onde iam os nossos heroes. Os remos, sulcando a agua, erguendo-se e recaindo de novo, pareciam arrancar do seio do rio as palhetas luminosas com que o matizava a lua, e que depois lhe devolviam n'uma chuva d'alvas perolas. Um marinheiro, recostado ou antes deitado á pôpa, com os olhos vagamente embebidos no firmamento, dedilhava uma guitarra, e fazia-lhe vibrar nas cordas algumas d'essas melancholicas toadas das nossas canções populares [...] (1)




(1) Chagas, Manuel Pinheiro, Astúcias de namorada, Lisboa, Typographia Progresso, 1873

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