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terça-feira, 23 de junho de 2015

O incendio da fabrica da Margueira

A nossa gravura de hoje representa o incendio da fabrica da Margueira, visto de Lisboa, na noite de 18 [de março de 1883], e illuminando o Tejo com os seus clarões sinistros. (1)

Incendio na fábrica de cortiça Henry Bucknall & Sons, 17 de março 1883.
Imagem: Hemeroteca Digital

Hontem, pelas 11 horas da manhã, o vento soprava rijo do sul, espalhou pela cidade denso fumo, não tardando em cair uma chuva de cortiça carbonizada.

Correu logo a noticia de que havia na Outra Banda um incendio pavoroso. De facto os curiosos que correram a extensa cortina do Aterro viram elevando-se do lado do sul uma enorme columna de fumo, por entre a qual surgiam grandes labaredas. Parecia que se achava em chammas toda a casaria de Cacilhas.

A força do vento e a violencia do incendio eram taes que não só caiam grandes bocados de cortiça queimada no caes do Sodré, ruas do Alecrim e immediações, mas até muitos bocados foram a enormes distancias.

Na rua do Sol ao Rato, no Campo de Sant'Anna e até na estrada de Palhavã foram cair pedaços de Cortiça.

Praça do Comércio e Rio Tejo, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O sr. visconde de Coruche, voltando da Charneca, encontrou na estrada, muitos pedaços de cortiça que tinham sido lançados até ali.

Averiguou-se emfim que o fogo era na Margueira, na grande fábrica de cortiça dos srs. Henri Buchnal & Filhos [Henry Bucknall & Sons], de Londres. Sabe-se que era aquella uma das maiores fabrica porque havia ali mais cortiça do que toda a que ha em todas as outras fabricas do reino, e que empregava um pessoal de 400 pessoas. Ocupava uma area immensa, sendo a parte já incendiada de nada menos de 3:000 metros.

Além dos grandes armazens bem providos, existiam n'essa area grandes pilhas de cortiça em bruto, que se tornaram em outras tantas montanhas de fogo.

O fogo manifestara-se ás 10 horas e meia em uma das grandes pilhas, assumindo logos as mais assustadoras proporções.

Os primeiros socorros foram logo prestados pelas proprias gentes da fabrica, que pouco ou nada podia faser, em rasão dos seus esforços serem destruidos pela força do vento.

Quando chegou a primeira bomba, que foi a do Vasco da Gama, acompanhada por um contigente d'esse navio, já o fogo se comunicara a um grande numero de pilhas, ameaçando devorar toda a fabrica.

Couraçado Vasco da Gama, gravura, J. Pedroso, O Occidente, 1880.
Imagem: Hemeroteca Digital

Apóz essa bomba compareceram as das corvetas Rainha de Portugal, transporte de guerra África, bomba a vapor do arsenal de marinha, a dos voluntarios de Lisboa e Junqueira,  Almada, bombas municipaes de Lisboa 1 e 17, pessoal dos carros 21, 23 e 24, um piquete de 60 praças de sapadores etc.

Desenvolveu-se a maior actividade no ataque, funccionando todas as bombas e pessoal á proporção que iam chegando. Na inteira possibilidade, porém, de se salvar a fabrica, convergiram as atenções para a rua principal de Cacilhas, cujos predios do lado do nascente, desde o n° 91 até 150 se achavam em grande risco. Em alguns d'elles e na igreja chegou mesmo a pegar o fogo. Aos grandes esforços no entanto empregados pelo pessoal encarregado da defeza d'essas propriedas, e principalmente aos dos marinheiros da armada, deve-se a salvação, póde assim dizer-se, de toda a rua de Cacilhas.

Rua Direita — Cacilhas, ed. desc., década de 1900
Imagem: Delcampe, Oliveira

Era admiravel a coragem, a valentia desenvolvida por aquelles bravos, que por sobre os telhados, corriam a um e outro ponto a apagar o fogo que começava a lavrar.

Os marinheiros do Africa, sabendo que no predio n.° 107 existe um importante deposito de enxofre, correram ali, tratando de remover todo o conteúdo do deposito, que foi uma das casas onde primeiro se communicou o fogo.

No ministerio do reino, recebeu-se, pouco depois de se ter manifestado o incendio, o primeiro telegramma, que, apesar do seu laconismo, não podia ser mais aterrador: "Acudam-nos, que morremos todos queimados."

É que já n'essa occasião, caiam sobre os telhados da rua Direita de Cacilhas montões de faulhas, começando a manifestar-se o incendio em diversos pontos. Quando nós desembarcamos em Cacilhas, vimos muitas familias, percorrendo as ruas por terem, receiosas abandonado as casas, e montes de mobília, roupas, etc. disseminados por diversos pontos. Parecia o dia do juízo.

Não nos foi possivel aproximar do local do incendio; era mesmo impossivel, não só para nós, como para a gente do trabalho qualquer aproximação d'aquella fornalha immensa.

Ás 2 horas da tarde ardiam os moinhos, vinhas, mattos, arvoredo, apresentando toda aquella enorme area incendiada, um espectaculo admiravelmente horrivel. Ás 4 horas começou funccionando a bomba de vapor, tendo por alvo o laboratorio de productos chimicos e as casas proximas. O laboratorio, não obstante todos os esforços empregados, ficou destruido.

Não se pôde fazer calculo exacto dos prejuisos. Ha porém quem os avalie em uns 900 contos. A fabrica e a cortiça estavam seguras em companhias inglezas com agencias em Londres, em 40:000 libras.

Compareceram no local os srs. ministro do reino e da marinha, commissario geral de golicia, admmistrador do concelho, grande numero de policias, e piquetes de infantaria 2, 5, 7 e guarda municipal.

E bom foi que houvesse essa providencia, porque além de se tomar precisa para que se  garantisse á gente de trabalho a completa liberdade de acção, a policia tinha de se haver com uma enorme quantidade de gatunos, que aproveitando-se do ensejo quizeram pôr em pratica as suas costumadas proesas.

As casas proximas do incendio, por exemplo, que foram abandonadas pelos seus proprietarios, foram saqneadas pela gatunagem, que roubou tudo o que pôde.

O sr. commissario, porém, tomando as suas medidas contra os gatunos, preparou-lhes uma armadilha na ponte dos vapores; foram ali agarrados todos os que são conhecidos, e que evidentemente deram um passeio á Outra Banda para exercerem as suas habilidades.

Ás 7 horas pda tarde o sr. inspector dos incendios mandou refeição para o seu pessoal, que se acha ali na força de cento e tantos homens, que desde que começaram trabalhando até á chegada o sr. Carlos Barreiros foram comandos pelo sr. ajudante Conceição.

Ha suspeitas de duas victimas. Á hora em que escrevemos prosegue a extincção do incendio, que ainda activo. (2)

Durante a noite de sabbado para domingo continuaram os trabalhos de extincção do incendio, trabalhando debaixo de chuva todo o pessoal tanto de Lisboa, como de Almada Belem, Junqueira etc.

O fogo achava-se localisado ás 10 horas da noite. De manhã, pelas 10 horas, chegou mais uma força de 40 bombeiros municipaes de Lisboa e 50 conductores de differentes bombas.

As propriedades das ruas Direita de Cacilhas e d'Oliveira soffreram muito nos telhados. Essas propriedades foram durante a noite refrescadas a cada momento.

Felizmentè o laboratorio chymico não foi destruído, soffrendo, contudo bastante nos madeiramemtos.

Serzedello & Ca., década de 1840
Imagem: documento do acervo de Carlos António Serzedelo Palhares, Lisboa

Á noite ja não havia chamma, mas apenas o enorme brazido. O trabalho do rescaldo deve terminar hoje. (3)

A nossa folha dos dias 18 e 19 do corrente deu jà, com todos os pormenores, que então podémos colher, a descripção d'este pavoroso incendio. É portanto, desnecessario relatar hoje novamente a catastrophe, com um cortejo de detalhes sabidos e de noticias que ninguem ignora.

Toda a gente viu de Lisboa, na manhã e noite do dia 17, aquelle espectaculo ao mesmo tempo magestoso e horrivel, desenrolando-se, como um panno de fundo de magica, na outra banda do Tejo. Não houve quem não presenciasse aterrorisado e cheio de curiosidade aquelle quadro sinitro, que um dia tristonho de inverno tornava ainda mais lugubre e pesado.

O incendio durou dois dias, tendo-se manifestado em uma das grandes pilhas de cortiça da importanfissima fabriea dos srs. Henri Buchnall & Filhos, na Margueira.

Fora impossivel atalhal-o, apesar de todas as diligeneias empregadas, porque o vento sul, soprando com desmedida furia, se encarregava de ateiar as chammas.

O primeiro telegramma recebido no ministerio do reino, dando parte do horrivel sinistro, e pedindo promptos soccorros, dizia assim: "Acudam-nos que morremos todos queimados!"

É que já n'essa occasião caiam sobre os telhados da rua Direita de Cacilhas, montões de faulhas, principiando o incendio a lavrar em diversos pontos.

Pontal de Cacilhas, ed. Alberto Malva/Malva & Roque, 135, década de 1900
Imagem: Delcampe

Quando nós desembarcamos em Cacilhas, vimos muitas familias, percorrendo as ruas, por terem, cheios de pavor, abandonado as casas. Aqui e alí, divisavam-se montões de mobilias, roupas, etc, espalhados ao acaso. Tristissima e pungitiva scena!

A fabrica, e a cortiça estavam seguras em companhias inglezas com agencias em Londres, na somma de 40.000 libras. Os prejuizos ascendem a mais de 400 contos.

Felizmente, ninguem morreu victima do incendio, havendo apenas leves ferimentos entre a gente de trabalho, que prestou serviços relevantissimos.

O sr. Bucknall, proprietario da fabrica incendiada, mandou abonar, no dia immediato ao do sinistro, 300 réis diaríos aos trabalhadores casados, e 200 réis aos solteiros.

Dos 454 operaríos desempregados em consequencia do fogo, metade foi já admittida a trabalho, contando o honrado proprietario da fabrica empregar novamente o resto, dentro de poucos dias.

Cacilhas (Portugal), Largo do Costa Pinto, ed. Martins/Martins & Silva, 18, década de 1900
Imagem: Delcampe

Vê-se, por isto, que o sr. Bucknall, apesar da naturalissima preocupação do seu espirito, em horas de tamanha angustia como aquellas, não esqueceu, nem um momento, os interesses dos pobres operarios. (4)


(1) Diário Illustrado, 31 de março 1883
(2) Diário Illustrado, 18 de março 1883

(3) Diário Illustrado, 19 de março 1883

(4) Diário Illustrado, 31 de março 1883

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