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sexta-feira, 17 de julho de 2015

A caminho de Cacilhas... (parte IV)

A nossa separação forçada teve sobre Amelia uma influência que não demorei reconhecer. Ela acolheu-me como se algo de essencial tivesse passado entre nós; eu, imobilizado na minha lembrança, fui acordado por ela, de repente, como que por uma queimadura. E sem alegria, dizendo a verdade. Ela não fez alusão minha confiança, mas à minha fidelidade era o único ponto duvidoso, já bem comprometido, infelizmente! tinha-a humilhado e ela havia resolvido vingar-se da minha ofensiva memória.

Vue de Lisbonne prise de Alfeite, Celestine Brelaz (Lenoir), c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Essa certeza que eu lia seus lábios, os seus gestos — como todos os movimentos de prostitutas parecendo uma permissão — traíam com uma graça delicada e móvel, infinitamente variada como a chama dos seus olhos, certeza que me gela durante todo um dia, apesar dos esforços de sua persistente ternura.

Dos muros da cidadela os soldados observavam-nos. Fomos para outro lugar para lhes escapar. Nas bermas de um caminho deserto, onde grandes aloés formavam uma sebe, sentamo-nos diante um vasto horizonte que as montanhas fechavam. Seus contornos fundidos na bruma, suas arestas moídas, não pareciam mais do que uma habilidade de paisagista, uma sombra destina-se a colocar mais verosimilhança no encanto da luz.

No entanto, o charme que me desviava não era aquele que voava das suas pequenas mãos aladas que eu sentia, sem gosto, o esfregar nas minhas; e os lábios que eu beijava também não me retinham, embora eu os sentisse como pesadas flores tropicais de aromas plenos de febre. Distraidamente, como a prazeres exaustos, deixava-me ir a esses abraços, e sem a surpresa que acompanha a conquista, eu vogava para outros sonhos.

Almada, vista tomada do Campo de S. Paulo, ed. desc., c. 1903.
Imagem: Delcampe

Sabemos o que somos, o que sabemos, para onde vamos? Na desmoralização da minha culpa, era o pernicioso charme, essa ideia do negar tudo, a imensa comédia com que representamos com entusiasmo o primeiro ato, sem duvidarmos o que será o segundo e somente o desvelar. A impressão que nos deixa o sofrimento é diminuída, pela redução da nossa personalidade e da consciência de ser algo infimo na coletividade, o átomo anônimo, desembaraça-se um pouco de nós mesmos, adormece-nos e apaga-nos... Então as crueldades não sangram mais aos nossos fracos olhos.

A habilidade desta mulher, nas veias da qual uma semente perdida do orgulhoso sangue mouro tinha ainda germinado, a capacidade de conquistar era-me um assunto de estonteamento renovado. E eu soube mostrar-me dócil às suas tentativas de sufocar em mim o fantasma da minha felicidade passada. Ela foi pouco a pouco enlaçante e imperiosa; Ela tocava os olhos como um divino instrumento de luz; quente e rampante como uma pantera amorosa, gozona e queixosa, ela amarrava a suas mãos pequenas, castas como aquelas das virgens, e desnudava os seus braços, movia as ancas com uma indecência que crispava os sentidos. Ela dizia coisas semelhantes às das quimeras de sonho; ela proferia palavras que queimavam o fundo do ser. E ela mentia tão graciosamente, que era uma alegria para os ouvidos.

Eu também, mentia ao meu coração, ao meu passado.

Este ignora bem os maus segredos, que não viveu nos artifícios da luxúria. Ele não sabe até qual ilusão da imaginação nos podem levar os nossos sentidos perturbados, — já que não há outro modo de exprimir um desejo a uma mulher que lhe dizendo: "Eu vos amo."

Ai de mim! a miragem destas palavras às quais pouco a pouco nos deixamos prender; a miragem que afasta a nossa caravana a caminho dos belos oásis onde floresce a verdade da vida na ternura serena; a miragem que corrompe, que mancha, que lança sobre os seios ofegantes e a carne em fogo os nossos mais puros sonhos, as nossas mais luminosas esperanças...

Ela dizia: — Quero ser amada por um homem que resplandeça de beleza, valente como um leão e dócil como uma criança. Eu levá-lo-ia a delícias onde ele esqueceria tudo, tudo o que não fosse eu. E quando eu lhe dissesse: "Amigo, atirai-vos ao rio para me dar uma prova do vosso amor", na pressa louca de satisfazer o meu capricho, ele dar-me-ia a angústia de não chegar a tempo de o reter!

Sapho, Opera de Gounod, esboço de Edouard Despléchin para a cena final, 1851.
Imagem: Wikipedia

Estes propósitos obscureciam porque oferecia no encandeamento do seu corpo o preço dessas loucuras, porque ela também estendia o seu lábio para nada, e no seu corpete, na evocação deste amor assustador, os seus seios abanavam num tumulto de diversão.

Doçura de se deixar convencer quando já ter resolvido ceder! Doçura desta eloquência com a qual surpreendemos todas as armadilhas, e que isso ajudamos um pouco para nelas cair mais depressa! Doçura de todas as ironias às quais a vida se queixa e em que drenamos, embora que avisados, um embriaguez apesar de tudo!...

Foi por isso um longo prazer ceder às tentativas que Amélia fez para apagar as minhas recordações e a elas substituir-se. Mas ela resistia às minhas solicitações, esquivava-se sempre com uma crueldade excitante.

Sem dúvida, ela insinuava que o meu desejo ainda não era mais que uma febre passageira, este enrugar das águas à passagem de um sopro. O que ela queria era a conquista na fúria selvagem, o vento do frenesi, todas as emoções de uma pilhagem.

Eu não estava em uníssono com estas extravagâncias e sem dúvida parecia gelado à sua boca ardente, aos seus olhos de fogo: 
— Vós não me amais, dizia ela.

Outras vezes, era de Quitéria que ela se servia para motivar a sua recusa:

— Vós não conheceis aquela besta malvada! Sempre a espionar-me, deslizando sobre os seus pés nus como um réptil através da casa.

Então, ainda, era o receio do pecado, um estonteante acordar de superstição que agitava o corpo e reabria os olhos carregados desta neta dos Mouros.

E ela dizia sempre: Não! de uma forma particularmente teimosa, olhando à sua frente as falésias avermelhadas e peladas, os pastos e bosques que levavam as suas encostas distantes em direção ao mar.

O Ville de Paris, da carreira França - Espanha – Portugal, na barra do Tejo, Louis Lebreton, c. 1850.
Imagem: do Porto e não só...

No entanto, um dia, ela parecia muita agitada. O capitão Joaquim tinha anunciado o seu regresso. A recordação das suas carícias, o efeito de suas palavras, uma fadiga de luta, e, acima de tudo, o momento vindo, sobre o qual se pode sempre contar, quando uma mulher cede por uma contradição ou necessidade de terminar, ela apareceu-me enfim desacostumada de orgulho, oferecendo a sua beleza numa tal sede de amor que se tornava suplicante.

Ah! Como poderei alguma vez contar a intensa impressão dessa noite de outono, enquanto o sol caía no mar entre as brasas das nuvens amontoadas, e que ao som da minha tornada frágil de repente frágil, como dantes nas horas melhores, a feroz voluptuosa deixa cair no meu ombro a sua cabeça soberana e apaga o seu olhar nos meus olhos perplexos?

Ela não falava. Um calor corria debaixo de sua pele; seu rosto tinha uma palidez de pérola. Um fluxo de sangue avermelhava as suas orelhas e os seus lábios, enquanto a ebriedade que subia fechava mais os seus olhos, as suas pálpebras caíam como beijos sobre o seu olhar toldado...

Do sol morrendo numa chama, aos seus lábios, um sopro de amor levantava as melancolias profundas que dormem sobre as águas da noite e das montanhas desoladas. A noite vinha numa doçura de abraço, rápido como um véu caído, enquanto que as últimas glórias do poente palpitavam nos olhos da bela Amélia. Ela colocou os braços em volta do meu pescoço, e, derramada pelos meus beijos, numa demência emocionada, ela gritou: "Eu amo-vos!"

Detalhe da muralha do forte de Almada, década de 1910.
Imagem: Delcampe

— Esta noite, às nove horas, na minha casa, atira-me ela na fuga que a punham as seis badaladas das seis horas que caíam no campanário vizinho...

— Vamos embora [continua...]! (1)


(1) Vignemal, Henri, Sur le chemin de Cacilhas, L'Instantané, Supplément Illustré de la Revue Hebdomadaire, 1901

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