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quinta-feira, 2 de julho de 2015

Arte sineira

António Caliço abre os braços num amplexo frouxo de desalento e aponta o mar que nos beija os pés. "Isto está feio" — e com três palavras narra toda a vida da sua aldeia habitada por umas tantas dezenas de famílias de pescadores.

Fonte da telha, década de 1950.

Fonte da Telha. A dois passos de Lisboa, quatro ou cinco quilómetros da Costa da Caparica, perdeu agora, Verão fora, o cariz de estância balnear pobre, para ficar só o que realmente é durante todo o ano: uma pobre aldeia de pescadores.

"Mesmo isso da praia está-se a perder", lamenta António Caliço — "as pessoas estão a gostar mais de ir para a Lagoa, uns quilómetros mais abaixo." O homem aponta agora, num gesto enfadado de desalento, para a penosa ladeira de areia solta que constitui o único acesso à aldeia e à praia e conclui: "Só para não terem de subir isso as pessoas deixam de cá vir. Se não era para terem feito já uma estrada, caramba... são só cem metros..."

Escarpements formés par le Miocène et Pliocène entre Costa de Caparica et Adissa [Adiça], cliché P Choffat, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

E é verdade. Nos últimos anos o único melhoramento de vulto conhecido pela aldeia da Fonte da Telha foi o posto da Guarda Fiscal, que serve para cobrar o imposto de pescado dos habitantes. O posto fica cá em cima, no alto do que deve ser o talude mais penoso de descer e, sobretudo, de subir. Quando o peixe arrastado para terra se estende na areia, com as famílias dos pescadores todas reunidas à sua volta, a Guarda Fiscal encarrega-se de proteger os legais direitos do Estado, cobrando o imposto devido pela pesca.

Um viver primitivo e sem perspectivas

António Caliço é um dos 19 membros da companha do arrais Noel Monteiro. "Se quiser mandar-me os retratos é só escrever: António Caliço, Arte Sineira, Fonte da Telha. Vem cá ter."

Arte Sineira é o tipo de pesca utilizado pelos pescadores da Fonte da Telha. Um ramo de arte xávega da Nazaré. Os barcos partem para o largo, para lançarem as redes em pontos determinados da costa. As artes ficam armadas durante todo o dia ou toda a noite, conforme o caso. Ao fim do tempo considerado necessário que é condicionado pelo conhecimento que os pescadores têm dos hábitos do peixe, as redes começam a ser puxadas para a praia através de umas enormes cordas que se encontram presas nas extremidades do aparelho. 

Costa da Caparica, arte xávega, década de 1900.
Imagem: Hemeroteca Digital

Uma arte pobre, embora difícil e tremendamente arriscada. Toda a faina decorre junto à costa, o que obriga as tripulações dos pequenos botes a suportarem a violência da rebentação. Na maior parte dos dias não se pesca nada. Mas fica sempre a esperança de que na noite seguinte as coisas corram melhor. A vida na aldeia reflecte em pleno toda a falta de perspectivas de única actividade produtora da população. Todos sentem que a pescar por este antigo e ultrapassado método nunca sairão da miséria em que se encontram, mas nem dispõem de meios para sair do impasse nem parecem estar decididos a tal. É uma pobreza que se aceita por determinismo.

Meses inteiros desligados do mundo

Fonte da Telha vive separada do mundo por uma ladeira com cem metros de areia solta. No Verão sempre aparecem uns banhistas. 

Fonte da Telha, 1964.
Imagem: Memória com História

No Inverno só o contacto irregular com os negociantes de peixe. Mas quando a violência das ondas impede que os homens vão para o mar, a aldeia fica cercada por todos os lados. De uma massa ameaçadora do líquido oceânico. Do outro a vertente incómoda da areia solta.

Os negociantes deixam de aparecer, a aldeia isola-se e fica ainda mais triste e mais pobre. É um dia destes que chegamos à Fonte da Telha. Lá em baixo, as casitas de tábuas velhas parecem agachadas ante a rudeza descomunal da ravina. Não se vê vivalma. Dir-se-ia deserta. Uma aldeia abandonada provoca arrepios.

Mas vê-se agora uma rapariga que vai da barraquita de madeira para ir estender roupa no arame esticado em frente da habitação. Um pouco mais ao lado surge, de sob um barco voltado de boca para baixo, em sinal de paralisia que a fúria do mar impõe, um pescador de camisa axadrezada e calça de ganga arregaçada até aos joelhos.

Capa do livro de Alexandre Cabral, Fonte da Telha.
Ilustração Manuel Ribeiro de Pavia.

É o António Caliço. Olha-nos com certa reserva. Não é para menos. Estranhos lá em baixo, no dia pegado de chuva, é para espantar. As pessoas, as mulheres, as crianças e os pescadores, assomam-se às portas para nos espreitarem, roídas de curiosidade.

O mais pequeno rendimento per capita do país

"Pescador tem muitos filhos. Não pode ter mais nada, tem muitos filhos. Eu por acaso não tenho nenhum, sou solteiro. Mas há-os aí com sete e oito fedelhos e comê-los pelas pernas." António Caliço fala calmamente, dominado pelo fatalismo próprio do pescador isolado. Vê que está mal, que a aldeia está mal, que as coisas vão mal, mas não sabe como resolver a situação. Está convencido de que as coisas acontecem como têm de acontecer, sem remédio que o homem possa engenhar. "Umas vezes o peixe aparece e outras não. É tudo. Que pode um homem fazer? Quando o mar se zanga e quer meter-nos os barcos no fundo, como havemos de o sossegar, como?"

Festa infantil na Costa da Caparica, 1929.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

António Caliço bem vê os barcos grandes de pesca que passam ao largo, movidos por fortes motores, mas para ele constituem uma possibilidade tão remota que prefere não pensar nela. Falamo-lhe das modernas técnicas de pescar, das sondas electrónicas para detectar os cardumes, das descargas eléctricas com que alguns navios russos e norte-americanos aprisionam o peixe às toneladas, mas deixamo-lo hirto como um penedo. Vive tão intensamente a sua realidade de Fonte da Telha que prefere não agravar ainda mais o seu sofrimento a sonhar sonhos impossíveis.

A Fonte da Telha (Costa da Caparica, Praia do Sol), Cruz Louro, 1937.
Imagem: Cruz Louro

Fonte da Telha possui três artes sineiras

São três as artes de Fonte da Telha. Cada uma compreende 19 homens que se associaram em sistema cooperativo. Para o mar, na operação sempre arriscada do lançamento das redes, vão oito. Seis encarregam-se dos remos, um toma conta da corda que prende as extremidades do aparelho e que o puxará no final da faina para terra, o oitavo vai à espadilha. Os onze restantes ficam em terra para colaborarem na penosa operação do puxamento da rede.

As contas são feitas, ao fim de cada faina, segundo normas tradicionais estabelecidas há dezenas, senão centenas de anos. O produto total da pesca é dividido em 14 partes. Os homens que foram ao mar recebem uma destas catorze partes. Os que ficaram em terra para puxar as redes recebem meia parte. Nos últimos meses os que foram ao mar saíram-se com "uns 800$00 por mês, enquanto os que ficaram em terra, não ganharam mais do que uns 500$00".


Claro que os pescadores e as suas famílias não ganham só dinheiro: também comem peixe, o peixe que pescam. "Na maior parte dos dias" — diz-nos António Caliço — "o que pescamos é distribuído quase inteiramente por todos, para que haja de comer nas casas dos pescadores".

Muitos dias nem para se comer se apanha. Por cima dos telhados vêem-se ainda restos de peixe exposto ao sol para secar, que constituirá nos dias mais negros do inverno que se aproxima o alimento base do povo de Fonte da Telha. É peixe de manhã à noite. Peixe ao pequeno almoço; peixe ao almoço; peixe ao jantar; e só não é peixe à ceia por que o pescador da Fonte da Telha mal suporta os encargos das três parcas refeições a que está habituado.

As crianças vão a uma escola das redondezas, mas quase todas ficam pela terceira classe. As raparigas ficam em casa para ajudarem as mães na lida da casa; os rapazes ou ensaiam os primeiros puxões na corda da velha arte sineira, ou sobem a ravina de areia, para irem trabalhar na serventia para o Alto do Grilo, Costa da Caparica ou outra terra das proximidades.

Todos desejam afastar os filhos da miséria do pescador

São, contudo, muito poucas as crianças da Fonte da Telha que hoje se iniciam na arte sineira que apaixonou os seus descendentes nos últimos séculos. São os próprios pais e ainda mais as mães que tudo fazem para os afastar do fascínio do mar. Só os que de todo em todo não podem é que não mandam os filhos aprender outro ofício sobretudo na construção civil.

Festa infantil na Costa da Caparica, 1929.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

É o esboçar de um movimento de fuga que é incutido nos mais novos pelos mais velhos, que conduzirá fatalmente à extinção das aldeias de pescadores que guarnecem a orla marítima portuguesa e de que Fonte da Telha, a dois passos de Lisboa, é um caso típico. (1)


(1) António dos Santos, Notícias da Amadora, n° 348, 21 de dezembro 1968
Enviada a Censura em 1968-12-16, Decisão: Cortado Nº de linguados: 4


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