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sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Na Trafaria, cena da borda-de-água

Não — tinha eu dito comigo logo de manhã cedo, ao abrir a minha porta e ao contemplar o mar —, com um tempo destes é que eu não vou trabalhar. Para onde eu vou é para a pesca.

Trafaria, ilustração Roque Gameiro, 1899.
Imagem: Hemeroteca Digital

E, trazendo o cesto com os aparelhos para a beira da água, sentado no chão, em mangas de camisa, arregaçado até os joelhos, com os pés nus na tépida consolação da areia, abri a minha faca e pus-me a cortar sardinha e a iscar os anzóis. A melhor camada é o casulo; mas nem sempre se pode ter casulo e nestes casos é preciso cortar a sardinha em regra, diagonalmente, e saber metê-la no anzol, enfiando-a na metade do lado da cabeça por um dos olhos, dando-lhe uma volta com a espinha na outra metade. É um trabalho engenhoso.

Balançando na água, o meu bote esperava por mim amarrado à fateixa. Uma intensa luz de um azul de turquesa envolvia a grande natureza ridente, salgada das exalações da água, cheirando aos mexilhões frescos que dois barcos saveiros em forma de meia-lua estavam pescando no Calhau, a trinta metros da praia para o lado do Bugio.

Os primeiros bandos de rolas, picadas pelo vento leste, cortavam o espaço num voo doce, fazendo tremular na areia reluzente da vazante a sombra pardacenta e fugitiva das asas. Alguns maçaricos reais debicavam a salsugem da maré em pulos esbeltos, prateados pelo sol.

— Vê aquela rapariga que vai saltar com um pequeno ao colo para o bote branco que está amarrado ao nosso? — disse-me o pescador José Pirralho, que iscava também um aparelho, acocorado no chão ao pé de mim.

Aquela é a Rita Carrã que vai a Lisboa ver o marido, o João Galhote, do brigue Ligeiro, que entrou hoje de madrugada. É um brigue que anda no mar há perto de um ano.

O João Galhote embarcou logo depois de casar. Esteve apenas três meses com a mulher e vai ver agora o filho nascido, que ele ainda não conhece...

— Olá, ó tia Rita! se o seu José vier logo consigo para baixo faça sinal do bote com o lenço, que é para lhe botarmos um foguete e para repicarmos o sino.

E ela, em pé na embarcação, rindo, vestida de festa, com o pequeno rechonchudo e louro sentado no braço, agradecia dizendo adeus com a mão — Até logo! até logo!

Portugese Shipping in the Mouth of the Tagus, S. Clegg, 1840.
Imagem: BBC Your Paintings

Deitado o aparelho, lancei a minha bênção à boia e remei para terra. Boa coisa, remar! De calças arregaçadas e pernas nuas, com o peito ao vento, a elasticidade de um bom remo espadeirando a água comunica-se ao nosso arcaboiço, e parece que nesse exercício triunfal todos os ossos cantam como canta o estorvo de couro cru amarrado ao tolete quando se pica a boia.

Dizem os do Algarve, que, para remar, tudo puxa desde as unhas dos pés até às pontas dos cabelos. Quando se rema estirado, pranchando o corpo todo no mergulho do remo, o esforço empregado distribui-se igualmente por todos os músculos das pernas, dos braços, do tórax e dos rins, dando a máxima plenitude da força, a mais intensa sensação de poder e de vitória.

Remar é dizer ao oceano — Chegue-se para trás que vai aqui um homem! — e ver o oceano obedecer.

Tinha vindo para casa almoçar e esperar à sombra a maré para levantar o aparelho, quando ouvi gritar por socorro na praia. 

Chego à janela e vejo na água límpida e serena, beijada do sol do meio-dia, as duas mãos de um homem que se afundia junto de um bote amarrado a oito ou dez braças da terra.

Alguns pescadores saltam num saveiro varado na praia e remam para o ponto em que se tinham submergido as duas mãos que eu vira agitarem-se no ar. Sonda-se o lugar; procura-se por toda a parte, com cabos, com remos, com varas; lança-se uma rede. É tudo inútil. O afogado desapareceu.

Trafaria, Vista da Praia, ed. Manuel Henriques, 15, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Era um operário padeiro, de vinte e três anos de idade, o José da Viúva, que sustentava a mãe, paralítica, e duas irmãs. Fora banhar-se ao despegar do trabalho antes de ir jantar, e estava já em terra quando se lembrou que enchia a maré e que deixara longe o bote de que se servira para saltar de mergulho no mar.

Entrara na água outra vez para alar o bote, e foi então que lhe faltou o pé, que o arrastou a corrente, que se afundiu. Falou-se do caso uma hora entre os grupos dos marítimos deitados na praia ao sol.

— Aquilo não foi senão coisa que lhe deu pela cabeça...
— Ou dor!
— Que ele diz que falou ao vir acima...
— Pois sim; mas nada explicou. Mãe! mãe! foi a única coisa que ele disse.
— Com o que a água puxa para cima o corpo vai lá dar para o Porto Brandão ou para Cacilhas...

E depois, a pouco e pouco, como vinha chegando a hora de levantar os aparelhos e de recolher as redes, os botes começaram a largar para o mar, uns depois dos outros, e a praia ficou deserta sob a grande alegria do céu, no suave rumor da vaga, entrecortado de espaço a espaço pelo gemer dos moinhos e pelo cantar dos galos.

Sentia consideravelmente atenuado o meu apetite aos chamirros e aos robalos a que deitara o aparelho, e uma atração magoada prendia irresistivelmente os meus olhos ao ponto do mar em que eu acabara de ver aquelas duas mãos brancas agitando-se convulsas ao lume de água, como as asas de uma gaivota ferida.

Foi a olhar para esse ponto que descobri de repente, ao pé da praia, o bote branco que levara para Lisboa a Rita Carrã. Lembrou-me o sinal do lenço, mas o bote não deu sinal.

Barcos junto à torre do Bugio, Alfredo Keil (1850 - 1907).
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Além do remador, que vinha deitado à popa, segurando a escota da vela, o bote não trazia mais ninguém senão a Rita com o filho nos braços.

O José Galhote morrera tísico na torna-viagem do brigue Ligeiro.

O bote branco, que saíra da Trafaria com a festa da esperança e que voltava com a desolação da viuvez, deixou cair a vela como uma continência funerária sobre o mesmo lugar em que se submergira o José da Viúva, e esta bela e comovente cerimónia do acaso fez-me ter inveja ao destino do morto.

Pobre José da Viúva! o teu modesto nome, triste e simpático, não será repetido em artigos banais pela Imprensa, nem figurará em epitáfios idiotas nos mausoléus do cemitério dos Prazeres.

O prior da tua freguesia, ultimamente acusado de ter morto com uma paulada na cabeça uma das ovelhas do seu rebanho, não veio grunhir o latim da agonia sobre a tua última hora.

Trafaria, Vista parcial e estrada da Costa, ed. J. Quirino Rocha, 2, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Invocando o nome da tua mãe, expiraste na mais doce e na mais incontestada das religiões, a religião do amor.

Sepultando-te no mar, libertaste-te dos gatos-pingados, dos chantres, dos veludinhos pretos franjados de galões amarelos, dos pingos das tochas, do badalar dos sinos nas torres, do pregar dos alfinetes na mortalha, de tudo enfim quanto desnatura a morte, tornando lúgubre e repulsiva a doce passagem da luta inclemente da vida para o repouso do nada.

Trafaria, a praia.
Imagem: Delcampe

Nessa noite o chinchorro do tio António Janeiro trouxe para terra um cadáver de envolta com os linguados que foi pescar à meia-noite, e o tio João Loira, velho fadista, foi mais uma vez requisitado em nome da caridade para depor por alguns minutos a sua guitarra no chinquilho do Marcelino e ir, piscando os seus olhinhos vermelhos e cantarolando o Quizumba, abrir a cova e enterrar o José da Viúva debaixo dos três ciprestes que ensombram o cemitério da aldeia. (1)


(1) Ortigão, Ramalho, As Farpas

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