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quarta-feira, 9 de setembro de 2015

1876, um eremita

O reverendo padre Hughes é um sacerdote cujo único defeito conhecido é julgar-se no tempo do imperador Décio, o furioso perseguidor da cristandade, duzentos anos depois de Cristo.

Igreja do Corpo Santo, fachada principal, Paulo Guedes, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Confundindo o Sr. Fontes Pereira de Melo com o temível imperador romano, o reverendo Hughes fêz como S. Paulo o Eremita: fugiu da comunicação dos homens, do Chiado e do Diário de Notícias, sacudindo as suas sandálias no Atêrro; e, não tendo à mão o deserto da Tebaida, tomou o vapor de Cacilhas, e foi estabelecer na outra banda a sua cabana anacoreta.

O rio Tejo e a igreja de São Paulo, no Largo do Corpo Santo, Francesco Rocchini, finais do século XIX.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

S. Paulo tinha por habitação uma caverna anteriormente habitada por um moedeiro falso do tempo da rainha Cleópatra, tinha a pura fonte cristalina brotando do seu rochedo, óptimas tâmaras para a sua sobremesa, e meio pão, o qual, segundo se lê em S. Jerónimo e em S. Atanásio, era trazido fresco ao santo eremita, em cada manhã, por um corvo.

Por ocasião da visita piedosa de Santo António [Santo Antão] a S. Paulo, o corvo, vendo que havia uma boca a mais no santo deserto, começou a apresentar-se em cada dia com um pão inteiro suspenso do bico.

S. Paulo vestia uma túnica feita de folhas de palmeira, a qual veio a ser herdada como relíquia por Santo António no dia em que S. Paulo expirou, aos 112 anos de idade, havendo comido com resignação e fervor todos os meios pães que sucessivamente lhe haviam sido levados pelo corvo.

Santo Antão e S. Paulo 1.o Ermita, Mestre dos Arcos,
(Gregório Lopes ?).
Imagem: MNAA

Não é de presumir que, além da água da Fonte da Pipa, o reverendo Hughes tenha enctontrado na Outra Banda os elementos da vida retirada e contemplativa que S. Paulo gozou na Tebaida. 

Para o efeito dos alimentos e do vestuário o reverendo Hughes ter-se-á visto obrigado, talvez, a substituir o corvo por um padeiro e a palmeira por um algibebe, o que todavia não obsta a que ele esteja do mesmo modo livre, como S. Paulo, dos furores de Décio, o tirano.

Graças à Fonte da Pipa e aos seus respectivos cabos de polícia, os dias do eremita Hughes tão serenos e pacíficos têm decorrido na Outra Banda que o ilustre sacerdote resolveu atravessar as águas do Tejo e vir por meio de práticas na igreja de S. Paulo convidar a acompanhá-lo às doçuras do ermo os cristãos da banda de cá, que não quisessem prestar a cerviz ao alfanje do bárbaro imperador Décio Pereira de Melo.

Fontes Pereira de Melo, por Raphael Bordallo Pinheiro.


O reverendo Hughes determinou subir, pois, na  semana passada ao púlpito da igreja de S. Paulo e começar a série das suas práticas tendentes a convencer os cristãos dos perigos que deles correm no meio da vida mundanal, e bem assim dos santos prazeres que os esperam na paz dos cenóbios, se eles se resolverem a ir à Outra Banda e entregarem-se à penitência, ao jejum e ao burro de Cacilhas, desviado pelo reverendo Hughes da carreira da Cova da Piedade para a da terra da Promissão.

Sabe-se quanto os nossos templos modernos estão longe do frio desconforto das primitivas catacumbas, das criptas e das cavernas sepulcrais em que os primeiros cristãos se refugiavam para escaparem à perseguição dos Governos, para celebrarem as belas cerimónias do culto primitivo e para enterrarem os seus mortos santificados pelo martírio.

A Igreja tem sido verdadeiramente incansável nos últimos tempos em atrair a piedade ou em a conservar por meio das sucessivas comodidades e dos prestígios espectaculosos.

Há os órgãos, em que por ocasião dos santos sacrifícios se tocam os trechos sentimentais de Verdi e de Bellini. As epistolas de S. Paulo e o evangelho de S. Mateus acompanham-se, para recreio aos fiéis, com os suspiros de Margarida Gautier e com a romança de Armand Duval. As palavras da confissão casam-se com o cancã da "Bela Helena", e a hóstia sagrada eleva-se ao som da ária "Rien n'est sacré pour un sapeur".

Além disso há os tapetes, há as jarras da Índia, há as almofadas de veludo, os belos quadros de virgens louras, de simpáticos santos romanescos, como S. Francisco Xavier, de fidalgo perfil e fino bigode, de Nossa Senhora de la Salette, representada de pequenina touca encanudada, saia curta e avental guarnecido de pompons, como as travessas "soubrettes" de Molière.

Temos as devoções de recreio em comboio expresso a preços reduzidos para Notre-Dame de Lourdes, milagre e jantar por cinco francos, de carne ou de jejum, vinho à parte.

Há, mais em moda, ainda, recentemente, as piedosas romagens a S. Dinis, que tem uns poucos de corpos, um na igreja de Paris, um na de Ratisbona, um julgado autêntico por Leão IX, um mandado ter como genuíno por Inocêncio III, e outros, entre os quais pretendem alguns arqueólogos que se achará o do deus Baco, chamado Dionisius, de cujo culto cristianizado na Gália proveio a legenda de S. Dinis.

Os conventos pela sua parte abandonaram também a confeccção dos milagres e das tradições maravilhosas e tremendas para empregarem todos os esforços da sua química na especialidade dos mais saborosos e estomacais licores : o dos Beneditinos, o Kermann, o Chartreuse, e outros.

A Semana Santa, destinada a comemorar o lance mais dramático e mais sublime da história de Jesus, converteu-se num pretexto de viagens ã Andaluzia, às famosas touradas em que Sevilha reúne os primeiros espadas e os primeiros aficionados ao "boi de morte", e à celebre feira em que o velho salero revive um momento, sorrindo sob o véu mourisco, ao vago rufo longínquo de históricos pandeiros.

Em Lisboa o mesmo tempo é um abismo de amêndoas, de "bons-bons fondantes", de "croquettes ã la vanille", de rebuçados de ovos, e de outras doçuras com que a Confeitaria Italiana e os bufetes de Baltresqui celebram a Paixão.

Os livros da oração e da missa converteram-se em obras-primas de tipografia e de cartonagem, de tão altos preços que não permitem que ninguém reze com decência por menos de duas libras.

As igrejas são, como os clubes, o prazo dado à reunião por categorias das diferentes classes sociais.

No Loreto, à missa da 1 hora, reúne-se a burguesia frequentadora do Passeio do Rossio e dos bailes do Clube.

A nobreza de "l'ancien régirne" vai à Graça, aos Anjos e ao convento de Santos, onde na penúltima sexta-feira da Quaresma há procissão de senhoras, com rifa e chá.

No convento da Encarnação, pelo oitavado do Corpo de Deus, há igualmente rifa, chá e recepção à noite.

Lisboa, portal do convento da Encarnação,
Alfredo Roque Gameiro, 1925.
Imagem: www.roquegameiro.org

A alta finança tem procurado pôr em moda com as suas novenas Santa Isabel e a Lapa.

A aristocracia oficial, a nobreza militante, a fina flor da moda, não vai senão aos Inglesinhos e a S. Luís dos Franceses.

Os devotos escolhem nestes quatro círculos a missa que convém à sua educação, ao seu nascimento, à sua fortuna e à ordem das relações que cada um deseja cultivar.

Com a religião em tal estado é realmente preciso ser-se bem indiferente aos atractivos do luxo, da elegância, da moda, da convivência e da boa companhia para se não ser um firme e fiel católico!

Ter uma religião fácil, elegante, alegre, ao abrigo de toda a perturbação, mantida pela Carta, vigiada pela polícia, defendida pela guarda municipal; ter ao mesmo tempo uma porta aberta para a sociedade, para a consideração, para a estima pública, para os altos cargos do Governo, para as finas festas e para os belos salões escolhidos, e outra, porta aberta para o céu, para Deus, para a bem-aventurança; estar provido de orações e de indulgências para cada pecado, de sorte que se pode, ao fim de cada ano de vida, receber carta de limpeza para urna eternidade de promissão; ser, graças à confissão, tantas vezes delinquente quantas vezes amnistiado; olhar em volta de si, na humanidade, ver milhares de milhões de almas perdidas por falta de padres, de indulgências plenárias, e de bulas pontifícias, e ponderar que o Inferno tem muito em que se entreter para queimar competentemente os outros, enquanto nós estivermos consoladinhos, na comedidade celestial, como assinantes antigos do Paraíso, binoculando dos nossos "fauteuils" as trágicas visagens carbonizadas dos bárbaros e dos hereges rechinando  no fogo eterno!... 

Que mais pode exigir ao mundo e ao céu, ao tempo é à eternidade, o profundo e imenso egoísmo do homem?

O programa do mais humilde e obscuro beato deixa a perder de vista os sonhos mais excessivos em gozo de Nero e de Sardanagalo — uns pobres diabos a quem ali o sineiro das Mercês, uma vez na eternidade, terá o direito de torcer uma orelha a troco de um simples padre-nosso!

O clero porém continua a recear que todas estas vantagens não cheguem para preencher a aspiração dos entes bem formados, e todos os dias continua ainda a acrescentar tanto quanto pode os interesses e os atractivos do culto.

Assim, quando o reverendo Hughes se apresentou, acolheu-o o mais vivo e simpático alvoroço. Um enorme êxito estava destinado a saudar a sua aparição na Igreja de. S. Paulo. Ele não tocava órgão de uma maneira sensivelmente arrebatadora; ele não possuía absolutamente para a execução dos sagrados motetes a fina voz preciosa dos antigos mutilados das reais capelas; ele finalmente não tinha à primeira vista nenhum dos belos talentos em que se fundam as reputações de sacristia.

Igreja do Corpo Santo, altar-mor,
Paulo Guedes, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Todavia a sua origem irlandesa havia-o dotado com a especialidade impagável da pronúncia dos ingleses de farsa, e não poderiam deixar de produzir o mais alegre efeito nas consciências as suas piedosas aplicações do "Amor Londrino" a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a nós mesmos.

Efectivamente à primeira prática do reverendo Hughes a Igreja de S. Paulo teve uma casa cheia, e nunca a palavra de Deus foi escutada nos templos cristãos com mais patente manifestação de alegria.

Estátua de Girolamo Savonarola (1452 - 1498) em Ferrara, Italia, por Enrico Pazzi, 1872.
Imagem: Flickr

Somente como um espectador interrompesse a ilimitada satisfação do auditório com uma tosse importuna, um padre português que assistia à prática descarregou algumas bengaladas no fiel cristão constipado.

Daqui, tumulto e desordem. Fervem os canelões e os murros, os chapéus-de-sol floreteiam no ar cruzando-se em golpes às cabeças, os homens praguejam, as mulheres gritam, as crianças choram, o reverendo Hughes desce amedrontado do púlpito, e os fiéis, que tinham ido ao templo pedir as unções da fé, acham mais urgente ir pedir tintura de arnica na botica ao lado.

Então a mesa da confraria de S. Paulo protesta contra as práticas do padre Hughes, comentadas à bordoada pela galeria. O Sr. Patriarca de Lisboa [Inácio do Nascimento Morais Cardoso, 11º Cardeal-Patriarca de Lisboa, 1871 - 1883] intervém, e eis o que Sua Eminência resolve:

"Sendo o catolicismo a religião do Estado, o Sr. Cardeal-Patriarca, autorizando a pregar o reverendo Hughes, declara que, com a intervenção da força armada, fará manter na igreja de S. Paulo o respeito devido à palavra de Deus."

Inácio do Nascimento Morais Cardoso,
11° Cardeal Patriarca de Lisboa, entre 1871 e 1883.
Imagem: Wikipédia

O caso do reverendo Hughes não teria grande importância, nem nós o haveríamos referido nestas páginas, se ele não houvesse dado origem a esta  declaração do Sr. Patriarca, publicada na maior parte dos jornais de Lisboa, sem todavia haver suscitado nem da parte da imprensa nem da parte do Parlamento os comentários que merece.

As palavras do Sr. Patriarca passaram despercebidas, certamente porque se não viu que elas encerram a ameaça de um acto de natureza inteiramente análogo ao da carnificina de Saint-Bartheliemy.

Carlos IX dizia: "A missa, ou a morte!" — o Sr. Cardeal-Patriarca diz: — "O sermão, ou a força armada!"

Há uma leve diferença nos vocábulos, mas o sentido jurídico das duas frases é absolutamente o mesmo. Por mais arcaica, por mais obsoleta, por mais absurda que pareça a cominação do Sr. Patriarca, ela é no entanto a consequência lógica da confusão entre o poder espiritual e o poder temporal mantida em pleno século XIX pela Carta Constitucional da monarquia.

As palavras do Sr. Patriarca provam patentemente que dentro da lei portuguesa um príncipe da Igreja está no pleno direito de decretar a Saint-Barthelemy.

O facto é de tal maneira expressivo e flagrante que, se em Portugal houvesse um Parlamento dotado de algum simples respeito pelo senso comum, bastaría enunciar aas palavras proferidas pelo Sr. Cardeal-Patriarca para que pelo voto unânime dos legisladores fosse de uma vez para sempre riscado da Carta o artigo sexto.

Enquanto ao clero católico não compreendemos qual é definitivamente a sua opinião acerca da intervenção da força nas relações do homem com Deus. Na Alemanha, quando Bismarck submete o clero católico à inteira vontade do Governo do império, o clero apela para as garantias espirituais, distingue os poderes, declara-se fora da lei civil, e os mais ardentes ultramontanos refugiam-se no principio de Cavour, e pedem em brados de justiça Igreja livre no Estado livre.

Em Portugal o mesmo clero perfilha a opinião do chanceler do império, ri com ele dos invioláves direitos da consciência, e pede a força armada para sustentar um sermão!

O clero, representado nas pessoas dos seus chefes mais augustos e mais conspícuos, não vê que se combate a si próprio e se dilacera a si próprio. No meio da crise suscitada pela ameaça do Sr. Patriarca o procedimento sublimemente filosófico do reverendo Hughes é superior a todo o elogio.

As suas meditações de eremita haviam-no instigado a vir da Outra Banda ensinar o caminho do aprisco a algumas ovelhas tresmalhadas pelo Aterro. As ovelhas não quiseram ouvi-lo e preferiram furar os olhos umas das outras com as ponteiras dos guarda-sóis.

O Sr, Patriarca ofereceu-se-lhe para mandar degolar pela polícia o rebanho inquieto.

O bom homem, que vinha como pastor e não vinha como magarefe, recusou a oferta, e a única coisa que fez vendo que lhe saíra o gado mosqueiro, foi cumprimentá-lo de longe, dirigindo-se à ponte dos vapores, sacudir o pó dos seus sapatos com o lenço destinado a receber no púlpito de S. Paulo o catarro da sua eloquência, e regressar para CaciIhas.

Costa da Caparica, Colégio do Menino Jesus dito "convento", imagem estereoscópica (detalhe), c. 1900
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Se alguma das andorinhas do nosso telhado se quiser encarregar de levar estas linhas à Tebaida do reverendo Hughes, pedimos a sua reverência que olhe de lá para a janela da nossa água-furtada, de onde lhe enviaremos as saudações mais simpáticas. (1)

Aforamento terreno com edificado,
Diário Illustrado, 9 de abril 1882.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal


(1) Ortigão, Ramalho, As Farpas, Volume 5, A Religião e a Arte, Lisboa, David Corazzi, 1888

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