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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Nas arribas do mar

Na margem esquerda, encontra-se a modesta estação da Trafaria, ao mesmo tempo povoação de pescadores. Bulhão Pato, que habita perto d'ahi, em Caparica, dá-nos uma viva descrição de uma pesca de sardinha, cheia de pitoresco local. (1)

O poeta Raimundo Bulhão Pato,
Miguel Angelo Lupi, c. 1880
Imagem: ComJeitoeArte

Há dias, abrindo o jornal — "A Caça" — deparou-se-me um artigo intitulado: Législation sur la chasse. Dizia: ..."Je revois encore les dunes sauvages qui s’étendent de Trafaria à Costa, où j’ai fait ma première chasse avec Bulhão Pato; les rizières et les côtes boisées du vallon d’Apostiça, etc."

O artigo era de Sampayo Osborne, que esteve em Portugal cerca de 25 annos; rapaz muito intelligente, illustrado, da família do conde da Povoa e primo da casa Palmella.

Caçador de sangue. Um desastre varou-lhe com um tiro, em França, uma das mãos, não sei se a direita, se a esquerda. Continuou, apesar d'isso, a ser espingarda de primeira ordem e, o que é mais, ao piano primoroso artista.

Durante largo tempo bateu as tapadas e montados com os reis do throno e os reis da caça. É provável que não o torne mais a vêr. D'aqui lhe envio um cordial e saudoso aperto de mão.

Em 1859 José Augusto Sacotto Galache e eu principiámos as nossas caçadas no Juncal da Costa. Pelas arribas as perdizes saltavam aos bandos; na planura as codornizes, as narcejas e outra caça de arribação abundantíssima. Vivíamos em Buenos-Ayres [à Lapa, Lisboa].

Vista do Tejo e da Torre de Belém tomada da legação britânica,
George Lennard Lewis, 1880.
Imagem: Sotheby's

No inverno, noite ainda, Lourenço da Pinha estava no caes de José António Pereira [freg. de Santos-o-Velho, anterior ao aterro da Boavista, actual Beco da Galheta], com os seus três filhos: o mais velho José, o segundo João, o terceiro Francisco, este muito mocinho ainda para as fainas da travessia do Tejo, às vezes bravias. 

É piloto da Barra há já muitos annos. Lourenço da Pinha nascera em Olhão, terra de marítimos, que folgam com o esbravejar das ondas como as aves marinhas.

Moço, veio para Belem e, ora com a mão no leme e na escota, ora no punho do remo, sempre de ânimo folgazão, coartada pronta e verboso como algarvio, lá foi mareando o barco, sustentando a mulher e criando os filhos.

Torre de Belém,
Frank Dillon, 1850.
Imagem: BBC Your Paintings

Morreu há bastantes annos, mas por todo o bairro de Belem e por todo este almaraz lhe relembram o nome honrado e benquisto.

José Augusto Galache, sem jactâncias nem farroncas, era um rapaz que não tinha medo do diabo à meia-noite. Agora lá está na sua propriedade do Freixo, ao pé de Valle de Lobos, tratando da sua lavoira, beijando a terra para manter as forças, sempre jovial e gentil-homem. 

A bravura e galhardia do cabo de forcados nas toiradas de amadores no Campo de Sant'Anna foi tal que ainda hoje corre na lenda entre os novos.

Um dia, em Dezembro, véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos. 

Lisboa, Sol Nascente,
Ivan Aivazovsky, 1860.
Imagem: WikiArt

Tempo sêcco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos:

— Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.

Havia águas de monte e o barco, mal clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda.

Os dois rapazes acompanharam-nos, e o pae ficou guardando o barco à nossa espera. Os terrenos planos e à beiramar do Juncal eram lenteiros, enchabocados, como dizem os homens do campo e os caçadores. 

Nós tínhamos dois cães soberbos: o Black de José Augusto e o meu Faliero. Ambos muito bem parados, cobrando de ferido, e trazendo à mão toda a espécie de caça.

Depois do ímpeto da primeira batida sentámo-nos num médão de areia, acudimos ao almoço, que vinha nas redes, e matámos a fome. Engolfámo-nos Juncal dentro. Quando demos por nós estávamos muito adiante das barracas da Costa.

Costa da Caparica, Praia do Sol, cliché João Martins, 1934.
Imagem: Praia do Sol (Caparica)..., Monografia de propaganda do Guia de Portugal Artístico

O estômago não tinha a mais leve memória do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o apetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? À sorte.

Entrámos na povoação. Tudo choças de colmo; muitas levantadas sobre o arcaboiço de um velho barco. 

Uma casa de um só andar, com armas reais, bojudas como o abdómen do ladino e bondoso monarca D. João VI, que foi alli por mais de uma vez. De pedra a cal meia dúzia de casitas mais, quando muito. 

Íamos andando por aquele labyrintho de cubatas e à porta de um ferrador demos com uma rapariguinha dos seus dez annos, de cara insinuante, vestido de chita, meias muito brancas, socos, cabello em trança e bem tratado.

— Ó pequena, olha lá. Haverá aqui alguma casa onde se possa ficar e se coma alguma coisa?

— Pois não há, meus senhores!... É a tia Maria Rita do Adrião — acrescentou, dando à sua voz crystallina certa expressão que indicava a grandeza da personagem a quem se referia.

Levou-nos à tia Maria, e tal foi o agasalho que por mais de trinta annos frequentei aquela casa com o melhor dos meus amigos. 

A Claudina, a rapariguita que fora a nossa salvação e a nossa guia, passados tempos casou e, já mãe de filhos, depois de eu estar n'este Monte, morreu, coitada, de uma pneumonia. 

Maria Rita do Adrião vive ainda; há dois annos que veio visitar-me, na sua burrita, muito lépida, com os seus noventa e três. 

Costa da Caparica,
Alfredo Keil (1851 - 1907).
Imagem: Palácio do Correio Velho

Teve sempre boa estrella; até na sua visita a minha casa o azar apenas lhe deu um rebate falso. Quando voltava para a Costa perdeu um objecto de certo valor, creio que um brinco, que mão piedosa achou e foi logo anunciar no Século.

Caparica, convento de Santo António,
Alfredo Keil (1851 - 1907).
Imagem: Rui Manuel Mesquita Mendes

Depois de devorarmos o jantar e pelos barqueiros mandar aviso aos nossos, sol alto ainda, sahimos até à praia. Era véspera de Nossa Senhora da Conceição, a grande festa annual da terra. 

Os habitantes é que estavam descoroçoados e tristes; a sardinha, a famosa sardinha da salga, não tinha dado nada ou quase nada. Mais uns dias de escassez e lá se iam as esperanças... o pão por muito tempo! 

Mar calmo. Na crista dos médãos, homens, mulheres, rapazes, mudos, immoveis, olhos cravados na companha, que lá muito ao largo vinha regressando. 

De manhã os alcatrazes [gansos-patola], de aza fechada, cahindo do alto como raios, picavam a flor das águas, indício de  grandes negras de sardinha. Pelo cariz do tempo, o lanço devia de ter sido grande. Chegaria a salvamento ou rebentaria o sacco?!

Silêncio profundo nos de mar e nos de terra. O silêncio é signal certo de grande preoccupação de espírito nos moradores de povoações marítimas, tão vivos e loquazes.

Ao rés do mar grandes grupos moviam-se visivelmente inquietos. Com o sol, que já no ponente batia o areal, aquelas figuras pareciam tomar proporções gigantescas, cingidas de nimbos de oiro. 

Costa da Caparica, Praia do Sol, cliché João Martins, 1934.
Imagem: Praia do Sol (Caparica)..., Monografia de propaganda do Guia de Portugal Artístico

O sol, as montanhas, o mar, as soberbas e solemnes paizagens, em vez de apoucarem o homem, engrandecem-no. 

Numa linha de fortificações ondulada de montes e crespa de píncaros, antes de romper o assalto, os ajudantes-de-ordens, cruzando-se na carreira, a dois exércitos podem afigurar-se hipogrifos phantasiados pela veia fecunda de Boiardo ou de Ariosto [in Orlando Innamorato e Orlando Furioso resp.].

A paizagem parece dar e receber, às vezes, commoções trágicas. O facto é que exerce nos espíritos acção profunda, embora ignota. Uma tempestade, nas serranias ou no oceano, improvisa heroes, como os relâmpagos das espadas e o trovão das baterias no campo da batalha.

À beira de água principiou a correr um torvelinho, levantando pyramides de areia. De repente uma lufada súbita correu violenta.

Os prodromos do furacão têm rugidos dolorosos como os do leão na entrada da febre. Daria numa tempestade? Quantos corações ficaram apavorados em tal momento!

Os barcos aproximaram-se de terra. A multidão silenciosa. A vaga alta como de mar movido ao longe, embora não arrebatada. Num ai tudo salvo ou tudo perdido!

O sacco... a montanha de prata, estava a salvamento na praia. Raros olhos ficariam enxutos vendo rebentar a alegria d'aquelle povo!

Costa da Caparica, Praia do Sol, 1934.
Imagem: Praia do Sol (Caparica)..., Monografia de propaganda do Guia de Portugal Artístico

O sol, disco de fogo, tocava a superfície das águas, que serenavam, passada a borrasca ephemera, permitindo que olhos humanos se cravassem no seu ocaso esplêndido.

Em breve a linha arenosa e já desmaiada, que segue até o Cabo, a bahia de Cascais, os picos de Cintra, os montes e povoações do norte, o Tejo dormente, desvaneciam-se no breve crepusculo das tardes de inverno.

O pharol do Espichel, girando as suas aspas de fogo intermittentes, parecia abrir sulcos luminosos pelo mar levemente enrugado. 

Bugio e São Julião accendiam-se. As estrellas estremeciam no firmamento límpido. Noite coroada de lumes.

Bugio e Forte de São Julião da Barra.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

A aragem era um alento virgínio, e a vaga na praia um suspiro amoroso. As redes voltaram ao mar. A companha bradou a uma voz:

Bulhão Pato,
Columbano Bordalo Pinheiro, 1883.
Imagem: MNAC

— Avé, Maria puríssima! (2)



(1) Teixeira Judice, Antonio Arroyo, Notas sobre Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908
(2) Bulhão Pato, Raimundo António de, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1894


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