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quinta-feira, 3 de março de 2016

Mais lindas que a luz do sol

Fedelha, rabejou pela areia, a mastigar broa e peixe, endureceu para mil inclemências. 

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica (detalhe), 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Nos verdes anos, fora delgadinha como junco, uma trança a roçagar pela anca, seios duros que a impediam de debruçar-se, no enxergão.

Branquinhas, avaramente atafulhadas nos panos das saias, às suas pernas nem o rabo do olho do Bernardino lá trepara.

Vivia-se sob junco e colmo, tornavam-se fastios quando o peixe não andava de través, mas nem por isso a praia deixava de possuir moças mais lindas que a luz do sol...

Os Faroleiros de Raul de Caldevilla (detalhe), 1922.
Imagem: CINE-PT CINEMA PORTUGUËS

Vira-te ao norte
eu estou viradinha ao sul...


Pelas rodas do S. Pedro, fogachos crepitavam noite adiante — e os olhos dos rapazes mordiam-nas de desejos...

o luxo das raparigas: 
saia branca e barra azul.

Então, um homem valia tanto como uma mulher: quando a possuía, ia tão inteirinho como ela...

Casamento aprazado tinha que se lhe dissesse. Não era qualquer catraio que suportava tão sério encargo. Se um rapaz "arreava" o dinheiro nas mãos da conversada, todo o mundo os considerava unidos para a vida e para a morte e só não se "amanhavam" os parvos...

Havia, então, um dia escolhido — o mais lindo na vida de uma rapariga de Caparica! — em que os dois abalavam cedinho para a Trafaria, metiam-se no vapor e iam fazer compras a Belém:

1 — cama
1 — colchão
1 — cobertor
1 — mala
6 — toalhas e...


uma peça de pano cru para lençóis, travesseiros e almofadas.

Era o dia mais feliz na vida de uma rapariga de Caparica! Nunca os olhos se mostravam tão brilhantes, a boca tão levada a sorrisos.

Recebia da casa paterna os arranjos de cozinha: fogareiro, tachos e talheres, e só mais tarde, quantas e quantas vezes já com filhos a gatinhar, o casal se metia a segunda despesa:

1 — lavatório
1 — mesa
6 — cadeiras de pinho.


E, assim, as moças casavam, enchiam-se de filhos, e punham-se umas caras de velhas...

A Praia do Sol, O mercado, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 109.
Imagem: Delcampe

Rapariga nã te cases
logra-te da boa-vida!


A boa-vida era ajudar a mãe em toda a lida caseira, calcorrear para a venda com a canastra à cabeça e pegar nos irmãos que so-bejam dos braços maternos!...

Eu já vi uma casada
chorando de arrepindida!


"É mentira! Chora-se por outros motivos: arrepindimento, não. O mar alguma vez já se arrepindeu de tar com a areia?! A áugua que escorre da rocha nã quis alguma vez esse caminho!? O corvo já pensou em trocar as suas penas negras par as brancas, da gaivota!?"

Pescadores e Varinas, Manuel Ribeiro de Pavia.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Também a ti Palmira nunca chorou de arrependida.

Somos varinas
vamos à praia... 


"Digo eu que o destino de cada um é coisa tão rigorosa pró rico como pró pobre... Tanto faz que uma alma chore baba e ranho, como não. A coisa tá só em cada um de nós poder adevinhá-lo... Atão é que se evitam muitas asneiras e desgostos! ..."

Costa da Caparica, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins, década de 1930.
Imagem: Fundação Portimagem

Os nossos homens
vêm cansados
vêm arribados
do alto mar... (1)



(1) Romeu Correia, Calamento, Lisboa, Editorial Minerva, 1950

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