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sábado, 9 de abril de 2016

Em casa de Alexandre Herculano

Alexandre Herculano, quando eu fui para a sua casa [em 1847], começava a escrever o segundo volume da História de Portugal. O primeiro fôra publicado havia pouco. O "Monge de Cister" estava no prelo : succedia ao "Eurico", á "Abobada", ao "Bobo", ás "Armas por fôro de Hespanha". O auctor cumprira trinta e sete annos n'aquella primavera.

Casa de Alexandre Herculano na Ajuda, Largo da Torre, Alberto Carlos Lima, década de 1910.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Os rapazes do cerco do Porto, se baviam corrido por cima das ondas, voltando do exilio, se marchavam rápidos pelas assomadas das serras, fraguedos e desfiladeiros, carregando o inimigo, vamos que não caminhavam devagar pela senda das letras!

Na Ajuda, hoje animada e ruidosa com a presença da corte, reinava n'aquella época o silencio e a solidão quasi completas.

Da antiga Patriarchal, ninho tépido e macio, recheiado pela mão paterna do absolutismo com o cibo apetitoso, que regalava o paladar exquisito dos filhos segundos das casas fidalgas, convertidos em recebondos, anafados e pachorrentos cónegos, da antiga Patriarchal, digo, não existia mais do que a torre.

Lisboa, Ajuda, Largo da Torre Paulo Guedes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O bronze, que dava as horas, tinha um som redondo, sonoro; ao mesmo tempo melancólico e profundo. Dir-se-ia que denunciava saudades do passado, mas que se resignava com o presente. Saberia elle que o bronze è a voz do tempo? É possível [...]

Como o sino da Ajuda, alem de estar n'uma torre, está n'um alto, ha de ter visto muita cousa, e ha de ter muito que dizer; mas não diz nada a mais das horas e dos quartos, que o ponteiro lhe marca. Com tamanho badalo nunca vi quem badalasse menos!... Talvez que eu, algum dia, venha a badalar por elle.

A janella do quarto de trabalho deitava para o Tejo. No meio da verdura dos quintaes e das hortas resaíam as casas, que se agglomeravam pela encosta até á beira do rio. Os montes do outro lado.

Se a margem esquerda do Tejo fosse arborisada de pínheiraes, como é a do Douro, que aprasivel efifeito não produziria no animo do viajante, que já vem maravilhado com a entrada da barra de Lisboa.

A vista dilatava-se pelo espaçoso largo, descia pela encosta. ingreme, e espraiava-se pelas aguas transparentes do rio.

O gabinete de estudo era pequeno. No inverno aconchegado, agasalhado ou "confortável", como agora se diz. Na primavera e verão abria-se a grande janetla, e arejava-o a brisa fresca do mar.

Uma janella que deita para o mar desafoga os pulmões e também a alma.

Casa de Alexandre Herculano na Ajuda, Largo da Torre (detalhe), Alberto Carlos Lima, década de 1910.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Havia n'aquelle quarto um fogãosinho, a mesa de trabalho, e uma enorme cadeira estofada e forrada de marroquim verde, cadeira como não conheço outra, obra traçada pela cabeça de um allemão, e feita de molde para as meditações dos sábios.

Eu, por mim, achava-a deliciosa para me aninhar dentro d'ella e dormir regaladíssimos somnos.

Sobre a mesa, coberta de papeis, um grande tinteiro de latão, como os das antigas secretarias e as pennas de pato — sem contar com as minhas — que eram bem raras n'esse tempo! Pelo chão, os livros, os infolios, e as notas com signaes, que eu suppunha cabalísticos [...]

A desordem, apparente, dos livros e dos infólios, a immensidade de notas, dispersas como baralhos de cartas, que se atirassem ao acaso; todo aquelle labyrintho era a ordem, a classificação mais perfeita para o grande escriptor.

Quasi pelo tacto ia pôr a mão no documento de que necessitava, fosse embora das mais exíguas dimensões.

No inverno accendia-se o fogão. Assim que o sino dava as onze da noite, fosse qual fosse o trabalho, e por mais embebido que estivesse n'elle, o dono da casa depunha a penna, conversava uns dez minutos, encamínhava-se para o seu quarto, e logo que encostava a cabeça na almofada, adormecia de um somno reparador e profundo até ás seis horas do dia seguinte.

Lisboa, Ajuda, Eduardo Portugal, 1939.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A boa divisão do tempo, a regularidade de vida, a assiduidade no trabalho; reunidos a poderosas faculdades intellectuaes, venciam as inauditas difficuldades, que se apresentavam a cada passo diante do escriptor, que tinha de desentranhar das minas da historia, occultas nos recessos dos archívos, o oiro, que, depois de lavrado e polido, devia de ser um monumento de gloria para nacionaes, e de admiração para estrangeiros. (1)

A casa da Ajuda era, n'esse tempo, a mansão tranquilla, onde, á sombra do mestre, estudava um grande talento, Rebello da Silva, e eu balbuciava, timido, os primeiros versos.

Sim! Tranquilla e salutar!
Oh! mia casa romita e serena!...
Que saudades tenho tuas!

Lisboa, Ajuda, Eduardo Portugal, 1939.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Levantavamo-nos um pouco depois das seis horas da manha.

O mestre sempre o primeiro. Ia dar uma vista d'olhos ao jardim. Não lhe faltava, na estufa, uma transplantação, o decote ou o enxerto de uma roseira primorosa; o ramo de flores para a mesa, arranjado pela sua mão, no que tinha dedo. Depois sentava-se á mesa e trabalhava. Ordinariamente hora e meia, até ao almoço.

Os invejosos mordazes até inventaram que Alexandre Herculano era homem áspero e brutal no trato!

Não conheci ninguém mais sincero, mais simples, e ao mesmo tempo mais amoravel, e, sem affectação, delicado [...]

Voltemos a 1847. Alexandre Herculano escrevia a Historia de Portugal, e concluia o Monge de Cister, publicado, pela primeira vez, em volume em 1848.

Lisboa, Ajuda, Eduardo Portugal, 1939.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Almoçávamos ás oito e meia — café especial, pão saloio e a preciosa manteiga fresca, fabricada com o leite dos uberes túrgidos das anafadas e luzidias turinas, que repastavam na arribana da horta da calçada do Galvão.

Aquella horta tem destino de pertencer a homens superiores. Ha muitos annos que a cultiva José Eduardo de Magalhães Coutinho.

Depois do almoço Herculano sentava-se á banca do trabalho; Rebello da Silva descia á bibliotheca a estudar. O estudo, que foi sempre uma predilecção para elle, n'essa epocha era uma paixão desenfreada. Muitas vezes, logo sobre o jantar, a despeito das salutares advertências do mestre — que de tarde nem abria livros, nem pegava em penna — atirava-se ao trabalho.

O jantar era ás duas e meia em ponto. A toalha alvíssima. O ramo de flores, renovado todos os dias. A cosinheira excellente. Vinho branco e tinto da Arruda, puro, e em duas facetadas e magnificas garrafas de crystal de rocha, antigas, de casa dos pães de Herculano. Uma grande profusão de sobremesas, principalmente de doce de conserva, todo dirigido e muito d'elle preparado pela própria mão do dono da casa.

Dos botões das roseiras de todo o anno fazia Herculano um doce, como nunca tornei a comer. Os figos de conserva eram uma especialidade [...]

Ao Eremitério — era este o nome, que nós dávamos á casa do mestre — deviam chegar dias sacudidos e agrestes, senão tempestuosos.

Havia lá quem tivesse anchura de peito para contrastar a tormenta!

Depois de publicado o primeiro volume da Historia de Portugal alguns rumores se levantaram contra o auctor, por causa do milagre d'Ourique [...] (2)

No clarear de uma manhã de setembro que paizagem aquella, vista do alto da montanha!

A barra, o cabo, o oceano; a Arrábida ao sul; ao norte Cintra. O sol rompendo na orla do nascente, em braza, sem vibração de luz a principio, agora jogando as primeiras frechas ás cumiadas de Palmella, ferindo as ondinhas verde-claras do Tejo. A sul, escuro o céo; no remoto occidente, ainda mal desvanecidas as estrellas; na aragem, apenas sentida, o sopro indizivel e virginal da madrugada; os gallos da aurora soltando a voz crystallina pelos casaes perdidos entre as hortas e pomares.

O Jamor, nas voltas sinuosas, denunciando-se no trepido murmúrio, atravez da névoa opalina condensada sobre o valle. Ao altear do sol, refrescando o norte limpido, dezenas e dezenas de moinhos agrupados ou disseminados pelas cristas da serra, girando as suas aspas brancas e produzindo-nos a visão de que se movia toda aquella grandiosa e deslumbrante paizagem. Agora foram-se os moinhos, que tocavam de sabor alpino e agreste o ondulado e maravilhoso quadro. As fabricas deram cabo d'elles e deram-nos peor pão e mais caro!

Lisboa, Ajuda, Eduardo Portugal, 1939.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Com os nossos perdigueiros iamos levantando as bandas de perdizes, até que se refugiavam nos zambujaes da Tapada. Foi esta mandada fazer pelo marquez de Pombal para o rei D. José ter caça ao pé da porta. Não ha nada como ser rei absoluto; essa sim, essa é que é ambição de suprema grandeza! O demais, rei constitucional e presidente da republica são grandes honras, porém honras apenas, com relação ao passado. Os olhos do déspota dominavam tudo e tudo para elles era arraia miúda. Descendentes de reis, embora, não os queriam senão para copeiros, estribeiros, aurigas, moços de monte, servos humilissimos.

El-Rei D. José ama a caça? O ministro extraordinário e feroz acurva-se na sua alta estatura intellectual, e, de joelhos, espera que lhe assigne os decretos para reedificar Lisboa arrazada e para engrandecer o reino. Depois improvisa-lhe uma coitada com que sua magestade se distraia nas horas de ócio [...] 

Palácio da Ajuda e torre do relógio, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Uma noite bateram onze horas no sino da torre e Alexandre Herculano depoz a penna como por acto automático. Não conheci ninguém onde os hábitos tivessem maior império; talvez a disciplina a que se votou como soldado voluntário concorresse para tal. Era no inverno, noite fria, escura, mas serena. Quando entrámos na casa de jantar para tomarmos uma colher de doce e um trago de agua, como de costume, ouvimos uns gritos de afflicção, e no tremor convulsivo da voz percebemos:
"Ás armas!"
Corremos á janella do quarto de trabalho e vimos sahir do pateo do palácio uma alma do outro mundo de dimensões sobrehumanas [...]

Palácio da Ajuda, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A 3 de março de 1849 fazia eu vinte annos (um dois e um zero^ que sâo um poema!) e vim na véspera á tarde até Lisboa para no dia seguinte jantar com minha mãe. 

De manhã recebi uma lembrança de Alexandre Herculano e juntamente uma carta. Entre muitas que tenho d'elle, e que hei de publicar um dia, é para mim a mais grata. As notas individuaes não se desprezam hoje, antes concorrem para os annaes da alma humana.

O papel da carta está, como eu, muito velhinho; mas as suas lettras vivas trazem-me, como se fossem de hontem, as lembranças d'esse dia:
Meu caro

Ahi vão essas poucas flôres; são as que encontrei pelo quintal inculto. Mando-as, apesar de vulgares, porque me disse que sua mãe gostava de flores. Lembrou-me que, acostumado á manteiga frescal, acharia desagradável a salgada estrangeira. Veiu tarde a lembrança para hoje; mas ainda lhe posso acudir para o almoço de amanhã. Tenha equanimidade bastante para desculpar esta offerta de saloio.

Ha n'ella um pouco de vaidade de auctor. Eu creio que essa manteiga está boa; e hoje, meu rico, tenho n'isso mais presumpção de que no mérito de escriptor.

Quando eu tinha 25 annos cultivava flores e fazia versos; depois dos 35 annos fabrico manteiga e faço prosa. Passados os 50 provavelmente não farei nem uma coisa nem outra. Serei talvez um avaro ou um caturra.

É a trilogia da vida humana, trilogia de pernas ao ar, em que a poesia está no primeiro acto, o positivo e a prosa no segundo, o chato é o semsabor no terceiro. Peores são ás vezes (as mais das vezes) os dramas do theatro em que tudo são terceiros actos da comedia humana.

O meu amigo, que está no primeiro, cheio de vida e frescor, povôe-o bem de flores e poesia. As recordações d'essa epocha é que mandam alguns perfumes e harmonias á tarde e ao crepúsculo da existência — as duas quadras da manteiga e da caturrice;

 Palácio d'Ajuda, c. 1900.
À direita da imagem, no Largo da Torre, a casa onde residiu Alexandre Herculano.

Até amanhã á tarde para a nossa viagem da Ajuda.

Amigo
Herculano. (3)


(1) Bulhão Pato, Sob os Ciprestes, Vida intima de homens illustres, Lisboa, Livraria Bertrand, 1877
(2) Bulhão Pato, Memórias Vol. I, Scenas de infância e homens de lettras, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1894
(3) Bulhão Pato, Memórias Vol. III, Quadrinhos de outras éphocas, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1907

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Biblioteca Nacional de Portugal:
Obras digitalizadas de Alexandre Herculano

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