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sábado, 27 de agosto de 2016

Memórias simples

Ha no destricto desta Freguesia dous pórtos de mar, hum he о da Fonte da Pipa, com seu Forte para a banda do Poente, com huma praya como a deu a natureza sem artificio algum, frequentado de muitas embarcações, especialmente lanchas, que a ella vem fazer aguadas, e pode admittir até dezoito désta casta de embarcações.

Cacilhas, Praia da Fonte da Pipa e Olho-de-Boi, João Vaz.
Imagem: Casario do Ginjal

O outro porto he o do Cubal, com huma praya mais espaçosa, que a do primeiro, assim no comprimento, como na largura, tambem sem artificio, frequentado de varias embarcações, como são; bateiras, e fragatas, e as que o frequentão todos os dias fao dezasseis, e tem capacidade para admittir até cincoenta embarcações, como barcos de Cassilhas, que em muitas occasioens do anno vem amarrar nella, pela causa de ser abrigado das tormentas dos Nordestes, e Lestes, que por aqui correm com grande violencia. (1)

Vista de Cacilhas e do Tejo, Charles Landseer, 1825.
Imagem: Instituto Moreira Salles

Além de subsistirem traços “do cais e instalações [...] com características identificáveis de final do séc. XVII e XVIII [...],” sofrendo, no entanto, "sucessivos acrescentos e alterações, particularmente após meados de oitocentos," também é verdade que no século XVIII se construíram de raiz "armazéns e cais de alvenaria. A impossibilidade de expansão para a arriba obriga à extensão do cais pela margem à medida das necessidades".

Em 1813, "parte significativa destes armazéns eram propriedade da família Paliarte [...]." Dedicava-se, como de resto a maioria dos comerciantes de vinho ali estabelecidos, à actividade exportadora. (2)

Cacilhas Ginjal Grémio Vista aérea 01 c 1960
Imagem: OBSERVADOR

Segundo os poucos testemunhos disponíveis, a actividade comercial exercida pela Sociedade Theotónio Pereira no século XIX e, ainda, na primeira metade do século XX, tinha por base uma série de produtos agrícolas já transformados, de que se destacavam, entre outros, os vinhos, as aguardentes e o azeite.

A firma que, tanto quanto se sabe, nas suas várias fases em momento algum se dedicou à produção ou sequer à transformação dos produtos que transaccionava, pelo menos em grande escala, tinha a sua sede em Lisboa, sendo possível, ou bastante provável, que até à aquisição dos armazéns localizados no Cais do Ginjal — não sendo de descartar a possibilidade de aqui ter funcionado sempre a actividade armazenista —, toda a mercadoria ficasse acondicionada em depósitos situados na zona ribeirinha de Lisboa ou nas imediações desta.

Panorama de Cacilhas (Ginjal, Fonte da Pipa, Olho de Boi, Quinta da Arealva), 1967.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A de qualquer modo precoce localização, na vida da empresa, dos seus armazéns no Cais Ginjal, encontra-se indirectamente documentada por se saber que quando em Agosto de 1871 foram adquiridos por Theotónio Pereira vários prédios no dito cais, dos números 12 ao 22, havia pelo menos um deles que confrontava com a propriedade da Viúva Theotónio Pereira & Filhos [...]

[...] um prédio na Rua Direita em Almada; um prédio rústico no Ginjal; um outro, também no Ginjal, descrito como rústico e urbano (composto de vinhas – parreiras – árvores de fruto, horta, com duas nascentes de água, casa para caseiro, telheiro e forno); sete prédios urbanos no Ginjal, quase todos eles armazéns com um ou dois pisos; um "domínio" principal de uma "praia denominada do baixo mar, no sítio do Ginjal" de que era "senhoria" a Câmara Municipal de Almada; um segundo "domínio" principal de "uns armazéns, casa e pátio no Ginjal" de que era "senhoria directa" a mesma Câmara Municipal [...] 

Cais do Ginjal, Óleo, Alfredo Keil.
Imagem: Casario do Ginjal



Das vinhas do citado prédio rústico e urbano, "uma quinta encantadora, encostada à rocha de Almada", com o seu "grande parreiral de belíssimas uvas", seguia este seu fruto "em caixas para o estrangeiro" [...]

Foi no Ginjal que nasceu de madrugada Virgínia Theotónio Pereira, a mais nova dos cinco irmãos. Na altura, e como sucedia não poucas vezes, seu pai encontrava-se num pequeno bote a pescar "ao candeio acompanhado de dois pescadores vizinhos". No fim dessa madrugada, levou para casa, entre outro pescado, um "possante congro de 15 quilos." Regressou entusiasmado pela pescaria mas "mal passou os umbrais ouviu um cué-cué de bebé nascido" [...]

Almada, Ginjal, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 21, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Era naquela mesma casa "de fora" do Ginjal que José Correia [avô do escritor Romeu Correia], o encarregado das adegas e dos armazéns de vinhos, marcava os "pas de quatre e as quadrilhas". Juntava-se-lhes "sempre que possível o pessoal menor, depois de se assear", para dar o "seu pé de dança, que acabava sempre num galope à roda mesa da sala de jantar". (3)


(1) P.e Luís Cardoso, Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades..., Lisboa, na Regia Officina Sylviana e da Academia Real, 1747, 2 vol.
(2) Martinez, ... ser mestre do vapor de Cacilhas, 2005
(citações de Maria Ângela Correia Luzia, A memória, a cidade e o rio, Lisboa, 1996)
(3) Martinez, idem

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Tema:
Ginjal

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