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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Ao fim da memória

Fernanda de Castro (1900-1994)

Também me lembro da casa da minha bisavó, em Cacilhas, isto é, lembro-me de uma casa onde havia sempre muita gente, onde não me obrigavam a beber café com leite, onde ninguém me ralhava nem me punha de castigo. O resto, os pormenores, o tempo se encarregou de mos revelar; á medida que íamos crescendo, os meus irmãos e eu. 

Almada, Largo do Poço em Cacilhas, Paulo Emílio Guedes & Saraiva 05, década de 1900
Imagem: Delcampe

Era uma casa pombalina, cor-de-rosa. Nem pequena nem enorme, tinha janelas de sacada com grades pintadas de verde e muitos vasos de sardinheiras nas varandas. A casa de jantar e a sala, ambas muito grandes, tinham pinturas a fresco nas paredes, cenas de caça na primeira, anjinhos, instrumentos musicais e grinaldas de flores na segunda. 

Rua Direita — Cacilhas, ed. desc., década de 1900
Imagem: Delcampe, Oliveira

Os quartos, excepto o da minha bisavó e o da tia Emiliana, eram alcovas com portas de vidrinhos que davam para a sala e para a casa de jantar. O sótão, enorme, tinha um delicioso cheiro a pó e a bafio. 

Cacilhas (Portugal), Largo do Costa Pinto, ed. Martins/Martins & Silva, 18, década de 1900
Imagem: Delcampe

Por uma grande escada de pedra chegávamos aos aposentos da tia Emiliana que se compunham de sala, quarto de dormir, quarto de vestir e lavagens. O quarto de dormir tinha uma janela que dava para o Tejo, podendo ver, quando estava deitada, o vaivém das fragatas no rio. 

Cacilhas, Caes e Pharol, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

No pátio lajeado da cozinha havia outra escada de pedra toda enredada numa trepadeira que dava umas flores esverdeadas chamadas "martírios". 

Cacilhas, Molhe e pharol, ed. Martins/Martins & Silva, 19, c. 1900.
Imagem: Delcampe, Oliveira

A quinta que me parecia muito grande era, na realidade, pequena e bastante mal tratada por falta de água e por já não haver, nessa altura, hortelão nem jardineiro. Ainda assim tinha algumas árvores de fruto, pereiras e macieiras, alguns pés de uva moscatel, uma enorme amoreira e duas figueiras que davam uns figos pequenos mas muito doces. 

Almada, Pharol de Cacilhas, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 03, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

E havia ainda o mirante, a praia da Margueira e o poço onde – dizia a cozinheira Guilhermina – viviam lagartos e lacraus [...] (1)

Cacilhas, Caes e Pharol, ed.Tabacaria Havaneza, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Já estavam todos à mesa. Todos, menos o tio António. A tia Emiliana, severa, voltou-se para Carolina:   – Vai dizer ao menino António que estamos à espera... que a senhora está à espera.
– O menino António não almoça, está doente.
– Doente com quê? Não se adoece assim de repente, sem razão.
Anica interrompeu-a:  
– Teimou em ir tomar banho à Margueira, esteve uma hora dentro de água, apanhou frio e agora tem febre [...] (2)

Cacilhas, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 20, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Estou aqui na ilha de Faro à beira da Riamas que fio de Ariana me levou para bem longe, para a casa da minha infância?  A doçura da tarde? O voo das gaivotas? O reflexo dos últimos raios de sol na água imóvel? De repente compreendi; não era o lento subir da maré que eu captava, nem o susurro da água na areia, mas o longinquo marulhar do Tejo aqui na praia da Margueira. (3)


(1) Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf. Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986
(2) As Margueiras..., Junta de Freguesia de Cacilhas, 2013 cf. Fernanda de Castro, Maria da Lua, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007
(3) Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf. Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986



Fernanda de Castro (1900-1994) descreve-nos a casa pombalina da sua bisavó, Maria Maurícia Telles de Castro e Silva casada com Francisco Liberato e Silva [ref. no Arquivo Distrital de Setúbal], 2.° comandante da Guarda Municipal, pais de Francisco Liberato Telles de Castro e Silva (1842-1902), nascido em Cacilhas [v. artigo dedicado].

A autora nasce do casamento de Ana Isaura Codina Teles de Castro da Silva (1879-1914), filha de Liberato Telles, com João Filipe das Dores de Quadros (1874-1943), Capitão-Tenente da Marinha e Comendador da Ordem Militar de Avis.

Do casamento de Fernanda de Castro em 1922 com António Ferro, nasceram António Quadros, filósofo e ensaísta, e Fernando Manuel de Quadros Ferro. A escritora Rita Ferro é sua neta.

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