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terça-feira, 7 de novembro de 2017

O Escoveiro (á Cova da Piedade)

No tempo de D. Miguel havia reuniões, a que se chamavam frescatas, termo favorito de um também engraçado, franco e generoso conviva, e que depois tomou por apellido Frescata, João Maria Frescata, cavalheiro de fino trato, que bem merecia ter um fim mais feliz do que teve (F. J. de Almeida, Apontamentos da vida de um homem obscuro, pag. 137).

Retrato de D. Miguel I, João Baptista Ribeiro, c. 1828.
Imagem: MNSR

Nas frescatas nas hortas dos arredores da Lisboa de 1833, guitarreavam-se modinhas. Assim acontecia na Gertrudes da Perna de Pau, no Manuel Jorge, ás portas de Sacavem, no Zé Gordo, na calçada de S. Sebastião da Pedreira, no Quintalinho, á Cruz do Taboado — onde se vendiam iscas de vitella espetadas em palitos — e no Calazans, á Cruz dos Quatro Caminhos.

Uma borga na horta das tripas, Raphael Bordallo Pinheiro, O António Maria n.° 305, 1891.
Imagem: Hemeroteca Digital

Nas suas succedaneas de 1846, já se guitarreava o fado, como succedia na Horta das Tripas, no Escoveiro (à Cova da Piedade), no Ezequiel ao Dafundo, no Miséria da estrada de Palhavã, na Vitelleira da travessa dos Carros, na Rabicha, no Campo Pequeno, no Arco do Cego, na Madre de Deus e no Beato António [...] (1)

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Durante a mocidade de nossos paes, a Cova da Piedade foi celebre pela casa de pasto do antigo Escoveiro, theatro de memoráveis noitadas de amor e de batota.

Vista Geral — Cova da Piedade ed. desc., década de 1900
Imagem: Delcampe

O pretexto da concurrencia ao Escoveiro era a sua afamada sopa de camarões e os salmonetes, que elle preparava do um modo especial, mettendo-os no forno envoltos n'um papel com manteiga, e servindo-os em sumo de limão, polvilhados de pimenta. 

Uma belleza! Comidos os salmonetes, armava-se a mesa do monte e muitos dos estroinas celebres da terrível Lisboa de ha trinta annos abancavam ao jogo até o outro dia pela manhã.

Chafariz do Pombal, Almada, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

N'uma noite que lhe deveria ter ficado de memória, o pobre Escoveiro deixou as caçarolas, para ver a jogatina, em que se faziam, paradas de cincoenta moedas, e arriscou de porta um cruzado novo. 

Cruzado novo foi elle, qua puxou atraz de si para o panno verde, dentro de pouco tempo, toda a linda fortuna que o Escoveiro accumulara om longos annos de sabia economia e de lucrativa gloria culinária. 

Cova da Piedade, zona rural, Francesco Rocchini, anterior a 1895.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O infortúnio do estalajadeiro destingiu lugubremente na estalagem, e toda clientella — noivados, que por vezes vinham aos sabbados com os padrinhos, os parentes e os convidados celebrar os bodas com um jantar; raparigas alegres, rapazes patuscos, simples burguezes, pacatos amantes da boa mesa, e os próprios batoteiros, — fugiu, como de um lugar sinistro, da assignalada casa do Escoveiro arruinado.

Almada [Cova da Piedade], Uma Burricada, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 14, década de 1900.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Ainda hoje, depois de tantos annos, o prédio respectivo, á entrada da estrada de Cezimbra, sempre fechado, de frontaria apalaçada, mas ennegrecida, tem como um ar de desgraça. (2)


(1) Pinto de Carvalho (Tinop), História do Fado, Lisboa Empreza da História de Portugal, 1908
(2) Ramalho Ortigão, Gazeta de Noticias, 7 de dezembro de 1886

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