Cova da Piedade, a sede da SFUAP em 1962. Imagem : Arquivo Municipal de Lisboa |
Daí que a Sociedade tenha cerca de 6000 sócios. Teatro, música, leitura, bailes, futebol (no Clube Desportivo), festas populares e mais tarde cinema, foram sempre actividades que "animaram" o povo da Cova da Piedade.
Até que... em 1960, a Sociedade vê-se a braços com alguns problemas, O número de sócios é cada vez maior, e as instalações vão-se tornando cada vez mais pequenas para comportar tantos sócios, principalmente na altura das festas.
Começa-se assim a pensar no alargamento das instalações da Sociedade. Mas para isso é preciso "muito dinheiro" e só a Câmara de Almada poderia ajudar.
Mas para isso era preciso ter influências lá dentro. Por isso, nesse ano, os sócios resolveram eleger para presidente da Assembleia Geral da Sociedade, o presidente da Junta de Freguesia, Mário Pinto, homem rico, segundo se diz, pois é genro dum grande corticeiro da Cova da Piedade e com "conhecimentos" na Câmara de Almada.
Cova da Piedade, a Junta da Freguesia em 1962. Imagem : Arquivo Municipal de Lisboa |
Instalado o "amigo" Pinto dentro da Sociedade, este resolve convidar o seu particular "amigo" Orlando Soares — funcionário da PIDE, para a Direcção da Sociedade, apresentando-o aos sócios como uma pessoa com muitas influências" e capaz de dar à Sociedade a ajuda desejada.
E assim temos a "Pide" a tomar conta dos destinos desta agremiação popular. Aos poucos vão entrando para a Direcção, os outros comparsas da camarilha do Orlando — Diamantino Xavier, José Maria (um caixeiro viajante), Anselmo (presidente da Comissão de Festas da Nossa Senhora da Piedade),e outros indivíduos (por agora não sabemos o nome deles, em breve poder-se-á informar) jk
Ingenuamente, o povo da Cova da Piedade tinha-se deixado levar.
Cova da Piedade Largo 5 de Outubro Mercado 02 |
Em breve vao-se sentir os efeitos da política de tal dírecção:
— o teatro vai morrendo (não se pode gastar o dinheiro da Sociedade com teatros)
— os bons livros da Biblioteca vao desaparecendo (o ano passado foi queimada a história da Filosofia de Bertrand Russel, publicada em fascículos e a "Vértice")
— os bailes, antigamente autênticos pretextos para uma boa convivência, tornam-se agora no dizer do povo, numa verdadeira "xungaria"
— a banda de música quase que deixa de existir
— o cinema torna-se um foco de mentalização "pro-americana" — filmes de terror e cow-boys a 2$50 por sessão
O pior ainda é que a Sociedade serve de coio à PIDE, como agente de repressão do povo da Cova da Piedade - a ordem de prisão do Sr. Sim-sim, funcionário do Arsenal do Alfeite, foi redigida por Orlando Soares na Sede da Sociedade.
Quando se fez uma campanha para a compra de uma ambulância a oferecer para a guerra de Angola, estava o amigo Orlando a querer utilizar os fundos da Sociedade para dar uma contribuiçao e se nao o fez, foi devido à oposição de alguns dos sócios honestos que tiveram conhecimento disso e o impediram.
No entanto nao se chegou a saber se desviou ou nao algum dinheiro da Sociedade. E muito mais coisas que resta ainda averiguar. Por fim eram os ficheiros dos sócios — quase todos os homens da Piedade são sócios da SFUAP — que serviam à PIDE para efectuar as suas prisões — Serviço facilitado!
Uma telefonadela para o amigo Orlando — Ouve lá, fulano, conheces o tipo X? Onde é que ele mora? Onde trabalha? — E no outro dia de manhã, às 6 horas, à porta desse amigo, ou à porta do emprego — lá estava um Volkswagen verde com três pides para o ir buscar Foi assim que sucedeu com vários democratas presos não há muito tempo.
Então e quanto a ajudas à Sociedade, quanto ao seu alargamento? Bom, fizeram-se grandes projectos, um deles, o projecto da nova sala de espectáculos, até custou 300 contos (só o projecto).
Construiu-se até - para o povo ver que o amigo Orlando tinha na verdade grandes influências — uma piscina que importou em cerca de 3500 contos, uma piscina que seria o orgulho do concelho - segundo as suas palavras.
Cova da Piedade, piscina da Sociedade Filarmónica União Artística Piedense, 1966. Dimensões, em metros: comp. máx., 25; larg. máx., 21; larg. mín., 16; prof. mín., 1,20; prof. máx., 5,40; alt. máx. das pranchas de salto, 15. Imagem: Delcampe, Bosspostcard |
O dinheiro arranjava-se com facilidade, Contraiu-se um empréstimo à Caixa Económica o dinheiro feito nas festas de Nossa Senhora da Piedade (que estava destinado à construção de uma creche) também foi emprestado, puseram-se as entradas para a piscina a 10$00, iam pedir-se uns subsídios à Câmara e o problema resolvia-se. Na verdade está quase resolvido.
Em fins do ano passado os sócios tomam conhecimento que a Sociedade iria ser penhorada pois tinha que pagar imediatamente encargos no valor de 61 contos; dinheiro que a Sociedade não possuía que os cálculos apresentados pelo Orlando Soares tinham saído furados — os sócios não acorriam à tão bela piscina.
Evidentemente a poucos quilómetros da Costa da Caparica gastando apenas 5$00 numa ida e volta o povo da Cova da Piedade continuava a preferir a praia. E os subsídios da Camara — bom, o dinheiro da Câmara nunca ninguém sabe para onde vai! — não apareciam.
E depois a piscina não foi muito ao agrado dos sócios e a opinião deles também não tinha sido pedida (aliás nem os consultaram) — Só uma coisa resultara na ideia de Orlando: fazer acabar com a SFUAP; tira-la das mãos do povo.
Cova da Piedade, piscina da SFUAP, 1967. |
Mas alto lá, povo agora tinha aprendido com esta experiência longa de 8 anos Não se acaba com a sua Sociedade" assim com duas cantigas.
Ao grito de alarme "A Sociedade vai ser penhorada" acorreram os sócios em massa. Estamos em fins de Dezembro 1967. A Direcção que se mantivera na Sociedade durante 8 anos tinha que apresentar o seu relatório de contas e explicar o que se passava.
Faz-se uma Assembleia (nunca na Cova da Piedade se fez uma tão grande Assembleia — eram centenas de sócios a encher a sala de espectáculos, a exigir uma explicação). O Orlando Soares aparece mas vendo o caso mal parado desaparece e não põe mais os pés nas Assembleias que se irão seguir.
O povo exige: o julgamento da comissão-pide tem que ser completo, o problema tem que ser esclarecido, façam-se as assembleias que se fizerem. O relatório é feito, a situação torna-se clara para todos. A Direcção fez despesas insuportáveis para a Sociedade, há dinheiro que desapareceu não se sabe para onde. É evidente que os sócios tém sido espoliados.
Então o povo reage, reage fortemente como só ele sabe reagir nestas ocasiões. "Estamos a ser burlados, sim, e a culpa é nossa porque temos medo" — é a voz corrente. Um sécio sobe ao palco da sala e diz em voz alta para a assistência: — Meus senhores, eu não tenho medo! Quando uma direcção não é capaz de dirigir uma sociedade o melhor é ir-se embora. — Apoiado! Nós também nãotemos medo — grita a multidão na sala — Fora, fora com eles! É a apoteose final.
A Direcção é obrigada a demitir-se, levando "em cima" um voto de desconfiança de todos os sócios. O Conselho Fiscal recusa-se a aprovar o relatório de contas (Está falseado! - afirmam os sócios entre si).
É eleita uma nova Direcção, constituída agora por sócios que já deram garantias de seriedade noutras instituições da terra. Aliás o seu programa para já, é mesmo democrático: os problemas da sociedade serão resolvidos se todos quiserem colaborar.
Programa do 79.° Aniversário da Sociedade Filarmónica União Artística Piedense (23/10/1968). Imagem: Delcampe, Bosspostcard |
O povo começou a organizar-se. Formou-se já uma "comissão de angariação de fundos", com 15 elementos, que tém vindo a pedir dinheiro a toda a gente (batem a todas as portas). Já conseguiram arranjar mais do que é necessário para pagar a dívida mais imediata: os 61 contos de encargos. Alias as sociedades irmãs lá da terra, prontificaram-se a dar uma grande ajuda. Até as mais pequeninas, com muitos sacrifícios. É verdade, não quiseram deixar de participar neste acto de solidariedade.
A Sociedade, por um descargo de consciéncia ainda, resolveu pedir a ajuda da Câmara. Que ao menos lhes desse agua para a piscina. Mas foi uma nova ilusão. "O Senhor Presidente" informa que a Câmara não pode "fornecer agua de borla".
Mais uma liçào que aproveitará muito ao povo. Agora todos começam a convencer-se de que só eles é que poderão e saberão construir. Começa a surgir um movimento de unidade ente as colectividades populares, não só da zona, mas de toda a margem Sul.
A SFUAP fez um apelo a todas as outras Sociedades para que a ajudem a resolver os seus problemas. Quanto ao "Orlando" parece que as coisas estao a correr mal. A sua demissão deu tal brado que segundo consta vai ser transferido para a cidade da Guarda. Atenção Guarda mais um patife para a vossa terra.
NOTAS
Acerca destes indivíduos, não consta que sejam da Pide, mas sempre se prestaram a colaborar com o Orlando e a manter-se com ele na Direcção.
Uma outra actividade dos pides: o Orlando e camarilha tém um programa de radio, chamado "Imagens Piedenses" [emitido entre 18 de Abril de 1966 e 25 de Abril de 1974] e transmitida pelos "Emissores Associados de Lisboa" aos domingos de manhã.
A coberto deste "programa, o reporter do Orlando "metia-se em todas as realizações das colectividades do concelho para gravar conversas. Pez isto especialmente na Homenagem feita pelas colectividades da Piedade e do Laranjeiro ao escritor Ferreira de Castro.
Ferreira de Castro na Cooperativa de Consumo Piedense, 1964. Imagem: Memórias e Identidades da Cooperativa de Consumo Piedense |
Depois mais tarde, cem uma grande lata, informou alguns amigas que e pide o tinha abordado e lhe levara as fitas de gravação [...] (1)
(1) Casa Comum, A PIDE foi expulsa da Cova da Piedade, 1967
Artigo relacionado:
SFUAP, origens, teatro e escola
Mais informação:
Casa Comum, Relato de situação na Sociedade Filarmónica União Artistica Piedense, 1967
Diário de Lisboa, 16 de janeiro de 1968
Mais um excelente documento da nossa História.
ResponderEliminarAbraço Rui
Obrigado Luís,
ResponderEliminarUm documento, no mínimo, esclarecedor.
Um abraço