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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Neo-realismos

Inspirado pelas teorias marxistas do materialismo histórico e dialéctico, divulgada nos meios políticos e intelectuais portugueses em meados dos anos 30, o movimento cultural do Neo-Realismo começa a desenhar-se a partir de importantes polémicas literárias então publicadas em periódicos como O Diabo, Sol Nascente e, alguns anos mais tarde, a revista Vértice, que afirmavam uma veemente oposição ao subjectivismo presencista, ao defenderem uma "arte útil" virada para os problemas reais da sociedade, fazendo assim a ruptura com o ideário romântico e positivista do século XIX.

Revista Vértice, 258, ilustração Manuel Ribeiro de Pavia, 1965.

Na verdade, as condições político-sociais de uma década marcada não só pela crescente oposição entre fascismo e comunismo, como pelos ecos de sofrimento da Guerra Civil Espanhola e o início da II Guerra Mundial, exigiam a uma nova geração de escritores maior intervenção cívica e cultural, solidarizando-se desde logo com os desígnios progressistas da esquerda europeia, desde a Revolução Russa à Front Populaire, em França, ou à defesa da ética republicana, em Espanha. (1)

Baseado no conto de João Rodrigues de Freitas "Os Meninos Milionários", Aniki-Bóbó [1942] foi um ousado tiro alegórico de Manuel de Olivieira a Salazar o ditador de Portugal. Ridicularizado no tempo do seu lançamento por descrever a infância como um difícil e assustador campo minado,  para ser negociado: pleno de enganos, crueldade e manipulação.

Aniki-Bóbó, Manuel de Oliveira, 1942.
Imagem: El cine y otras catastrofes

Apenas em retrospectiva o valor do Aniki-Bóbó é devidamente apreciado e o seu lugar reconhecido como uma pedra de fundação do movimento italiano Neo-realista. Oliveira conseguiu com sucesso subverter a sua mensagem, em que as figuras de autoridade adulta são as não confiáveis​​, aquelas sem contato com os acontecimentos reais.

in filmuforia

Centremos agora em Romeu Correia duas escassas palavras sobre o teatro neo-realista.

Tendo ensaiado os primeiros passos nos tablados populares da nossa primeira região industrial — a margem sul do Tejo —, Romeu Correia conseguiu exprimir os conflitos sociais integrando-os no que há de ritual poético no melhor teatro. [...]

As suas peças inserem-se, quase letra a letra, na direcção que Ernst Fischer apontou assim: "É verdade que a função essencial da arte para os que estão destinados a transformar o mundo não é a de fazer mágica, e sim a de esclarecer e incitar à acção; mas é igualmente verdade que um resíduo mágico na arte não pode ser inteiramente eliminado, uma vez que sem este resíduo provindo da sua natureza original a arte deixa de ser arte." [...] (2)

Nos fins de Setembro de 1961 eu e o Romeu Correia estamos em Cacilhas, num tasco à beira-rio. Ali, no Cais do Ginjal. Ao longe, Lisboa entornada sobre todas as colinas da margem oposta. 

Romeu Correia no miradouro Luís de Queirós ou Boca do Vento.
Imagem: Wikipédia

Em 1982, no seu romance O Tritão, Romeu escreverá:

"Que imenso é o rio Tejo, essa massa de água de tantas e inesperadas cores e rebeldias, habitado por peixes e mistérios sem fim que maravilhara desde sempre o meu entendimento! Rio generoso, rio velhaco, ora a correr para a barra, ora a subir para a nascente, consoante o capricho das marés."

E em 1947, no Sábado sem Sol, evocara a fábrica de gelo para os frigoríficos de bordo, com aquela ponte em cimento tracejada de rails para vagonetas... Também o relógio da torre, em Almada, e as cinco badaladas no bronze do sino, logo o apito para a saída do pessoal da Companhia Portuguesa de Pesca.

— Romeu, para ti, na literatura portuguesa quais são as melhores obras de ficção?

— Para mim são As Novelas do Minho e o Amor de Perdição, do Camilo; o Primo Basílio e Os Maias, do Eça; a Maria Adelaide, do Teixeira Gomes; as Terras do Demo, do Aquilino; os Bichos e a Montanha, do Torga; A Curva da Estrada do Ferreira de Castro; a Fanga do Redol; Onde A Noite Se Acaba do Miguéis; os Retalhos da Vida de um Médico do Namora; a Prisão do Domingos Monteiro e a Sedução, do Marmelo e Silva.

Ferreira de Castro na Cooperativa de Consumo Piedense, 1964.
Imagem: Memórias e Identidades da Cooperativa de Consumo Piedense

— E o que há de comum entre todas essas obras? Ou seja: o que é que diferencia a ficção portuguesa das outras ficções?

— Na nossa literatura espalha-se a fibra romântica, a inclinação melancólica, saudosista, passadista, e a centelha irónica, sarcástica, inconforme e revoltada que caracterizam o homem português. 

Capa do livro de Romeu Correia, Gandaia.
Ilustração Manuel Ribeiro de Pavia.

Subjectivismo lírico e realismo irónico ou irreverente, são as duas constantes da literatura nacional.

Capa do livro de Romeu Correia, Calamento.
Ilustração Manuel Ribeiro de Pavia.

— Mas qual a corrente que melhor vingou nos nossos dias?

— A grande, impetuosa e invencível corrente que vem do naturalismo, que triunfa no realismo e dá o neo-realismo.

— Mas tu não achas que em Portugal o realismo e o neo-realismo estão em crise?

— Não há crise. Nunca houve um movimento assim pujante na ficção portuguesa. Apesar de tudo — e esse tudo é muito — os neo-realistas são a maioria e a maioria dos melhores. [...] (3)

Esta morte, assim sem mais nem menos, que um amigo me comunica, entala-se-me na garganta.

Manuel Ribeiro de Pavia (1910 - 1957).
Imagem: Poet'anarquista

"Morreu o Manuel Ribeiro de Pavia. Levou-o uma pneumonia que o foi encontrar depauperado por uma vida quase de miséria. Passava fome! Tinha uma única camisa! Não pagava o quarto há imenso tempo! E nós a falarmos-lhe de poesia..."


Capa do livro de Alexandre Cabral, Fonte da Telha.
Ilustração Manuel Ribeiro de Pavia.

Assim é: passava realmente fome. Todos nós o sabíamos.

E ele a falar-nos de pintura, de poesia, da dignificação da vida. É justamente nisto que residia a sua grandeza. Não falava da sua fome — de que, feitas bem as contas, veio a morrer.

A fome não consta de nenhum epitáfio
.

Pescadores e Varinas, Manuel Ribeiro de Pavia.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

in Andrade, Eugénio de, Os Afluentes do Silêncio
A contribuição marxista para a deturpação da cultura portuguesa foi feita através de uma organização de escritores, jornalistas, professores e editores que recebeu a designação, primeiro, de "novo humanismo" (cujas manifestações foram coligidas num livro que se deixou esquecer, Por um Novo Humanismo, da autoria de Rodrigo Soares, pseudónimo de um professor da Universidade de Coimbra) e, depois, de "neo-realismo" [...]

Em 1938, aparecia nas livrarias um romance com o título de Marés. Era o primeiro romance de Alves Redol e, viria a saber-se mais tarde, a primeira manifestação do neo-realismo. A fotografia do autor, de perfil e de boina, passou a figurar em todos os jornais e em todas as montras [...]

Alves Redol (1911 - 1969).

Alves Redol era de Vila Franca de Xira e em Vila Franca de Xira escrevia sobre os rurais e os operários desse subúrbio lisboeta. Ali vivera seus anos de infância e adolescência, a admirar toureiros, touros e grandes lavradores. Dessa admiração, e também do ressentimento socializante que ele deixa nas pequenas almas, deixou os sinais no melhor romance que conseguiria escrever: Barranco de Cegos.

Alves Redol na biblioteca da Cooperativa de Consumo Piedense, década de 1960.
Imagem: Memórias e Identidades da Cooperativa de Consumo Piedense

De Alhandra, ao lado de Vila Franca, veio a segunda manifestação neo-realista: a de Soeiro Pereira Gomes, autor de Esteiros, romance da borda d'água inspirado pelo Jorge Amado dos Capitães da Areia e, sobretudo, pelo William Wyler de As Ruas de Nova Iorque. Pereira Gomes era cunhado de Casais Monteiro e, penetrado da atmosfera proletária, fabril e socialista dos ambientes onde estava empregado, adoptava, como Alves Redol, uma atitude humilde e simpática perante os altos valores literários que o seu cunhado, discípulo de Leonardo Coimbra, presencista e cosmopolista, então representava [...]

Capa do livro de Alves Redol, Gaibéus.
Ilustração Manuel Ribeiro de Pavia.

O neo-realismo, entretanto, absorvido A. Redol no patronato industrial e fugido Pereira Gomes em Inglaterra, transferia-se de Vila Franca para Coimbra e caía nos braços de estudantes, bacharéis e doutores. 

Sem ainda terem feito coisa nenhuma, anunciavam, em sueltos que espalhavam por todas as folhas de imprensa da província, uma grandiosa e definitiva obra cultural, intelectual e artística, um "movimento cultural-político único na história do nosso país" [...]

Os literatos de Lisboa, mais "naturais" e urbanos, sem aquele arrebatamento que a província filtrada por Coimbra dá aos triunfadores, rendiam-se aos bárbaros já instalados na direcção das editoriais mais conspícuas e conservadoras e na presidência das colunas dos jornais mais reaccionários: ou se lhes entregavam logo arvorando o rótulo de socialistas, como Urbano Tavares Rodrigues; ou largavam a correr as salas da Mocidade Portuguesa para confessarem eternas fidelidades neo-realistas, como Luís Francisco Rebelo; ou identificavam, como Romeu Correia, o seu populismo cacilheiro e ingénuo com a segura doutrina dos novos doutores de Coimbra [...] (4)


(1) Museu do Neorrealismo

(2) Mário Sacramento: Há uma estética neo-realista?

(3) Vidas Lusófonas: Romeu Correia

(4) Orlando Vitorino: A Grande Deturpação (iii)


Informação relacionada:

Almanak Silva

Literatura neo-realista e ilustração

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