Páginas

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O Caramujo, romance histórico (10/18), um boné por uma cabeça


UM BONÉ POR UMA CABEÇA



Lisboa, Escola do Exercito (antigo palácio da Bemposta), ed. Martins/Martins & Silva, s/n, c. 1900.
Imagem: Delcampe

Entretanto corria o processo de Luiz Franco e seus camaradas. Além de declararem alguns soldados que elle acompanhára a revolta até ao largo do Rato, acrescia a carta achada nos papeis do alferes Pereira, em virtude da qual os officiaes salvos por Franco mais foram testemunhas de accusação que de defeza; fazendo-se notavel Gomes pela animosidade que no depoimento mostrára contra o seu amigo.

Debalde Franco allegára que para salvar os tres officiaes se vira obrigado a acompanhar o regimento, porque se tivesse fugido com elles, os soldados que haviam sentido gente no quarto, arrombada a porta, não achando ninguem, e vendo a janella aberta, concluiriam que elle e os officiaes tinham por ali fugido, haviam de perseguil-os, e talvez os agarrassem e os assassinassem a todos.

O bom effeito d'esta allegação era destruído pelo contheudo da carta, e pelas circumstancias agravantes de Franco se ter recolhido cedo ao seu aposento, achando-se fardado e armado, contra o seu costume e de se provar a sua affeicão ao systema constitucional em consequencia de livros e jornaes que lhe apprehenderam no quarto.

A letra da carta imitava tão perfeitamente a de Franco, que não havia que duvidar da authenticidade, embora elle a negasse.

Os attestados e representações de muitas pessoas notaveis da Outra-Banda, Lisboa e outras partes do reino, de nada valeram, como tambem tinham sido perdidos os passes dados junto de El-Rei, dos ministros e dos juizes, pelos amigos de Franco, inclusive o commandante e muitos officiaes do mesmo regimento, cujos depoimentos e similhantemente os de muitos soldados lhe eram favoraveis. Havia pois mui fracas esperanças de o salvar.

Já tinha saido a sentença de morte a 18 dos sublevados, soldados, officiaes inferiores, um subaltemo e até um corneta, que foram fusilados em campo de Ourique, e esperava-se que haveria mais victimas segundo os termos em que caminhava o processo.

Botelho, representando o papel de hypocrita, ia quasi todos os dias ao Caramujo contar a Antão Diniz o que se passava, e ninguem punha em duvida o grande interesse que elle tomava pela salvação de Franco.

D. Francisca e Antão Diniz não se haviam descuidado de recorrer tambem á infanta D. Maria da Assumpção, mas nada tinham conseguido; até que finalmente, tendo saido sentença de morte a mais 22 dos sublevados, entre elles Luiz Franco, resolveram recorrer ainda á infanta uma ultima vez.

Bem quizera Antão Diniz acompanhar sua mulher e sua filha ao paço da Bemposta, mas um furioso ataque de gota o retinha de cama: assim foram ellas só, em companhia de Jeronymo, Botelho e Espanta-maridos, que ficaram esperando na capella; e tendo entrado no paço, onde as receberam com toda a facilidade e consideração, em poucos momentos eram conduzidas á presença da infanta.

A infanta D. Maria de Assumpção era de estatura baixa e delgada, de olhos e cabellos castanhos, rosto um tanto pallido e picado de bexigas, e de aspecto senhoril e ao mesmo tempo agradavel.

Infanta Maria da Assunção de Portugal (1805 - 1834) por Nicolas-Antoine Taunay.
Imagem: Grand Ladies

Estava esta joven senhora n'um pequeno gabinete, mui simplesmente vestida, e sentada ao seu bastidor em companhia de duas aias, trabalhando n'um lindo bordado, quando entraram D. Francisca e sua filha.

A primeira que entrou foi D. Mathilde, fazendo á infanta uma graciosa mesura, que ella recebeu com um amavel sorriso.

Apenas a infanta viu diante de si D. Mathilde, que se aproximava para lhe beijar a mão, exclamou:

— Caspité [interjeição de surpresa e aprovação]! Como está crescida e gentil tua filha, D. Francisca!

Dizendo isto fez um pequeno esforço para não deixar que Mathilde lhe beijasse a mão; e acrescentou:
— Sente-se aqui ao pe de mim, minha amiguinha. — E tu, D. Francisca, estás bem acabada! Senta-te, senta-te! E tambem lhe não deixou beijar a mão. Como está teu marido, que ha dias que o não vejo? Mas estás pallida e abatidal Será da minha vista? Chega-te mais para mim.

— Antão Diniz, disse D. Francisca, chegando-se para ao pé da infanta, não pode hoje ter a honra de beijar a mão a V. A. porque lá fica de cama no Caramujo com a sua gota. Quanto a mim não se engana V. A. Quando o espirito soffre logo o rosto dá rebate. V. A. ha de valer áquelle infeliz cirurgião por quem lhe tenho pedido tanto.

— A esse respeito podes estar descançada, como eu estou, porque os ministros d'El-Rei prometteram-me que fariam tudo o que podessem para o salvar.

— Ah 'Senhora! respondeu D. Francisca. Sinto dizer a V. A. que n'esse caso não poderam fazer nada, porque hontem mesmo os juizes condemnaram Luiz Franco a ser fuzilado.

— Miseraveis! exclamou a Infanta, deixando cair do dedo o seu dedalzinho do ouro. Nada fizeramt...
E mais ainda hontem o Luiz de Paula Furtado [Luís de Paula Furtado Castro do Rio Mendonça e Faro, ministro da justiça do governo de D. Miguel] me disse que contasse com elle. A que epoca chegámos nós, que já uma Infanta de Portugal não pode nada!

— V. A. pode muito, e dentro em pouco o hão de sentir as creancinhas pobres de Outra-Banda.
— Sempre se fez a compra da casa? disse a Infanta.
— Eu e meu marido. respondeu D. Francisca, tanto diligenciámos, que um proprietario de Almada resolveu ceder-nos a sua casa, que é muito acommodada para o collegio que V. A. quer estabelecer. Ah! Prouvera a Deos que a sorte do cirurgião Franco dependesse só de V. A.

A noticia de se ter achado casa para o seu collegio, que n'outra qualquer occasião muito teria agradado á Infanta, não pode n'este momento minorar lhe o desgosto da má nova que D. Francisca acabava de lhe dar.

D. Francisca continuou:

— Admira que V. A. ainda o não soubesse. Pois foi hontem mesmo que juizes sem alma nem consciencia condemnaram á morte um joven, que eu e Antão Diniz amamos como a um filho, e por quem tanto se interessa a população da Outra-Banda, porque elle não tem ali senão amigos.

— Cala~te, D. Francisca, não me afllijas mais. Pois tu ingnoras que as coisas nunca se sabem n'este miseravel paço senão muito tarde e quando lá fóra já todos estão inteirados. O paço hoje é uma cavema de enredadores e intrigantes, que só se occupam de trazerem El-Rei meu irmão enganado. E anda tão entretido com elles, que ha oito dias que procuro fallar-lhe e não me e possivel.

— Mas disse, D. Francisca, V. A. ha de acudir ao meu protegido, não ha de consentir que o matem.

Um soluço de Mathilde chamou a attenção da infanta, que a viu derramar lagrimas.

— Oh, não chore, querida meninal Quer muito a esse Franco, não é verdade, minha filha? Deixa estar D. Francisca, e tu Mattiilde. Vou dar um ultimo passo; hei de fallar hoje infalliveimente a El-Rei, e não o largo em quanto me não prometter a vida de Luiz Franco.

N'este momento ouviram-se vozes de homem no quarto proximo, as aias levantaram-se logo, e a Infanta exclamou dando um puIo na sua cadeira:

— Ah! É El-Rei. Chega muito a proposito. Algum grande Santo pediu por esse rapaz. Muito obrigada, meu Deus, muito obrigada! Entrem para a minha sala em quanto eu recebo aqui mesmo a visita de El-Rei. Rezem, minhas filhas, que eu farei quanto puder.

Tinham desapparecido D. Francisca e Mathilde, quando se abriu a porta e uma das aias annunciou que EI-Rei pedia licença para fallar a S. A.

— Póde El-Rei entrar, respondeu a Infanta.

El-Rei entrou seguido da aia. A lnfanta ergueu-se e E1-Rei beijou-a na testa. I). Miguel vinha vestido à paisana e oom uma chihatinha na mão. Mostrava um ar satisfeito. Deu uma volta pelo quarto cantarolando, e depois sentou-se dizendo:

— Saiba V. A. que acabo de experimentar o mais soberbo cavallo que tenho visto. E não é estrangeiro, é do paiz, pura raça d'Alter. Bello bicho, bello bicho. Leve como uma penna, caminha que desapparece.

D. Miguel I (1802 - 1866), rei de Portugal (1826 - 1834),
Franz Xaver Stöber, segundo Johann Nepomuk Ender, 1826.
Imagem: Wikipédia

— Ora, senhor Rei meu irmão! Porque não anda V. M. devagar? Tomara que acabasse a moda de andarem os Reis sempre a correr. Fico muito assustada sempre que vejo partir V. M. a todo o galope.

— É porque V. A. não sabe apreciar este prazer, e não gosta senão do passo de sendeiro da sua egoasinba branca. Mas vejo V. A. hoje tão risonha, fóra do seu costume. Grande novidade!

— É porque, disse a Infanta, ha oito dias que procuro fallar a V. M., e não me é possivel encontra-lo. Os politicos trazem-n'o tão occupado... Estou certa de que V. M. seria muito mais feliz, se viesse todos os dias conversar comigo aqui algum tempo, com a sua irmã que muito o estima.

— Então aqui estou. Sempre quero.ver o que tem para me dizer. Ahi vae V. A., como costuma, sobrecarregar-me de pedidos para tantos desgraçados, que era preciso que a casa real tivesse as rendas do reitor Mendes para os satisfazer a todos.

— Hoje não tenho mais que um pedido a fazer-lhe, e não è de esmolas nem de pensões, é de palavras e coisa muito facil. Muito facil para V. M., dificil e impossivel para qualquer outra pessoa.

— Ah! Pensa então V. A. que eu posso muito? Os reis não podem nada, ainda mesmo os absolutos. Por exemplo, pensa V. A. que teriam morrido aquelles 18 desgraçados do 4 de infanteria se eu tivesse o poder que V. A. julga?

— Então quem è que abaixo de Deus pode mais n'esta terra do que V. M?

— As leis, Infanta, as leis; e é necessario cumpril-as a todo o transe. Assim m'o dizem os meus ministros, os meus padres, os meus juizes, emfim todaa gente — respondeu o rei, inclinando a cabeça e cruzando as mãos sobre o peito.

— Senhor, replicou a Infanta, as leis dos homens quando mandam matar não se podem cumprir, porque são contrarias ás leis de Deus.

— Vá lá dizer isso aos meus conselheiros! Gritavam logo-aqui d'el-rei! — contra mim proprio.

— Pois grite V. M. — aqui d'e`l-rei! — contra elles, volte-lhes as costas, e faca a sua vontade.
— V. A. não entende d'isto de governar um povo. Olhe que sempre è um grande pezo e uma grande responsabilidade. Não tenho socego. Estou ás vezes com vontade de mandar dizer a nosso irmão: "Senhor! Deixemo-nos d'estas desintelligencias e d'estes combates. Já estou farto de tantas mortes e de tanto sangue. Venha o meu irmão tomar conta d'isto, e deixe-me socegado com os meus cavallos e as minhas caçadas".

Mas que está V. A. aqui fazendo n'esto bastidor? disse D. Miguel, inclinando-se sobre o pequeno trabalho da infanta. Que bonita coisa! Um pedaço de veludo cor de rosa bordado a oiro; as armas de Portugal; cinco chagas — a religião, sete castellos — a força.

Bandeira nacional de Portugal de 1826 a 1830,
Bandeira de D. João V, usada pelos Miguelistas ou Absolutistas.
Imagem: Wikipédia

— É um bonet que estou fazendo para offerecer a V. M. — disse a lnfanta.
— Obrigado, obrigado. Como ha de ficar bonito! E esta quasi prompto — disse El-Rei, continuando a examinar o trabalho.

— Pouco falta, respondeu a Infanta muito satisfeita; mas não lh'o dou se V. M. me não conceder a tal coisa muito facil de que lhe fallei.
— Pois bem, dou-lhe palavra, mas com a condição de que me hade dar o bonet— disse o rei gracejando.

— Ainda mesmo contra a vontade dos seus conselbeiros?
— Seja, respondeu el-rei, continuando à ver o bordado; mas com a condição que puz.

— Palavra de rei?
— Palavra de rei, mesmo porque V. A. nunca me pediu nada que me compromettesse.

— Por esse lado não ha que receiar: longe de o comprometter, torna-me mais sua amiga, se é possivel, e receberá as bençãos de immensa gente.
— Vamos a ouvir.

A conversação foi interrompida pela voz de uma aia que disse — O sr. conde de S. Lourenço [António José de Melo Silva César e Meneses, ministro e secretário de estado da guerra do governo de D. Miguel] manda dizer a V. M. se se digna dar-lhe as suas ordens.

Trajos masculinos.
Quadros da Historia de Portugal, Aguarela de  Alfredo Roque Gameiro.
Imagem: www.roquegameiro.org

— É o que lhe disse ha pouco, exclamou D. Miguel, nunca me deixam.
— Mande-o entrar, disse a lnfanta!
— Vá, se V. A. assim o quer: eu aqui obedeço.

Pouco depois entrou o conde inclinando-se todo. Dirigiu-se primeiro para a Infanta, que carregou as sobrancelhas, e deu-lhe a mão a beijar, voltando-lhe quasi de todo as costas; e beijou depois a mão a El-Bei.

O conde percebeu bem os movimentos da lnfanta, fez-se muito vermelho, e ficou em pé com os olhos no chão.

— Sabe V. M. uma coisa, disse a lnfanta. Hontem foram condemnados a pena ultima mais 22 desgraçados do 4 de infanteria. Talvez V. M. ainda o ignorasse.
— De certo, disse o Rei com a voz um tanto alterada. E como acontece então que V. A. o soube primeiro?

— Peço perdão, interrompeu o conde, se V. M. o não soube ha mais tempo, é porque não teve occasião de ver os papeis d'esta pasta, que estava na sala do despacho desde hontem.

D. Miguel pegou na pasta que o conde lhe offerecia e exclamou.
— Mais sangue, sr. conde, mais sangue! Já tive occasião de lhe observar que estava aborrecido de tanta mortandade.

EI-Rei dizendo isto aproximou-se da janella por entre as cortinas.

A lnfanta foi para o lado d'El-Rei.

Ia passando uma guarda de realistas dos Caetanos, que vinha para o paço, levando adiante da musica grande multidão de povo.

Como são feios estes realistas! disse a Infanta. E continuou, abaixando a voz — Agora faça-me V. M. favor de despedir o Conde.

El-Rei que estava de bom humor disse ao Conde: Já vou ter com v. ex.a á sala do despacho.

O conde inclinon-se e saiu.

Apenas elle desappareceu, a Infanta pegou vivamente na pasta que El-Bei tinha largado, correu os papeis com a vista, e tirou um dizendo — Aqui estão os nomes dos desgraçados condemnados á morte.

— Que faz Infanta! disse El-Rei. Era melhor que continuasse a bordar o meu bonet.
— Lembra-se V. M. do que me prometteu?

— Lembro, com tanto que V. A. se não esqueça tambem da sua promessa.

— V. M. tem o seu bonet amanhã, se salvar da morte este Luiz Franco, que está na relação dos sentenciados, e por quem eu e tanta gente lhe temos pedido.

El-Rei ticou pensativo por um momento, depois disse : — Concedido.
— Ah senhor! Quanto lhe agradeço! disse a Infanta com as lagrimas nos olhos abraçando El-Rei.

— Oh! Infanta, como está commovida! Venha tomar ar. Abram a janella!

Uma aia abriu a janella.

Estava-se a render a guardado paço. A multidão que aflluia para ouvir a musica, vendo as pessoas reaes, começou a victorial-as.

— Creia V. M., disse a lnfanta, que nunca mereceu tanto aquelles vivas como agora. Se V. M. m'o permitte vou já acabar-lhe o seu bonet.
— Visto isso, disse D. Miguel rindo e afastando-se da janella, trocou V. A. um bonet por uma cabeça.
E saiu do quarto cortando o ar com a chibatinha.

Pouco depois D. Francisca e Mathilde voltavam do paço, e encontravam-se com Jeronymo, Pedro Marques e Espanta-maridos, que as estavam esperando.

— E então? perguntou Jeronymo.
— Está salvo da morte, respondeu D. Francisca.


Silva, Avelino Amaro da, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863, 167 págs.

Sem comentários:

Enviar um comentário