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domingo, 7 de dezembro de 2014

O Caramujo, romance histórico (12/18), Botelho em casa de Josephina


BOTELHO EM CASA DE JOSEPHINA



Lisboa, Joseph Meyer segundo Clarke W. B. (detalhe), 1844.
Imagem: Antiquariat Reinhold Berg

Josephina Lopes era uma joven nascida em Lisboa, e filha de Joaquim José Lopes e de uma mulata, que este trouxera do Rio de Janeiro quando El-Rei D. Joäo VI recolheu a Portugal.

Josephina tinha sido educada com todo o esmero, e o resultado foi tornar-se tão interessante pelas qualidades intellectuaes, quanto já o era pelas physicas.

Este Joaquim José Lopes exercia o emprego de chefe de repartição na secretaria da guerra, e d'elle e de emprestar dinheiro com muita usura tirava bons interesses: por isso quando em 1831 falleceu, deixou a Josepbina e sua mãe o sufliciente para viverem com decencia.

Botelho, official da repartição de Lopes, era tambem visita de sua casa e seu commensal; e de tal sorte se foi insinuando n'esta familia, que pouco a pouco se tornou quasi como parte integrante d'ella.

Os tempos foram correndo, e as relações de Botelho com as duas mulatas apertando-se cada vez mais, até que se gerou uma grande inclinação de Josephina por Botelho e d'este por ella, resultando afinal que só lhes faltava cumprirem as ceremonias da egreja para serem completamente casados.

Atores Victor Wagner e Taís Araújo, Xica da Silva, tele-novela, 1996.
Imagem: Blog do Nilson

Josephina posto que mulata não o parecia. Tinha a pelle de um branco levemente tostado, bellos olhos pretos, feições muito regulares, e um corpo cheio e admiravelmente contornado. Assim era ella o enlevo de todas as vistas, quando vestida de branco, com os seus brincos de oiro e seus anneis nos dedos, apparecia resplandente de formosura em um camarote do theatro da rua dos Condes ou do Salitre, acompanhada de sua mãe e de Botelho.

D'estes amores de Botelho e de Josephina só estava sciente João Chrysostomo, o mestre de meninos, que era irmão colaço de Josephina, e que tivera suas pretenções a casar com ella, as quaes nunca poude realisar, porque Josephina jamais podera gostar d'elle.

Quando Chrysostomo teve conhecimento dos tristes amores de sua irmã colaça, cuidou morrer doido, porque a amava deveras; mas, como homem serio que era, calou comsigo o seu despeito e o que tinha sabido, não só por Josephina, mas porque devia a Botelho o ter sido nomeado professor para a Piedade, e este sempre o protegera e tratara com toda a estima.

Portanto todos ignoravam as intimas ligações de Botelho e Josephina, posto que estivessem persuadidos que Botelho aspirava á sua mão.

Josephina morava com sua mãe ao Terreiro do Trigo, não longe da casa de Botelho. Um dia estava este lá, e passava o tempo a olhar com um oculo para o Tejo e para a Outra-Banda, quando Josephina veio por detraz e lhe disse:

— O sr. Botelho, em vez de estar ao pé de mim, está-se occupando em olhar para o rio, talvez para o lado do Caramujo, onde a estas horas anda a passear o excellente Diniz com a afidalgada mulher, e a delambida da filha. Fortes paspalhões são aquellas creaturas! E o meu pobre Chrysostomo que tem de os aturar...

— Que está ahi a dizer, Josephina?... Se vossê não os conhece...
— Pois não conheço! Quando fui á Piedade ver a aula de Chrysostomo vi-os na capella. A filha em vez de attender á pratica que o padre fazia, aos discipulos de Chrysostomo, não tirava os olhos de um rapazote loirinho. Provavelmente era derriço [namoro].

Cova da Piedade, igreja Nossa Senhora da Piedade, década de 1970.
Imagem: almaDalmada

— Pareceme que sim, disse Botelho, tremendo-lhe um pouco a voz.
— E quem sabe se o sr. Botelho tem por lá tambem algum. Não larga aquelles sitios...

— Ora, Josephina! Eu, se ahi vou, é porque tenho lá muitos amigos. Bem sabe que meu pae morreu na Outra-Banda, e que toda aquella gente me estima.
— Pois sim, veremos. Quem m'o hade dizer ha de ser Chrysostomo.

— Vosse, Josephina, sempre está com essas coisas. Um dia heide acabar com todas as minhas relações, não farei outra coisa senão ir á repartição, a minha casa, e vir para aqui, e acabam por uma vez essas suas descontianças.
— Era o melhor, disse Josephina a rir.

— Era; mas bem sabe que então ficava eu sempre otlicial de secretaria, ninguem fazia caso de mim, e tinham-me na conta de um misantropo.
— Basta! Bem vejo que sou enfadonha. Mas que quer vosse, Botelho?... Sabe quanto o amo, e tambem deve estar certo de que se fosse trahida, era capaz de commetter os maiores excessos. Nem eu me quero lembrar d'isso.

— Mas na verdade Botelho, acrescentou ella, esses passeios tão repetidos á Outra-Banda não me agradam, porque de um momento para o outro, o rio embravece, levanta-se um vendaval terrivel, e não poucas desgraças teem acontecido.
— Socegue, que nunca me metto ao rio quando está temporal.

Vista de Cacilhas e do Tejo, Charles Landseer, 1825.
Imagem: Instituto Moreira Salles

— Havemos de lá ir uma tarde dar um passeio sósinhos.
— Mas de um momento para o outro o rio embravece, levanta-se um vendaval terrivel... O que me diz agora, Josephina?

— Porém ficámos lá em casa de Chrysostomo.
— Ai como vossê está! Confesse que ainda lhe não passou a mania de desconfiar de mim.

— Se desconfiasse fazia o mesmo que o sr. Botelho, quando me amofinava tanto, suspeitando que eu attendia o pobre Chrysostomo.

Mas eu não amava Chrysostomo para marido, continuou Josephina, injectando-se-lhe os olhos de sangue, e provei-o ao sr. Botelho: o sr. Botelho é que não correspondeu ao meu amor como devia, porque eu ainda não sou a sr.a Botelho.

— Ah Josephina! Sempre com essas repreensões! Já lhe tenho dito que em breve conto entrar na carreira diplomatica, e que apenas o obtiver, Josephina Lopes será de facto e de direito Josephina Lopes Botelho.
— E porque não hade ser já? Minha mãe está tão fraca e doente, que receio que ella morra sem ver sua filha casada.

— Oh, pelo amor de Deus! Espere ainda mais algum tempo. Esteja certa de que não hade tardar muito.
— Vamos, esperarei.

— Mas não está zangada comigo? Já não desconfia de mim?
— Não, disse Josephina arrebatadamente, e a prova, ajuntou ella tirando o oculo da mão de Botelho, é este abraço e este beijo.

Pobre mulatinha! Mal pensavas tu n'esse momento que abraçavas e beijavas um homem que empregava todos os meios para casar com a filha de Antão Diniz, do Caramujo.

Passado algum tempo chegou D. Adelaide, mãe de Josephina com o criado.

— Ai, sr. Botelho! diz D. Adelaide. Venho tão amofinada.
— Porque, minha mãe? perguntou Josephina.

— Porque fui ha pouco testemunha de uma scena bem desagradavel. Passava eu pela rua do Loreto, quando vi apparecer á porta de uma loja de loiça um homem, que começou a gritar para outro que ia perto de mim: "Malhado? Olha, malhado!" E nisto apontava para um painel no qual estava pintada uma figura de alva vestida e de corda. ao pescoço, e ao mesmo tempo dava badaladas com uma campainha.

O terror miguelista: os caceteiros, aguarela de  Alfredo Roque Gameiro, publicada em1932.
Imagem: www.roquegameiro.org

O desgraçado que ía pela rua não sei que disse: o que vi foi sairem dois sujeitos da tal loja, e começarem com a maior crueldade a espancal-o. Apressei o passo toda amedrontada, e ainda não estou em mim.

— Isso hade acabar em breve, minha senhora. Digo-lh'o eu, observou Botelho.
— São duas coisas que eu tomara ver realisadas, disse D. Adelaide. É que o sr. Botelho obtivesse um logar no corpo diplomatico, e que acabassem estas scenas de selvageria, que se vêem todos os dias em Lisboa.

— A primeira coisa depende da segunda, respondeu Botelho... ou talvez que não dependa, se no jogo politico em que me metti me não sairem as cartas que espero. Em todo o caso o amor e a pojlitica hãode fazer a minha felicidade, porque eu jogo com páo de dois bicos.

— Em amor? perguntou Adelaide com um modo zombeteiro.
— Oh não, minha senhora! É impossivel. Em polilica.

— E se se quebrafem os bicos.
— Se se quebraram os bicos, ainda fica... o amor que as senhoras me dedicam, e o meu braco e a minha cabeça que alguma coisa valem.


Silva, Avelino Amaro da, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863, 167 págs.

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