Caparica, Convento dos Capuchos, Painel de azulejos, Nossa Senhora da Boa Viagem. |
Appelidaram-n'a os latinos Ccefobrix, ou Ccetobica, e os árabes Hosnel-Madan (fortaleza da mina) ou Almadan (mina de ouro ou prata).
Frei Luiz de Sousa, que ainda quando era o brilhante Manuel de Sousa Coutinho, habitava o seu palácio n'esta villa, dá-lhe como etymologia a phrase dos cruzados inglezes que em 1147 ajudaram Affonso Henriques a tomal-a aos mouros, e os quaes, tendo acabado a faina, e querendo dar-lhe o nome da ventura e bom sucesso, exclamaram na sua língua — all is made. Tudo está feito e acabado.
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Mas como os mouros a habitaram antes da chegada dos inglezes, que depois vieram povoal-a, é mais provável que a origem do nome árabe venha das minas d'oiro da Adiça, que ali havia próximo, e que deram mais tarde uma coroa a D. Diniz e um sceptro a D. João III. Dizem outros que Almada tomou o nome de um árabe, que a senhoreava, chamado Almades ou Almadão.
O que é certo é que depois de romana foi árabe, até que os cavalleiros inglezes, companheiros de Guilherme da Longa Espada, vindo auxiliar Affonso l na conquista christã, a tomaram, saquearam e depois habitaram.
D. Sancho I doou-a aos cavalleiros de S. Thiago, que alli perto tinham o seu fidalgo castello em Palmella, e D. Diniz encorporou-a na coroa. Teve destinos vários, sendo devastada em uma investida do Miramolim de Marrocos, que depois foi obrigado a recuar, refugiando-se em Hespanha.
Villa e castello de Palmella, ed. Mendes Estafeta, 20. Imagem: Delcampe |
Mas o facto culminante da sua historia é a heróica resistência dos habitantes durante o cerco de Lisboa, em 1384.
Corria o mez de maio, sereno e tépido. D. João I de Castella, depois de se desfazer de D. Leonor Telles, sogra que se lhe tornara inútil e até importuna, desde que d'ella arrancara a regência do reino, e tendo-a enviado para Tordezillas, a esmagar entre as paredes do convento as suas ambições violentas, a abafar na clausura as paixões ardentes que ainda a minavam, e a emmurchecer na sombra a sua belleza, sempre provocante, resolveu vir de Santarém, pôr cerco a Lisboa.
Cerco de Lisboa, Crónicas de Jean Froissart. Imagem: Wikipedia |
O exercito hespanhol, numeroso, brilhante e aguerrido, encaminhou-so para a capital, talando os campos, devastando as povoações, matando os habitantes.
Chamara o Rei além d'isso todo o poder de Castella em seu reforço. Ordenou ao Marquez de Vilhena, ao Arcebispo de Toledo e a Pêro Gonçalves de Mendonça, que lhe trouxessem pelo menos mil lanças. Mandara que o seu almirante Fernão Sanchez de Toar, se juntasse em Castella com o Conde de Niebla, com O Mestre de Alcântara, com o Prior dos Hospitalarios portuguezes e com outros, para qne depois de tomadas as praças do Alemtejo se reunissem a elle no cerco de Lisboa.
No dia 26 de maio começaram a entrar no Tejo as primeiras galés castelhanas. A 28 o Rei de Castella, que estava no Lumiar, marchou sobre a cidade. Veiu por Campolide com a sua hoste, a cavallo, acompanhado de muitos peões, e besteiros; e chegando a Monte Olivete, perto de onde hoje é a praça do Príncipe Real (actualmente chama-se: Praça do Rio de Janeiro, e onde ainda uma rua conserva aquelle nome), ahi se demorou um dia, para d'aquella altura observar uma grande parte da muralha da cidade.
Corria ella então por onde hoje está S. Roque, em direcção ao Tejo. E ali perto abria-se a porta de Santa Catharina, junto ao convento da Trindade, onde os frades, animados de ardor patriótico, muito contribuíram para a resistência heróica da cidade.
N'esse dia, os de Castella andaram por aquelles arredores, que então eram campos deshabitados, cortando arvores, arrancando vinhas. Ali se deu a primeira escaramuça com os portuguezes que sahiram da cidade.
Na manhã seguinte desceu El-Rei de Castella a encosta, e mandou assentar o arraial junto do Mosteiro das Donas de Santos, da ordem de S. Thiago, edificio que actualmente é o palácio dos Marquezes de Abrantes (actualmente é propriedade da Legação de França) e freguezia de Santos-o-Velho.
Vista do Tejo tomada do palácio da embaixada de França, Joseph Fortuné Séraphin Layraud, 1874. Image: Musée Saint-Loup, Troyes, no flickr |
Era um deslumbramento esse arraial, onde se estabeleceu o Rei, a Rainha D. Beatriz, todas as suas Damas e um numeroso exercito composto de mais de trinta mil homens.
Para El-Rei e Rainha construiu-se uma casa assobradada, feita de quatro traves grossas e cercada de paredes de pedra secca. Em redor as numerosas tendas de senhores e fidalgos que com elles vinham, ostentavam os pendões, as armas e as signas de cada um. O restante do exercito estendia-se por Alcântara e Campolide, em bem alinhadas ruas que davam ao arraial o aspecto de uma cidade de prazer.
Havia a rua dos armeiros, a dos mercadores christãos e judeus, que vendiam pannos, e folias e muitas outras coisas. Havia a rua dos cambadores, para compra e venda de moedas de ouro e prata. Parece, porém, que minguavam os sapateiros, porque o chronista nota que de calçaduro nunca foi o arraial bem abastado.
A justiça, como quem diria hoje a policia, era tão bem feita, que cada um podia dormir descançado, ainda mesmo que sobre si tivesse grossos cabedaes. Ali havia phisicos, salorgiões e boticários, e nas coisas de prazer era o arraial abundantemente provido.
De Sevilha vinham não só armas e mantimentos, como assucares, conservas, agua rosada e outras distilladas, de que os viçosos homens usavam nos tempos de paz, e até mesmo havia rua de mulheres mundanarias no arraial, tamanha, como se acostumava nas grandes cidades. A guarda d'esse arraial era vigilante em terra para que ninguém podesse sahir da cidade sem ser visto.
E no mar, cerca de Almada, jaziam sempre duas galés, para que a cidade não recebesse mantimentos pelo rio. Além d'isso outras naus, desde Cata-que-farás [antiga praia, corresponde hoje ao Cais do Sodré e extensas áreas vizinhas] até ás portas da Cruz [hoje freg. Santa Engrácia], cercavam pelo rio a cidade que peia terra estava apertada n'um cinto de ferro.
Resistia valentemente. É digno de ler-se o capitulo de Fernão Lopes, em que descreve a heroicidade dos habitantes, a bravura dos soldados, a energia do Mestre de Aviz, e o enthusiasrno com que a população, quando ouvia repicar os sinos da Sé, corria ás muralhas, com espadas, lanças e pedras, que arremessava contra os castelhanos, cobrindo-os de apupos, brados e risadas de escarneo.
Os frades da Trindade distinguiam-se usando das melhores armas que podiam haver ás mãos, e os moços, sem medo, levando pedras fora dos muros para fazerem a barbacau, cantavam:
"Esta es Lisboa prezada, miralda, y leixada, se quisieredes carnero, qual dieron ai Andero, si quisieredes cabrito, qual dieron ai Arcebispo."
A Morte do Conde Andeiro, José de Sousa Azevedo (1830-1864). Imagem: Wikipédia |
Do outro lado, Almada também estava pelo Mestre de Aviz. Ora por este tempo aconteceu que Diogo Lopes Pacheco, velho de oitenta annos, que fugira para Castella depois da tragedia de Ignez de Castro, tendo resolvido vir ajudar o Mestre de Aviz, e sabendo que Lisboa estava cercada, subiu por Cacilhas junto a Almada, com seus trez filhos e trinta homens, que o acompanhavam, querendo entrar na villa, dizendo que lh'a dessem, que fossem seus e que elle lhes faria mercês.
Os do conselho da villa recusaram por julgarem que elles fossem castelhanos. O velho pousou com os seus no arrabalde da villa.
Ao cabo de trez ou quatro dias, tendo o Rei de Castella noticia da sua vinda em auxilio do Mestre, mandou de noite, em galés e bateis, passar muita gente. Formou-se uma pequena columna que, pela estrada que vem de Coina, se dirigiu a Almada. Os da villa, tendo noticia d'isto juntaram-se aos homens de Diogo Lopes e seus filhos, e com oitenta homens de cavallo, gente de pé e besteiros sommaram uns quatrocentos e cincoenta.
Os de Castella só de cavallo eram quatrocentos, fora os muitos besteiros e peões. A manhã era de névoa cerrada. Apesar da sua superioridade, os castelhanos perderam quarenta homens, e os portuguezes apenas sete.
Os fidalgos de Diogo Lopes fugiram para Cezimbra. O velho foi preso, assim como Affonso Gallo, recebedor da villa.
Então os castelhanos atacaram Almada, e, como não lhe podessem fazer damno, pozeram-lhe cerco. Este cerco foi um horror! Do lado de terra defendia-se a villa contra os ataques ordenados pelo Rei de Castella. Do lado do mar não a podiam combater por causa da grande altura a pique sobre o mar.
Outra espécie de guerra lhe fizeram mais cruel e efficaz. Tentaram reduzil-a pela fome e pela sede. A uma e outra o povo de Almada resistiu heroicamente. Depois que a esquadra de Castella veiu sobre Lisboa, os moradores de Almada acolheram-se ao castello em dois bateis bailheiros, em que ás vezes levavam mantimentos á cidade, e para que os castelhanos não os tomassem na peleja que se travou, e em que houve uns dezeseis feridos, queimaram-n'os.
A villa ficou cheia de gente, e provida ainda então de mantimentos: pão, vinho, carne e outras coisas que calculavam poder durar seis mezes. A agua, porém, começava a escassear. Apenas a havia n'uma pequena cisterna, á qual foi posta uma guarda severa que distribuía a cada habitante não mais que uma canada por dia. E o calor ia apertando... E havia dois mezes que a villa estava cercada...
Os seus habitantes faziam sortidas arriscadas, á caça dos castelhanos pelo termo, a Cezimbra e Arrentella. Um dia mataram mais de trinta em um lameiro. Estas sortidas eram realizadas pela porta da Barroca, que chamavam Mejão frio, e defrontava com o mar.
Os castelhanos, por mandado do seu Rei, tentaram então cavar uma mina para fazerem saltar uma alta torre que estava sobre a porta do castello. Isto foi presentido pelos portuguezes, que se apressaram em augmeutar a barbacan ou pequena muralha fora da alcáçova. Ali foram sahir os sitiantes com a bocca da cava travando-se então rija peleja, em que houve muitos feridos, o que contrariou sobremaneira o Rei D. João de Castella, que resolveu ir elle próprio combater Almada, para onde se dirigiu, com as suas gentes e capitães.
Mandou então construir no campanário da egreja de S. Thiago um cadafacens de madeira, d'onde podesse vêr toda a villa e assistir ao combate. Trepou-se a elle, e ordenou que o logar fosse atacado "com gente d'armas e de pé, e tiros e bestaria, e fundas de demogrillas e outras artilherias de combate!" Durou esse ataque desde a hora da terça até depois do meio dia.
A essa hora o Rei desceu á egreja para comer. Foi a sua salvação, porque os da villa — imaginando que elle ainda se achava sobre o cadafacens de madeira — resolveram atirar-lhe um tiro.
Esse tiro, que, atirado horas antes, teria morto o Rei de Castella e adeantado, decerto, a victoria do Mestre de Aviz; que teria libertado Almada e Lisboa; que teria supprimido Aljubarrota e a continuação da epopéa do Mestre e do Condestavel; que teria decidido a sorte dos exércitos e da guerra da independência, diminuindo o briltio da victoria, mas antecipando a fundação da dynastia de Aviz e alterando a sorte de Castella, esse tiro apenas matou dois homens obscuros, e feriu trez. O Rei já lá não se encontrava.
Estava na egreja, jantando. Amargou-lhe porém, decerto, a comida. Ainda tentou o recurso de atirar cora uma bombarda do peso de cinco quintaes, mas não tirou resultado do primeiro tiro de pedra, e ao segundo, a machina de guerra inutilisou-se.
Subiu a cólera no animo do Rei, e vendo que os de Almada se não queriam entregar, e resistiam aos seus ataques, lavrou ali solemne protesto de nunca preitejar com elles, nem com elles negociar qualquer forma de capitulação.
Haviam de render-se. Haviam de ser vencidos, e para isso lhes deixava Pêro Sarmento e João Rodrigues de Catauheda, com abundância de gente para o exterminio. E, dadas essas ordens, voltou raivoso ao arraial do lado de cá do Tejo.
Paisagem no castelo de Almada, José Malhoa, Album de desenhos (17), 1870. Imagem: Museu José Malhoa |
O calor ia apertando, e o verão, adeantando-se, queimava a pequena villa de Almada.
Narra então o velho Ferrão Lopes, na sua linguagem rude e expansiva, as angustias d'aquelle transe. E tão intensamente dramática é a situação, que a crueza da sua expressão não chega a ser indecorosa.
"Onde sabei, diz elle, que dentro na villa eram uns quarenta cavalleiros afora bestas de serventia, e quando a agua foi minguada houveram conselho de não darem de beber ás bestas, e foi tanta a sede d'ellas, que ali, onde mi... os homens, iam as bestas chuchar, e comiam aquella terra molhada."
Foi tal o horror de verem assim os animaes padecer, que ordenaram lançal-os fora para os não verem morrer, e como receiaram que deitando-os para a villa, os castelhanos se aproveitassem d'elles, lançavam-n'os de cabeça para o mar!
E o calor ia sempre apertando!... E a agua da cisterna a diminuir.
Começaram então a amassar o pão, e a cozer as comidas com o vinho das adegas. Até o próprio peixe tinham de cozer n'esse mesmo vinho, sendo obrigados a comer tudo emquanto quente, pois que depois de esfriar lhes repugnava.
N'isto a cisterna seccou de todo.
Recorreram então, tal era o horror da sede, a uma agua estagnada e verde, que desde as ultimas chuvas tinha ficado em charcos fora dos muros do castello. N'esses charcos, antes do cerco, as mulheres da villa lavavam as roupas infundidas e os irapos dos meninos e agora, desde que ellas não podiam arriscar-se alli, estavam esses pântanos coalhados de cães e gatos, e outros anlmaes mortos.
Pois era tão grande a sede d'aquella gente, que para obter essa agua immunda, alguns homens, em cada dia, arriscavam a vida. Como estava fora dos muros, iam de noite descendo por cordas, a furtal-a; coziam-n'a, e depois de fervida a bebiam e amassavam o pão com ella. Mas os castelhanos em breve deram com isso. E nas noites cálidas de julho, os portuguezes, para poderem dar de beber a suas mulheres, e a seus filhos, tinham de sustentar luctas rijas, em que houve muitos feridos de uma parte e de outra.
Mas como o calor apertava sempre, os próprios pântanos seccaram. Recorreram então á agua do mar, e tentaram recolher em tinas agua doce, lá em baixo, na ribeira. Cavaram na barroca um caminho, e por elle desciam ás occultas.
Almada, Boca do Vento, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 12, década de 1900. Imagem: Fundação Portimagem |
No primeiro dia sahiu-lhes bem o estratagema, e trouxeram agua á vontade. Avisados, porém, os castelhanos pozeram guardas áquelle caminho, e quando dezesete portuguezes iam na segunda noite recolher a agua, foram atacados com dardos e settas, por mais de um cento de inimigos.
Mortos trez portuguezes, os outros quatorze, mal feridos, conseguiram ainda assim recolher dois odres meios de agua. As tinas, porém, foram quebradas pelos castelhanos. Era o ultimo recurso!
E o calor ia apertando! Julho meiava-se abrazador. Morria gente de sede. Algumas mulheres e creanças fugiam de noite para os campos.
Accenderam-se almenáras, fachos sinistros que davam signal a Lisboa da angustia dos habitantes de Almada, que no emtanto heroicamente resistiam, sem quererem render-se.
Bem viam e sentiam os de Lisboa aquelle drama pungente, mas em nada podiam valer a seus irmãos.
Ainda assim, o Mestre de Aviz tentou enviar uma barca com recursos, pólvora e armas. Foi tomada pelos castelhanos.
Então, um cavalleiro gascão chamado Mossen Mone, lembrou-se de levar atado com uma corda, o recebedor Affonso Gallo, que fora preso por occasião das escaramuças em que Diogo Lopes Pacheco também tinha sido capturado.
Em frente á muralha disse aos de dentro que se rendessem, que o Rei de Castella lhes faria mais mercês, e que se não, Affonso Gallo seria morto alli mesmo, á sua vista.
Os de dentro teimaram em que nâo se renderiam, e com um tiro certeiro deram com o gascão morto. O portuguez ficou vivo.
Novo motivo de queixa para o Rei D. João de Castella, que ao relatarem-lhe o facto, jurou que todos haviam de morrer pela espada.
Julho acabava. O Mestre de Aviz, dentro de Lisboa, affligia-se com as tribulações dos bravos de Almada, mas de modo nenhum podia corresponder-se com elles, e conhecer realmente a sua situação.
Appareceu-lhe então um homem natural de Almada, que viera na frota do Porto e disse que, nadando, levaria o recado do Mestre aos da villa da Outra Banda. Acceitou o Mestre esse offerecimento, e por escripto mandou o seu recado para o informarem das condições em que se achavam.
Atravessou esse homem, de noite, o rio, nadando com valentia, até á Ribeira do Monte. D'ali subiu dissimuladameute pela Barroca, ao Mejão Frio, e faltando aos do castello, estes, conhecendo-o, lhe abriram a porta. Tomado o recado, informaram o mensageiro da sua situação angustiosa.
Les vignobles des bords du Tage, foto Paul Witte, Munich, Grande géographie Bong illustrée, c. 1911. Imagem: Delcampe |
E aquelle homem, com a simplicidade ingénua dos heroes, ouvida a resposta, de novo voltou a nado para Lisboa. E assim arriscou n'essa noite mil vezes a vida, não só luctando com as correntes do Tejo, como expondo-se á vingança dos castelhanos, que se aqui ou na outra margem o presentissem, tel-o-hiam logo morto.
Ouvido pelo Mestre o relatório dos padecimentos dos seus fieis d'além, passados trez dias mandou o mesmo homem, de noite, com recado a Almada, para que, em vista da situação, os seus habitantes preitejassem com o Rei de Castella. E ainda em levar recados e trazer respostas, o heroe, cujo nome ficou ignorado, passou o Tejo seis vezes, a nado, sempre de noite.
Plan du Port de Lisbonne et de ses Costes Voisinnes, Jacques Nicolas Bellin, 1756. Imagem: O Mundo do Livro |
Então, de accordo com o Mestre de Aviz, resolveram os de Almada capitular, e para isso mandaram emissários.
Mas o Rei de Castella, que sabia que todos os dias morria gente á sede, e esperava que assim elles se rendessem, recusava-se a preitear com elles.
Interveiu então a Rainha D. Beatriz. Confrangia-se porventura o seu coração de mulher com a narrativa dos horrores que alli perto estavam soffrendo mulheres e creanças, e não era talvez insensível ao seu animo de portugueza, que fora, a heroicidade com que portuguezes se defendiam tão tenazmente.
Implorou do marido que perdoasse, e entrasse em negociações. Foi afinal concedido que, aos habitantes, se lhes segurassem corpos e haveres e cada um ficasse em sua casa.
No dia primeiro de Agosto, o Rei D. João e a Rainha D. Beatriz, sahiudo do seu luxuoso arraial de Santos, embarcaram em festivas galés, dirigindo-se á Outra Banda, onde lhes foi entregue a villa e as chaves d'ella.
Almada defendera-se heroicamente, e capitulava agora com honra, escrevendo mais um capitulo brilhante na historia de Portugal.
Pouco depois ainda a vemos figurar quando Nuno Alvares Pereira, descendo d'Evora, resolveu vir a Almada, sobre Pedro Sarmento, capitão castelhano, que com elle não quizera pelejar.
Na Senda do Cavaleiro, José Garcês, 1950. Imagem: BDBD |
Veiu pelo castello de Palmella, onde se apresentou e d'onde ao dia seguinte, por desfastio, sahiu a correr monte, matando um porco. Conta-se até que resolveu presentear o seu competidor com este porco.
O caso é que veiu por Azeitão, de noite, e por os guias não serem bem certos e andarem fora dos caminhos, só chegou a Almada com soldado. Esperava alli surprehender Pedro Sarmento. Mas este estava em Lisboa. A sua hoste, porém, ficara alli, e por não esperar esta investida, quasi todos dormiam.
Levantaram-se á pressa, e combateram desordenadamente. Fugiam quanto mais podiam, e alguns ainda por vestir, como aquelle João Rodrigues Catanheda, que nem poderá envergar o gibão. Singular peleja aquella, em que até alguns capitães se evadiram pelos telhados!
Refere Fernão Lopes que, reunida a sua gente, ordenara Nuno Alvares que todos se collocassera no monte, sobre o mar, para serem vistos de Lisboa, d'onde effectivamente os lobrigaram com grande prazer os cercados na cidade, e com enorme furor o Rei de Castella, e Pedro Sarmento, o fronteiro, que também, meio vestido, se metteu em uma galé, dirígindo-se a Almada.
Já alli não encontrou Nuno Alvares, que muito descançadamente regressara a Palmella, onde á noite accendeu almeuáras para avisar os de Lisboa, que alli se achava. De cá responderam-lhe com muitas tochas no eirado dos Paços, onde o Mestre pousava.
Termina o pittoresco Fernão Lopes, dizendo: "Nuno Alvares apagou seus fogos por cobrar o somno que de antes perdera, onde fique com boas noites; nós tornemos ver esta atribulada Lisboa em que ponto está!!"
Fernão Lopes |
Durou ainda um mez o cerco que o Rei de Castella lhe pozera havia mais de trez.
A peste que dizimava o brilliante arraial, atacou a Rainha, a quem deram duas tramas. No sabbado trez de Setembro, o Rei de Castella, roído de raiva, ordenou que o cerco fosse levantado e que o fogo consumisse o arraial. Ardeu durante todo o domingo.
D. João de Castela levanta o cerco à cidade de Lisboa, Constantino Fernandes, 1878-1920. Imagem: Museu da Cidade de Lisboa |
O exercito castelhano arrastou-se, combalido, com a Rainha doente, por Santo Antão, Torres Vedras, até Santarém. Lisboa estava salva! (1)
(1) Sabugosa, Conde de, Embrechados, Lisboa, Portugal-Brasil Lda., 1911
Versão integral impressa:
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte I)
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte II)
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