Convento da Madre de Deus, Museu Nacional do Azulejo, Grande Panorama de Lisboa (detalhe), século XVIII. Imagem: O Universo Numa Casca de Noz |
Depois da epopéa a farça. A Rainha D. Leonor, mulher de El-Rei D. João II, é uma das mais luminosas figuras da Historia de Portugal. Bella e elegante na sua mocidade, segundo a pintam as chronicas, a sua estatura moral é de primeira grandeza, e a sua influencia decisiva na sociedade do século XVI.
Rainha D Leonor (1458-1525), José Malhoa, 1926. Imagem: Wikipédia |
Á sua iniciativa e intelligente impulso deve Portugal a instituição das Misericórdias, a introducção da Imprensa, e, por assim dizer, o Theatro nacional.
Foi ella quem, cooperando com D Beatriz, sua mãe,
Depois de isto escripto, os estudos de D. Carolina Michaelis de Vasconcellos, vieram demonstrar que a designação de Rainha Velha, se deve applicar á Rainha D. Leonor e não a sua mãe. Vide Nota Vicentina II - Coimbra, 1918.Em 1502, uma quarta-feira, 8 de junho, representou-se na camara da Rainha D. Maria, que dois dias antes tivera um filho (o futuro D. João III), o Monologo do Vaqueiro, que se pôde considerar a primeira peça dramática com forma litteraria representada entre nós.
Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
Depois, vê-se pelas rubricas das obras do poeta, a grande influencia que na sua factura teve a Rainha D. Leonor. É perante ella que em 1504 é representado na egreja das Caldas o Auto de S. Martinho. É por seu mandado que em 1505 se representa nos Paços da Alcáçova em Lisboa, o Auto dos Quatro Tempos.
É em 1506 que em Abrantes, tendo nascido o infante D. Luiz [Duque de Beja e donatário de Almada, pai de D. António, Prior do Crato], filho de El-Rei D. Manuel, foi pelo mesmo Gil Vicente feito no serão do Paço um sermão á christianissima Rainha D. Leonor, e a seu mandado o Auto da Alma.
Pátio do Prior, cuja construção consta ter sido ordenada por D. Luiz, fotografia de Júlio Diniz,década de 1950. Imagem: Visita Virtual Rotas de Almada |
E ás representações que a ella directamente não eram dedicadas, ou por seu mandado feitas, assistiu muita vez como protectora que era do poeta, e como principal elemento da animação e brilho dos serões reaes, a cuja organisação já presidia em tempo de seu marido, nos Paços de Santarém, de Setúbal, etc.
Nascimentos de Principes, casamentos reaes, recepções e despedidas, eram quasi sempre acompanhadas com alguma representação do Gil, que fazia os autos a El-Rei.
E muitas vezes, sem motivo de festa, ou acontecimento publico, e unicamente por desfastio nas continuas mudanças da Corte, que fugia aos assaltos da peste, tão frequente n'essa épocha, Gil Vicente representava um Auto, ou uma Farça que o seu génio animava com a graça viva das concepções, com o engenho dos argumentos, com a critica mordente dos costumes, com o desenho dos caracteres, com o bem achado das situações.
Foi durante um d'aquelles recrudescimentos de peste em Lisboa, que a Rainha D. Leonor, em 1509, se retirou para Almada. E alli, fiel ás suas predilecções, chamou Gil Vicente para lhe representar um auto.
Lisboa c. 1500–1510, Crónica de Dom Afonso Henriques, Duarte Galvão. Imagem: Wikipédia |
Acudiu elle prompto ao chamamento, e alli mesmo compoz a farça chamada o Auto da índia. Diz a rubrica assim: "Á farça seguinte chamam Auto da Índia".
"Foi fundado sobre que hua mulher, estando já embarcado para a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desviado, e que já não ia, e ella, de pezar, está chorando. Foi feita em Almada, representada á muito catholica rainha D. Leonor, era de 1519."
Esta data está errada na edição de Hamburgo, pois que na edição de 1562 se lê: "Era de MDIX." E assim deve ser. Em 1510 ainda a Rainha alli estava, quando foi do processo de Vasco Abul, como adeante veremos. Accresce também que n'um dialogo d'esta farça a Moça diz:
Trez annos ha Que partiu Tristão da Cunha.
Ora a partida da armada de Tristão da Cunha para a Índia, foi em abril de 1506, O que dá positivamente os trez annos em 1509.
Diz o sr. Theophilo Braga que o poeta dá a entender que esta farça era já conhecida do vulgo por que n'ella se diz: Á farça seguinte chamam Auto da índia.
Salvo o devido respeito ao douto professor, parece-nos que aquelle dizer não indica senão que ao tempo que o poeta, ajudado por sua filha Paula Vicente, a Tangedora, coordenava as suas obras, a esta farça, que já era então muito conhecida, chamavam Auto da índia. Como se sabe, n'esse período inicial do theatro raramente se repetia nas representações a mesma peça. E na rubrica d'esta claramente diz o poeta: Foi feita em Almada.
Gil Vicente, em muitos dos typos de seu theatro, é o precursor de Moliére. É fácil o parallelo, já mais de uma vez apresentado, entre os dois génios. Apontam os mesmos ridículos, como na farça dos Fisicos, em que o nosso poeta, com dois séculos de avanço, enche de epigrammas uma classe depois tão caricaturada pelo comediographo francez. Um e outro debicam no clero e na nobreza. E n'esta farça da Índia, as figuras da Ama e do Marido são perfeitamente de um Moliére do século XVI.
Algumas figuras do teatro Vicentino. Imagem: AVM |
Como vimos na rubrica, a anedocta sobre que a farça assenta, tomada nos costumes portuguezes a que as partidas das armadas para a índia tinham dado feições novas, põe em relevo um facto decerto frequente na classe baixa em que elle se passa; e confirmando o provérbio que diz: les absents ont toujours tort, aponta com graça e ironia a fragilidade e a perfídia do coração feminino.
Personagens são apenas cinco: A Ama, que rejubila com a partida do marido para a índia. A Moça — creada acomodatícia, que lhe diz:
Dae-me alviçaras, senhora,
já lá vae de foz em fora,
(Ama ) — Dou-te uma touca de seda,
(Moça) — Ou quando elle vier
Dae-me do que vos trouxer.
Figuram mais dois galantes, um castelhano e outro portuguez, o Lemos, que, aproveitando a ausência do marido e a leviandade da mulher, se introduzira na sua habitação, com seu assentimento, e finalmente o marido, que chega bem fora de propósito e bem pouco desejado, mas ainda a tempo talvez de não ter ardido Troía, e de ouvir de sua mulher os hypocritas protestos de affeição.
N'um dialogo rápido, em versos cheios de conceitos, e com a genuína graça portugueza, Gil Vicente define promptamente os caracteres dos cinco, e desenvolve a anedocta sem delongas que enfastiem.
A Ama diz á Moça, sua confidente:
Quem se vê moça e formosa,
Esperar pela ira má,
Hi se vae elle a pescar Meia legoa pelo mar,
Isto bem o sabes tu
Quanto mais a Calecut:
Quem ha tanto de esperar?
...
Para que he envelhecer,
Esperando pelo vento?
Quant'eu por mui necia sento,
A que o contrario fizer.
Partem em Maio daqui
Quando o sangue novo atiça...
E ella, moça e formosa, a quem o sangue novo atiça, sente com prazer que pela escada lhe sobe o castelhano, que emphaticamente se declara quando ella lhe pergunta:
(Ama) — Bem que vinda foi ora esta?
(Cast.) — Vengo aqui em busca mia,
Que me perdi en aquel dia
Que os vi hermosa y honesta.
Continua o castelhano a alardear o seu sentimento:
Supe que vueso marido Era ido.
Al diablo que lo doij
El desesfrado perdido.
Que mas índia que vos,
Que mas piedras preciosas,
Que mas alindadas cosas
Que estardes juntos los dos?
Ella defende-se com requintado coquettismo e acaba por lhe conceder uma entrevista ás nove da noite, dizendo-lhe que dê signal com uma pedrinha na janella.
Apenas elle sahe, entra o Lemos, que:
Andava aqui.
Meu namorado perdido,
(Moça) — Quem ? O rascão do sombreiro?
(Ama) — Mas antes era escudeiro.
E o Lemos, que se declara:
Vosso Captivo, senhora,
(Ama) — Jesu! Tamanha mezura!
Sou a rainha, por ventura ?
(Lem.) — Mas sois minha imperadora!
E assim piegas e alambicado, continua cortejando, quando se ouvem na janella as pedrinhas do castelhano. Querem metter o Lemos para a cozinha, o castelhano impacienta-se, e depois de peripécias varias, exclama a moça:
Quantas arles, quanta manha,
Que sabe fazer minha ama,
Um na rua outro na cama...
E logo partiu a armada
Domingo de madrugada,
Não pôde muito tardar,
Nova se ha de tornar
Noss'amo pêra a pousada.
Três annos ha
Que partiu Tristão da Cunha.
Volta d'ahi a pouco esbaforida e exclama:
(Moça) — Ai, Senhora! Venho morta:
Noss'amo he hoje aqui.
(Ama) — Má nova venha por ti.
Perra, excommungada, torta.
E quando depois o marido entra, esperando encontrar n'ella mulher de recato, ella descreve-lhe o que soffreu com a ausência:
Jesu! Eu fiquei finada,
Três dias não comi nada.
A alma se me queria ir.
Juro-vos que de saudade
Tanto de pão não comia
A triste de mi cada dia.
Doente era uma piedade.
Aonde não ha marido
Cuidae que tudo é tristura,
Não ha prazer nem folgura
Sabei que é viver perdido,
Alembrava-vos eu lá?
(Mar. ) — E como?
(Ama.) — Agora, aramá
Lá ha índias mui formosas;
Lá faríeis vós das vossas
E a triste de mi cá.
Encerrada n'esta casa...
Com que conhecimeuto do coração humano nâo é lançada esta nota pérfida destinada a socegar o confiado marido, e a lisongeiar-lhe a vaidade!
E com estas fallas lá o leva a ir juntamente com ella ver a nau que o trouxera, e assim, diz Gil Vicente, na rubrica, "fenece esta farça".
Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens, Retábulo de Santa Auta, c. 1522, MNAA. Imagem: (In)Cultura |
Divertiu ella por certo, distrahiu, e alegrou o escolhido auditório dos refugiados em Almada, por causa da peste, que ardia defronte em Lisboa. Mas nâo deixa de ser curioso ver uma Rainha, já a esse tempo tocando nos 52 annos, entregue habitualmente á vida severa e recatada do seu palácio de Enxobregas, e o escol da sociedade que a acompanhava comprazerem-se e folgarem com as aventuras algo libertinas da astuta e leviana mulher do embarcadiço, com a ingénua e cega confiança d'elle, e com os requebros amorosos dos dois rufiões, tudo expresso em linguagem crua e sem rebuços.
Mestre do Retábulo de Santa Auta, Chegada das Relíquias de Santa Auta (detalhe), Cristovão de Figueiredo?, c. 1520, MNAA. Imagem: do Porto e não só... |
É que no século XVI havia menos convencionalismo. Diziam-se as coisas pelos seus no mes, sem que escandalisasse ouvir o que hoje se chamaria um palavrão. Os personagens de Gil Vicente fallam deante da corte com a liberdade, isenta de circumloquios, com que hoje as regateiras e collarejas da praça da Figueira discutem entre si.
E não só a hinguagem era rude, e as pragas, as chufas, as exclamações brutaes eram pronunciadas claramente, como também a ideia do pudor era diversa da que hoje impera.
Gil Vicente entrava vestido de Vaqueiro, na camará em que dois dias antes a Rainha D. Maria tinha dado á luz um filho, e referia-se sem euphemismo ao facto physiologico que n'esse quarto se passara.
Os amores dos clérigos, as proezas dos frades rufiões, a interferência das alcoviteiras, e os infortúnios dos mal maridados, eram contados por claro, a Rei, Rainha, Infantes e cortezãos. Mas não era só Gil Vicente quem tomava estas liberdades nas suas peças.
Nos serões do Paço, onde se discutiam subtilezas d'amor e se versejava sobre as intrigas da corte, não só as palavras eram ciaras, — e as expressões d'então parecem hoje indecorosas, — mas os factos sobre que se faziam apodos e se rimavam coisas de folgar, eram, segundo o critério d'agora, sujas ou escabrosas.
Quem quizer ler no cancioneiro de Resende as trovas do Brazeiro, as trovas do Conde de Vimioso ao Barão do Alvito, porque vindo com El-Rei de Almeirim, se lhe destemperou o estômago, etc, terá uma idéa da pouca limpeza na linguagem corrente d'esse tempo.
E quem lêr as trovas de Fernam da Silveyra a D. Rodrigo de Castro, que beijou uma dama, ou as de D. Joam de Meneses, e vários poetas a outra dama que beijava D. Guiomar de Castro, terá ideia das surprezas d'aquelle D. Rodrigo, e das proezas d'aquella dama de saphica memoria.
Mas o que hoje faria corar muitos que ouvissem taes desmandos u'uma sala, era admittido como fina essência de espirito em toda aquella épocha, e n'esse serão do paço d' Almada, no anuo de 1509.
Onde se aposentava a Rainha D. Leonor, n'essa villa? E onde era representada perante ella e a sua corte a farça da índia? Palácio com grandeza e magnificência não havia.
Durante toda a Edade Média a corte deslocava-se muito frequentemente, e a não ser em Lisboa, Santarém, Cintra, Estremoz, Coimbra, Almeirim, Setúbal e Évora, e ainda outras terras onde havia paços verdadeiramente reaes, de resto escolhia-se uma casa boa ou soffrivel para aposentação dos Reis, e a comitiva accomodava-se pelas habitações dos principaes d'essa localidade.
Em Almada não havia paço, mas é de presumir que a Rainha D. Leonor teria ali, herdada de sua mãe a Infanta D. Beatriz, alguma morada de casas pertencentes ao almoxarifado.
Lisbona citta principale nel
regno di Portogallo fu presa dall'armatta con l'esercito del re catolico
all ultimo d'agosto l'anno 1580, Mario Cartaro. Imagem: Universität Salzburg |
E foi n'essas casas, de que hoje não ha vestígios, onde se refugiou da peste, onde hospedou Gil Vicente, e os comediantes, e onde reuniu a sua corte, para ouvir e se deleitar com as graças da Farça da índia. Foi alli também que no anno seguinte se deu o caso que na litteratura ficou com o nome de Processo de Vasco Abul.
Nos serões do Paço era vulgar debaterem-se entre poetas, ou simples versejadores, algumas questões amorosas, anecdotas pessoaes, casos da Corte em forma de pleito judicial, ou processo o que foi para assim dizer o rudimento de uma espécie de arte dramática.
No Cancioneiro de Resende encontram-se vários torneios métricos tratados por esta forma como a questão do Cuidar e Suspirar, esta de Vasco Abul e outras mais.
Quer-se ir procurar a origem d'esta maneira de versejar na intenção que tiveram os juriconsultos da Itália (depois da passagem do papado para Avinhão) de tornarem conhecidas as formas do processo, compondo debates entre grandes personagens da antiguidade, que se atacavam e defendiam pelo ministério dos procuradores e advogados, usando dos recursos das discussões judiciarias.
O processo de Vasco Abul, que se debateu nos seroes da Rainha D. Leonor, estando ella ainda em Almada, em 1510, tem esta forma usada nas discussões dos tribunaes, e n'ella entram vários poetas, como vamos vêr.
O que deu origem a este caso diz-nos uma rubrica do cancioneiro geral que reza assim:
"Anrique da Mota a Vasco Abul, porque andando uma moça baylando em Alemquer, deu-lhe, zombando, uma cadeia d'ouro, e depois a moça não lh'a quiz tornar, e andaram sobre isso em demanda, e veo Vasco Abul falar sobre isso ha raynha, estando em Almada e haly lhe fez estas trovas."
Vasco Abul era um cavalleiro que vinha de nobre gente, e parece certo ser aquelle mesmo Abul que annos antes em 1488, fora como capitão d'uma caravella na armada da "ida e passagem de D. João de Bemoim" o príncipe Jalofo, que visitara D. João II.
Lisboa, Chafariz d’El-Rey c. 1570- 1580, autor desconhecido. Entre outros detalhes, um africano a cavalo com o hábito da Ordem de Saniago. Imagem: Lisboa, cidade africana |
A essa opinião se inclina o erudito escriptor o sr. Anselmo Braamcamp Freire. E a nós parece-nos essa opinião confirmada nos versos:
Andais ledo cm grão guisa
Como quem veio da Myna.
Não era portanto d'uma grande mocidade o Vasco Abul, posto que fosse bem disposto, isto é, bem parecido ainda, quando, segundo dizem as trovas:
Uma gentil bailadeira
De Alemquer fermosa,
gentil mulher,
me chofrou d'esta maneira:
Por me não parecer feia,
vendo a bailar um dia,
lhe mandei por boa estreia
uma cadeia que eu no pescoço trazia.
Depois, quando a quizera recolher,
quizeram-se fazer crer
que eu por sua lh'a dera.
O folião do velhote, vendo a mocetona dançar, e sentindo ferver-lhe o sangue, com amor, galanteria ou concupiscência, tira do pescoço uma cadeia d'ouro que valia "cincoenta bons cruzados", cerca de 130$000 réis, e enfia-a no pescoço da rapariga, que das trovas se parece deduzir ser órfã, e que decerto tomaria o offerecimento como declaração de namorado.
Ella, segundo a alegação que elle depois offerece:
Bailava bailo vilão
ou mourisca
mas chamo-lh'eu carraquisca,
Mais viva que tardião.
O caso é que elle, acabada a dança, quiz recuperar a sua cadeia, mas a bailadeira recusou-se a dar-lh'a, e começando assim a demanda, o velhote veiu queixar-se á Rainha D. Leonor, a Almada, onde Aurique da Motta, poeta satyrico, e mais outros ajudadores, lhe dirigem trovas n'uma troça que o deixou mal ferido:
Que buscaes cá nesta ierra?
Com tal sul
Meu senhor Vasco Abul?
E o poeta das trovas figura um dialogo em que o Abul responde defendendo-se. Parece terem-lhe declarado guerra, allega, mas tudo são mexericos ou intrigas que lhe levantaram.
Replica Anrique da Motta:
Vós andais esmorecido,
Eu não sei que vós haveis,
Responde o Abul:
É um caso tão subido
Que duvido
Se vós o entendereis
Motta:
Não cureis de duvidar
E dizei-m'o
Abul:
Não no digo porque temo
Que hão de mim zombar.
E tinha razão de temer que zombassem d'elle, porque este dialogo todo, composição do Motta, revela notável graça pela facilidade em improvisar. E' uma troça pegada ao cavalleiro e capitão da caravella que depois de, em um Ímpeto de enthusiasmo, ter sido generoso com a ladina bailadeira, se arrepende, e quer voltar atraz, tirando-lhe a cadeia.
Depois, quando quizera recolher,
Quizeram-me fazer crer
Que eu por sua lh'a dera.
Responde-lhe o Motta:
E vós ficais d'ahi honrado,
Não deveis dizer ahi ai,
Que o homem bemcriado Namorado
O bom é ser liberal.
Mas de liberal e generoso é que Abul não tinha fama, pois no seguimento do processo é sempre apodado pela sua avareza. Dizem-lhe que nâo crie fama de escasso e mais:
Usai liberdade'
e quiçá,
se vos não ama
Essa dama
amarvos-ha de verdade.
E hi levar boa vida
A vossa casa,
qu'isto é vergonha rasa
Avareza conhecida.
Aperta-o tanto o Motta que o obriga a declarar:
Ataes me por tal
maneira que me pesa,
e nâo posso achar defesa
que preste, posto que queira
a verdade não me vale,
Por escasso me apregôo,
E acabando em "vilancete", exclama Anrique da Motta:
Todos vós outros, senhores,
Que sabeis aqueste feito,
Sede meus ajudadores.
Estes ajudadores são vários. Uns, poetas da corte, outros poetas de profissão, como Gil Vicente, que também entra n'este processo. Outros são empregados na casa da Rainha D. Leonor, como João Alvares, o secretario, Sebastião da Costa, o cantor, Branca Alves, crystaleira, e até o Mestre Gil, que parece ao sr. Theophilo Braga ser o celebre ourives, auctor da custodia dos Jeronymos, que por muitas vezes tem passado por ser o próprio Gil Vicente do theatro.
Os Doze Apóstolos da Custódia de Belém, Gil Vicente, 1506. Imagem: MNAA |
O sr. Theophilo Braga nos seus recentes estudos affirma ser um primo do poeta que foi ourives também da Rainha D. Leonor, que tinha o mesmo nome, e que também metrificava, como também ao poeta não eram estranhas as regras da arte da ourivesaria. E d'aqui nasceu facilmente a confusão.
E um dos argumentos do sr. Theophilo Braga para a existência da dualidade do ourives e do poeta é, n'este processo de Vasco Abul, apparecer uma copla de Mestre Gil, ao passo que adeante se lê no cancioneiro e n'este mesmo processo o parecer de Gil Vicente, sem lhe chamar Mestre.
Ao sr. Anselmo Braamcamp parece que este Mestre Gil será o cirurgião-mór a quem os documentos sempre dão esta designação e que morreu em 1511.
Depois de ter apparecido este artigo publiquei o — Auto da Festa — obra desconhecida de Gil Vicente, que fiz anteceder de uma explicação. A propósito d'este livro, escreveu no Jornal do Comercio, com o pseudonymo de Silex, o erudito escriptor o sr. Anselmo Braamcamp Freire que tão valiosos serviços tem prestado aos estudos históricos, uma serie de artigos intitulados: — Gil Vicente — Poeta Ourives. Aproveito o ensejo para agradecer as lisonjeiras referencias que faz ao meu ensaio.Fechado aqui esto parenthesis, que tem o seu interesse, e acceitando que o Ourives da Rainha ou o cirurgião-mór também fosse trovador com o nome de Mestre Gil, vejamos quem são os outros ajudadores.
Agradeço egualmente a forma como aprecia as minhas conjecturas e hypotheses, ainda mesmo quando d'ellas diverge. Feliz o livro que gera outro livro. N'este caso congratulo-me duplamente, pois a minha publicação fez nascer os artigos que tão brilhantemente demonstram a identificação do Poeta com o Ourives.
É Agostinho Giram, é Affonso Fernando Montarroio, é Diogo de Lemos, é Diogo Gonçalves, e Fernão Dias, é finalmente o próprio Gil Vicente, que dá o seu parecer com uma arte e uma firmeza que demonstra a sua superioridade sobre os precedentes, a maior parte dos quaes são versejadores de occasião n'este divertimento palaciano, e que não mais figuram entre os poetas do tempo.
Todos estes entraram no processo, por assim dizer, como testemunhas de accusação, e os seus depoimentos teem mais ou menos interesse. Um, porém, o do cantor Sebastião da Costa, é digno de reparo, pois que diz:
Andais ledo,
em grão guisa
Como quem veiu da Myna,
Galante, cheio de frisa,
Como vossa gentil divisa
De cruz vermelha mui fina
E pois já se determina
Que percais este collar.
Não vos deve de lembrar.
O facto de dizer: como quem veiu da Myna, isto é de S. Jorge da Mina que fica ao sul do paiz de Jalofos, para onde partira em 1480 a caravella commandada por um Abul, confirma, emquanto nós, a supposiçâo do sr. Anselmo Braamcamp, de que este Abul do processo é o mesmo da viagem, o que faz com que elle em 1510 fosse já próximo dos sessenta, concordando isso com o verso que Anrique da Motta lhe põe na bocca:
pois que sei e vós sabeis
que sei mais por ser mais velho...
É impossível trasladar aqui todo o processo embora curioso. E dos "embargos de Anrique da Motta pêra se non entregar o colar a Vasco Abul, ffeito a rraynha dona Lyanor", apenas transcrevemos o começo que diz:
Senhora,
Bem posso eu com razão
por ser dos órfãos juiz
acceitar a tal acção:
o direito assim o diz
nas Sergas d'Espradiam
Estes últimos dois versos sâo notáveis, porque determinam por assim dizer a data do processo, conforme nota o sr. Theophilo Braga, que primeiro o julgou passado em 1493, e que depois se convenceu de que o foi em 1510, pois é d'esse anno a primeira edição das conhecidas — "Sergas d'Esplandia".
Segue-se o parecer de Gil Vicente, onde facilmente se reconhece la griffre du lion. Começa elle:
Senhora,
Vossa Alteza me perdoe
eu acho muito danado este feito processado,
em que manda que razoe,
vae a cura tão errada, vae o feito tão perdido,
vae tão fora da estrada,
que a moça condenada
Vasc'Abul fica vencido.
Como quem diz que se a sentença obrigasse a moça bailadeira a restituir o collar, quem moralmente ficava vencido e condemnado era Vasco Abul.
E de facto, na réplica, que depois do parecer de Gil Vicente, apresenta Anrique da Motta, acaba por dizer-se:
E tanto que lhe foi dado
não seja aqui mais ouvido,
seja d' aqui degradado
não se chame namorado,
pois d' amor não foi vencido.
Mas eu certo não duvido
por isto que se cá fez,
qu'elle não seja atrevido
em praça nem escondido
a emprestal-o outra vez.
Assim, esse Vasco Abul, nobre e cavalleiro, que commandára uma caravella, e que navegara pelos mares d'Africa até á costa da Mina, é crivado de chufas e de motejos, troçado, alvo da ironia dos poetas, dos cantores, e de crystalleiras, e finalmente escorraçado d'Almada, só porque faltara ás lei da galanteria, tão presadas n'esses séculos de cavallaria, em que o culto da mulher era a lei suprema.
Portogallo, Lisbona dal promontorio. Gravura executada por Terzaghi sobre desenho de Barbieri reproduzido de um original do século XVII. |
E o pobre Vasco Abul, que merecia talvez pelos seus feitos ter o nome registado entre os dos nossos navegadores, fica apenas conhecido com o processo de Almada, por ter negado um collar de cincoenta cruzados a uma bailadeira d'Alemquer! (1)
(1) Sabugosa, Conde de, Embrechados, Lisboa, Portugal-Brasil Lda., 1911
Versão integral impressa:
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte I)
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte II)
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História da Litteratura Portugueza
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