Cais do Ginjal (detalhe), Julio Diniz, década de 1960. Imagem: Museu da Cidade de Almada |
Agora, o apito da fábrica de conservas berrou duas, três vezes, e prolongou-se indefinidamente. Estão a chamar mulheres! exclamaram todos. No rio, aproximava-se um alegre cortejo fluvial. Um gasolina rebocava um buque na direcção do cais e o tombadilho da embarcação vinha berrante de varinas. Um tecto branco de gaivotas sobrevoava o barco, com estridentes pios de gula.
Cais do Ginjal. Embarcações na praia das lavadeiras, Júlio Diniz, década de 1950. Imagem: Museu da Cidade de Almada |
A miudagem pulou de gáudio. Vestiram-se os que a briga atrasara. Chico Trinta botou aviso:
— Cada um par seu lado! Nada de ajuntamentos!
Outros rapazes, mais espigados surdiram da garganta da rocha. Chegavam também as primeiras mulheres ao chamamento sôfrego da fábrica. Próximo de terra, o gasolina singrou numa elegante curva e o homem do linguete soltou o cabo de reboque deixando vir o buque a navegar para o cais.
Cais do Ginjal e fábrica La Paloma, Amadeu Ferrari, década de 1940. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Já o gasolina se afasta, veloz, ante as chalaças dos poucos tripulantes, que não poupam as varinas.
— Ó lindeza! Logo vou lá bater ao ferrolho, ouviste?
— Olha, bate com os cornos!...
Perde-se a réplica, mas há ainda novos gracejos.
A embarcação aborda a terra e saltam os tripulantes. As varinas trazem as canastras. Os marítimos encamisados de flanelas berrantes arrastam saveiros de borracha, de canos a roçagar pelas virilhas. Pessoal gingão, metediço e reinadio. Num voltar de braços, as mulheres estendem a lona na canastra e botam-nas à cabeça.
Ti Maria Lancha, capataza veterana, deu o primeiro berro — a primeira ordem:
— Ó gente, vamos ao sal!
Três estivadores despiram as calças e arregaçaram as ceroulas acima das coxas. Calças, casacos e saveiros foram unidos em froixa, que se acomodou num forro da vela.
Abre-se o porão duas portas pesadonas, que tombaram, uma para bombordo e outra para estibordo e a sardinha, um chão de prata, brilhou para o cais, atiçando a gula das gaivotas e do rapazio.
Alfredo ouviu que o chamavam. Na escadaria da fábrica, enxergou a mãe debruçada, com o braço a acenar.
— Senhora!?
— Vai pra Almada, não ouves!? Eu fico na fábrica a trabalhar! O teu pai larga às cinco e quer-te ver ao pé de casa!...
— Já vou...
La Paloma, conservas de peixe, anúncio de 1947. Imagem: Elisabete Gonçalves, Memórias do Ginjal. |
As fabricantas, apressadas, iam entrando. E, quando alguma parava e impedia caminho, sofria empurrões e apupos:
— Sobe, Gracinda! Deixa, que o teu rapaz não entra em casa com as mãos a abanar!
A mulher de Leonel não gostou da piada... mas só lhes resmungou a resposta sob os tectos fabris.
Outras e outras se seguiram, escada acima: raparigada nova, de seios a tremelicarem sob as blusas; mulheres gastas, de mau passadio, roto e trajar sem cuidados; e ainda uma cauda molengona de velhas rugosas e ossudas.
Sumidas as últimas entre umbrais, o apito cessou de berrar, enfim. Sobre o cais, numa pressa, concluiu-se a moira, canastras de sal vazadas no porão, juntamente com baldes de água arrancados ao rio.
Depois, um dos homens veio para a muralha, outro ficou no tombadilho e o terceiro alojou-se no porão, mergulhando as pernas no peixe.
Ti Maria Lancha, a capataza, ainda não parou de berrar:
— Vamos a isto, ó gente! Ai, que estamos desgraçadas! Quem não pode, arreia!
Descarga e lavagem do peixe, ed. Martins/Martins & Silva, c. 1900. Imagem: Delcampe |
É uma velha alta, seca, tez acobreada por muitos sóis, e a sua boca desdentada treme, sobre o queixo, ao peso de muitas pragas:
— Ó Rita, tu hoje andas na avenida ou quê? Por esse andar, temos buque inté à noite!
O Zé Lula, um apanhador de cabazes, de nariz arrebitado, olhos à china, tem as pernas mergulhadas no mar de peixe do porão. As suas mãos não param: mergulham os catitas de verga e retiram-nos pejados de sardinha, a escorrer de moira.
Arremessado o cesto, este viaja, num curto voo, até às mãos do camarada do tombadilho. É posse que só dura um novo balanço, pois o cesto logo sobe em voo mais longo, até que o terceiro apanhador, que mãos! o capta com perícia de malabarista.
A borda do cais está uma barrica de pé. Sobre o tampo, as varinas, uma a uma, assentam canastras, que recebem peixe. Canastra cheia canastra à cabeça. Outra varina toma a vez...
— Então, Emilia, o teu homem já voltou à estiva? — Isso voltou ele... Aquilo foi trambolhão maldito, pancada ruim...
As mulheres sucedem-se. Num vaivém fatigante, o trajecto da muralha ao primeiro andar da fábrica é calcorriado com frenesi. Na lama do caminho ficam moldados os pés, muitos pés: largos, sapudos, dedos espalmados, quase primitivos.
A Varina, Ilustração Portugueza, 2.aSérie n.a 339, 19 de agosto de 1912. Imagem: Hemeroteca Digital |
Canastra à cabeça, tronco vertical, um braço amparando a carga e o outro aos sacões balanceados da correria.
Quadris bailões, safam, em passadas curtas, as pernas raiadas de varizes. Escorre a moira pelas roupas — e o ar, ao secá-las, deixa manchas brancas de sal.
A boca, num ricto doloroso, cospe baba e dichotes aos metediços.
— Arreda, lingrinhas!...
Os olhos encovados da capataza não perdem as manobras do rapazio.
Ela bem os topa, sorrateiros, um aqui,outro acolá, gancheta de arame rapinando o peixe das canastras.
— Ó Irene, dá uma porrada nesse canalha!
Três, quatro sardinhas são apanhadas do chão, e o fedelho esgueira-se para novo couto.
O guarda-fiscal desafivela o cinturão e aguarda nova oportunidade...
— Arraúl, quantas?
— Quase um quarteirão! E tu, pá?
— Ela por ela...
Chico Trinta a todos ultrapassa na colheita. Para cima de um cento! E quase sem se ralar e expor...
Albaneco morde-se de inveja. Ele não pode ver a varina fazer o jeito ao companheiro... Barafusta, intromete-se, torna-se abelhudo e embirrante.
Maria do Carmo é a mais linda rapariga da descarga; mas, para todos, e só a Carmo. Carita oval, olhos negros, cintura de cabaça e perna airosa. Todo o rapazio a nota à chegada e à partida: "Ainda não está a Carmo..." ou: "A Carmo já abalou..."
Ercília Costa. Imagem: du bleu dans mes nuages |
Quando calha também, Ti Maria Lancha não a poupa de responsos, o que faz a varinita perder a estribeira... Arremeda, resmunga — e vinga-se logo, inclinando a canastra...
— Apanha, Chico!...
Varinas e pessoal do cais namoravam-se sempre. O peixe os punha frente a frente, a meter braços à descarga, a enleá-los naquele clima franco e rude.
Cedo os catraios volviam olhos de admiração para as mulheres da descarga: decoravam-lhes os nomes, ofereciam-lhes os seus préstimos e sorrisos.
Sophia Loren, Agnès Varda, 1956. Imagem: Pinterest |
Assim nasciam simpatias, amizades que o tempo arraigaria no sangue, ao calor de uma certeza:
Peixeira de Buarcos, Zé Penicheiro, 1954. Imagem: almanaque silva |
— "Não há mulher prà ajudar um homem como uma varina!" (2)
(1) Romeu Correia, Cais do Ginjal, Lisboa, Editorial Notícias, 1989, 188 págs.
(2) Romeu Correia, Os Tanoeiros, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1976
Artigo relacionado:
A praia das lavadeiras no Ginjal
Leitura adicional:
Les conserves de sardines à l’huile, ou le luxe français sur les grandes tables du monde
É sempre um prazer seguir as suas incursões pela escrita de Romeu Correia, enriquecidas pela excelente iconografia que utiliza.
ResponderEliminarOlá Edite, agradeço-lhe as simpáticas palavras.
ResponderEliminarCumprimentos