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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Líricas de Melodino

Francisco Manuel de Melo (1608 – 1666)

Em 19 de Novembro de 1644, quando tudo parecia sorrir-lhe, é preso como suposto instigador dum crime de homicídio. Um tal Francisco Cardoso tivera relações amorosas com a mulher dum criado de D. Francisco Manuel, chamado João Vicente, a quem o escritor havia despedido. Cardoso é assassinado, e dois dos criminosos declararam que tinham perpetuado o crime por mandado de D. Francisco Manuel. Preso a pedido do pai do morto, foi D. Francisco encerrado no Castelo, donde depois o transferiram para a Torre de Belém, e mais tarde para a Torre Velha, na margem esquerda do Tejo.

Torre Velha ou Torre de S. Sebastião da Caparica, Francisco de Alincourt, técnica mista, 1794.
Imagem: Instituto Geográfico do Exército

O juiz dos Cavaleiros condena-o a degredo perpétuo para a Africa. Na segunda instância, é condenado a degredo, mas para a Índia e com privação duma Comenda que lhe havia sido concedida. A terceira instancia mantém o degredo, mas para o Brasil (1650).

Esta sentença só foi mandada executar em 1652, mas só passados mais três anos é que D. Francisco segue para o exílio. Era em 1655, onze anos depois da prisão [...] (1)

De consoada a uma S. P. [F. P. no original]:

Que vos hei de mandar de Caparica,
de que vós, prima, não façais esgares?
Porque de graças e benções aos pares,
disso, graças a Deus, sois vós bem rica...

Uma extensa vista de Lisboa no rio Tejo com a praça do Terreiro do Paço, a velha catedral e o castelo de S. Jorge, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: MAGNOLIA BOX

Mel e açúcar? São cousas de botica.
Coscorões? São piores que folares.
Perus? Não, que são pássaros vulgares.
Porco? Só de o dizer nojo me fica,

Mandara-vos o sol, se desta cova
m'o deixaram tomar; mas é fechada
e inda o é mais para mi a rua nova.

Pois, se há de ser de nada a consoada,
mandar-vos hei sequer, prima, esta trova,
que o mesmo vem a ser que não ser nada.

Responde a um amigo [...]:

Casinha desprezível, mal forrada,
furna lá dentro, mais que inferno escura;
fresta pequena ; grade bem segura;
porta só para entrar, logo fechada;

Torre Velha ou Torre de S. Sebastião da Caparica, Francisco de Alincourt, técnica mista, 1794.
Imagem: Instituto Geográfico do Exército

cama que é potro; mesa destroncada;
pulga que por picar faz matadura;
cão só para agourar ; rato que fura;
candeia nem co'os dedos atiçada;

grilhão, que vos assusta eternamente;
negro boçal e mais boçal ratinho,
que mais vos leva que vos traz da praça;

sem amor, sem amigo, sem parente,
quem mais se doi de vós diz : — "Coutadinho"
Tal vida levo. Santo prol me faça. (2)

Desgraça, enveja de tudo:

Junto do manso Tejo, que corria
para o mar que nos braços o esperava,
jaz um pastor, que no semblante dava
mostras da dor que o coração cobria.

Embouchure de la Rivière Du Tage, Nicholas De Fer, 1710


Falava o gesto quanto n'alma havia,
que quiçá por ser muito ela o calava;
mas, vencido do mal que o atormentava,
sem licença do mal assi dizia:

Cidade e Castelo de Bellisle [Belém, ilhéu] no rio Tejo; o palácio do rei; Lisboa está atrás deste ponto.
John Thomas Serres (desenho), Joseph Constantine Stadler (gravura), 1801.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

"Corre alegre e soberbo, ó doce Tejo,
pois vives sem fortuna, de que esperes
que encaminhe teu passo a teu desejo.

Vás e tornas é irás como vieres.
Ditoso tu, que vês o que eu não vejo;
ditoso tu, que vás adonde queres" (3)


(1) Melo, Francisco Manuel de, O Poeta Melodino, Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1921
(2) Idem
(3) Idem, ibidem

Biblioteca Nacional de Portugal:
Obras de Francisco Manuel de Melo

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