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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O canto dos pescadores do Tejo

Pescalio, Marino, Alcam.

O Mês de Março, natureza morta com peixes e mariscos, Josefa d'Óbidos, 1668.
Imagem: Saberes cruzados

Pescalio.

Marino, he tempo já de hirmos alçando
A pezada fateixa, e as brancas vellas
Hirmos das pardas cordas dezatando.
Já do Ceo dezertarão as Estrellas,
Mas tremólão as ondas, pulão vivas
As bogas cor de prata á tona dellas.
Não ferão hoje as oras tão esquivas,
Que colhamos a rede apanhadora,
Toda prenhe de pedras só nocivas,
Empurra tu a Lancha para fora;
Que eu de huma, e outra banda o leme engasto.
Ajuda tu, Alcão: carrega agora.
Já lhe podes metter o leme gasto:
Vamos saindo, e lá em mais altura
Accenderemos fogo ao pé do masto.
Que manhã tão gentil! Tao fresca, e pura!
Ah! Em quanto não somos sobre a costa,
Vejamos quem melhor no canto atura.

Belem Castle, Rev. William Morgan Kinsey, Portugal Illustrated in a series of letters, 1827.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Marino.

Pelo teu gosto estou, mas sem aposta;
Canta tu lá conforme o teu dezejo,
Que eu só canto de quem minha alma gosta.

Alcam.

Pois cantem ambos, que eu a escota rejo.

Marino.

Inda que eu sobre as ondas fui creado.
Que do fruto das ondas me sustento;
Suspiro pelo campo apaixonado
Qual nossa embarcação pelo bom vento:
Só fobre o campo verde, e matizado
Com alegria os olhos apascento:
Só sobre elle he que eu vi o rosto bello,
De Filiz, porquem tanto me disvello.

Paisagem com rio, torre arruinada e pescadores, Jean-Baptiste Pillement, 1791.
Imagem: Sotheby's

Pescalio.

Eu do campo nao quero as alegrias:
Nao quero as faces ver de neve pura.
Só quero ver das nossas margens frias.
As almas todas cheias de candura:
São melhores no mar as calmarias;
Que as virações rizonhas na espessura:
Mais que o Xerne, ou Corvina á molle Arraia,
Excede em tudo ao campo a nossa praia.

Marino.

Apascentar n'hum dia de deleite
Os olhos por hum prado verdejante;
Ver mulgir no curral o branco leite,
Dentro do grosso tarro fumegante:
Ver urdir a Pastora sem emfeite
A grinalda purpúrea , e alvejante;
Nada, nada produz tamanho gosto,
Como de Filiz ver o bello rosto.

Ai credo!, José Malhoa, 1923.
Imagem: borboletanaflor

Pescalio.

Undilia, a minha Undilia he mais formoza,
Que a Lua, e os Salmonetes encarnados:
A viração travessa, e preguiçoza
Vence no doce rizo, e nos agrados:
Por sua trança de oiro bulliçoza
Se ição loucos dezejos namorados;
Mas Undilia tao meiga como altiva,
Só tem hum Pescador; e os mais esquiva.

Marino.

Quando Filiz dezata a voz do peito
Ao tom de sua lyra torneada,
Se obferva o Cordeirinho satisfeito
C'o a relva sobre a boca pendurada:
O negrume do Ceo foge desfeito:
Perde o Sul a braveza de nodada.
Que sentirá por ella quem a adora
Com todo o excesso d'alma, auzente a chora?

Pescalio.

Huma manhã, que o vento furiozo
As Lanchas todas destroçar queria;
Que o trovão rebentando estrepitozo,
As mesmas rochas abalar fazia;
N'hum canto rogativo, e ferverozo
Rompeo Undilia a santa melodia.
Eis que morre o temporal tão carrancudo:
Mostra-fe o Ceo rizonho, o vento mudo.

Marino.

Se eu fem lezão das pedras para fóra
Arranco os caranguejos esquinados:
Se encho de mixilhões a qualquer ora
Fundos cestos de vime acugulados:
He só porque me lembro, alva Pastora,
Do influxo de teus dons acryzolados.
Sobre mim elles pódem mais por certo,
Que as Eftrellas do Olympo defcoberto.

Pescalio.

Se sendo Arrais da Lancha, eu a governo
Sem perigo das ondas espumantes:
Se eu tanto no Verão, como no Inverno
Advinho as tempestades innundantes:
Tudo devo ao poder invicto, e terno
De teus volúveis olhos faiscantes.
Por teus olhos, e face pudibunda
Se adorna o dia, o campo se fecunda.

Marino.

He tal minha paixão, e meu extremo
Por tua voz, e angélico semblante.
Que na auzencia de ti ás vezes temo
Cahir dentro nas agoas delirante.
Saudozo os braços cruzo fobre o remo.
Sobre o Ceo fito os olhos palpitante:
A pésca me enfastia, e aos outros rogo,
Que buscamos sem mais o porto logo.

Cecília, Henrique Pousão, 1882.
Imagem: Wikiwand

Pescalio.

He tal o meu amor o meu dezejo
Por teu rosto, oh Undilia appetecida,
Que se ao levar do Cáis eu te naò vejo,
Me agoiro sorte má na nossa lida.
Sem alguma esperança arrojo ao Tejo
Apoz huma outra rede entertecida.
Sem fé as dezenvolvo, porque caia
O pobre, ou rico lanço sobre a praia.

Marino.

Os dons do nosso trafego, Pastora,
Nao são dignos da tua gentileza;
Por isso de te dar nao ouzo agora
Quantos da minha conta forem preza.
Como vives no campo, os dons de Flora
Para ti só escolho por fineza,
Nao te darei maryscos, Peixes muitos:
Más ricos ramalhetes, ricos fruitos.

Pescalio.

Offertar-te nao posso os brandos véllos;
Os Cabritinhos tenros e balantes;
Nem os frutos rozados, e amarellos.
Os roxos cravos, os jafmins fragantes:
Mas posso-te offertar os peixes bellos,
Os Camarões, e as ostras gotejantes.
Os reconcavos búzios gritadores,
As conchinhas que brotao resplendores.

Marino.

Aviza-me, oh Pastora moça, e bella,
Quando a tua lavoira principia;
Quando a espiga desfolhas amarela,
Quando cuidas na cresta, e na tosquia;
Que eu hirei ajudar-te a toda ella
Sem mais premio, que a tua companhia.
Corresponde-me tu, qual te eu mereço,
Que eu do barco, e de tudo me despeço.

Cócegas, José Malhoa, 1904.
Imagem: Wikimédia

Pescalio.

Vem ver, loira Undilia, Mãe das graças,
Pular na area os peixes nadadores:
Comigo desprender as verdes naças;
Puxar pelos anzoes enganadores:
Vem alegre, não sejão tão escaças
Tuas feições c'os pobres Pescadores.
Tú mesma tirarás daquellas grutas,
Hum cestinho de amêijoas bem emxutas.

Marino.

Todo absorto de amor sincero, e grato,
Por, meu Bem tao honesto, e perigrino,
Eu juro fazer troca deste trato
Pelo trato Serrano, e Campuzino.
Antes viver com Filiz só n'hum mato,
Que com muitas no trafego marino.
Antes de Filiz huma graça pura
Que das bordas domar toda a ternura.

Pescalio.

Amar sempre esta vida Piscatoria
Por ti, oh meiga Undilia, eu firme juro.
Só c'o teu nome impresso na memoria
O norte crestador sem damno aturo.
Cantando encho os Tristões de assombro, e gloria
Em quanto corto o mar c'o remo duro.
E assim (sabe o Ceo!) talvez nao fora,
Se amara lá no campo huma Pastora.

Vista da Torre de Belém em LIsboa, Jean-Baptiste van Moer, 1868.
Imagem: Sotheby's.

Alcam.

Tendes ambos de amor mui bem cantado:
Mas vamos o aparelho já dispondo,
De forte que fiquemos pouco a nado.
Eu daqui c'o esta vara a rocha fondo:
Nelle o peixe se acolhe com o frio:


Armemos-lhe hum tresmalho de redondo.
Neste canto o bom Sável, o Safio,
O gordo Xerne abunda de maneira,
Que á mão mesmo se apanhão, muito a fio,
O ponto he, que ajudar-nos o Céo queira.


Disse. (1)


(1) Égloga [Écloga] piscatória, O canto dos pescadores do Tejo, Lisboa, na officina de António Gomes, 1811

Leitura complementar:

Francisco Pedro Busse, Poemas lyricos de hum natural de Lisboa, Égloga [Écloga] piscatória, Lisboa, officina de Simão Thadeo Ferreira, 1787
Francisco Pedro Busse, Poemas lyricos de hum natural de Lisboa TomoII, Lisboa, Regia Officina Typographica, 1789

Sobre Fr. Francisco Pedro Busse:
A parenética franciscana ao serviço da Monarquia por ocasião do nascimento de D. Maria Teresa de Bragança (1793)

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