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sábado, 16 de abril de 2016

Buques de arrasto

Quem sai a barra de Lisboa apercebe, nos confins do horizonte, uma fileira de velas triangulares minúsculas, que ora alvejam como asas de gaivotas batidas pelo sol ora se confundem com a poeirada cinzenta do mar.

Os pescadores da barra do Tejo,o barco pairando para efectuar a pesca, 1931.
Imagem: Hemeroteca Digital

À medida que nos aproxima-mos desses flocos de neve flutuantes as suas proporções aumentam e os seus contornos se detalham com nitidês, podendo-se já distinguir a azáfama que lá vai por bordo.

— São os buques de arrasto — elucidam-nos. 

Meia hora depois, afastados já algumas milhas, os pequenos triângulos brancos parecem lenços a agitar-se cm despedida. Fica-nos en-tão uma vaga saüdade que o poeta soube tio bem cantar:

Oh enxame alado e nevado das velas!
Quem te póde esquecer se alguma vez te olhou?!

Os buques de arrasto, que vieram substituir os antigos barcos de muleta, são a nota característica da entrada do Tejo. Quando do mar largo se avista a barra alvacenta dos pequenos barquinhos, sabe-se que se está defronte da barra de Lisboa. 

Os pescadores da barra do Tejo, de regresso depois da pesca realizada, 1931.
Imagem: Hemeroteca Digital

Eles constituem uma referência para os navios estrangeiros que demandam o nosso pôrto. À segunda visita do navio, quando o timoneiro, atento à agulha e ao horizonte, vê germinar sobre o azul do oceano essas flores de açucena, já sabe que a uma dúzia de milhas encontra a foz do Tejo. 

Despreza então a bússola e apita à inofensiva esquadra que, ao sabor das ondas, vai aprisionando o peixe nas rêdes.

Daí a pouco o navio, rápido e imponente, passa junto dos barquinhos, fumegando e cindindo as águas que se afastam num torvelinho doido, sobrepondo-se furiosas com receio do monstro. De bordo a marinhagem saüda os pescadores, cá em baixo, sôbre os buques sacudidos raivosamente pela ondulação do navio.
— Ben die! — dizem alguns que já ouviram o saüdar português. Outros proferem a saudação nas suas línguas arrevezadas.
— Salve-os Deus! — correspondem cá do buque os pescadores agitando os braços.
Durante um bocado as tripulações do navio e dos barcos olham-se com curiosidade e simpatia. Depois, quando o vapor é já unia mancha negra empenachada de fumo, torna-se à faina.

Cada um dos pequenos barcos de. pesca da barra de Lisboa é tripulado por uma dezena de homens. 

A maioria deles são velhos, curtidos da ardência do sol do estio e das friezas das nortadas hibernais. Os seus rostos morenos estão engelhados como velhas folhas de pergaminho amarrotadas e engelhadas têm também as mãos ossudas e ásperas dos milhares de braças de cabo que têm puxado. 

Quasi todos começaram ainda meninos a trabalhar sóbre o dórso encrespado do oceano e raros são aqueles que o abandonam para se dedicar a outro modo de vida. Amam o mar com uma ternura infinita que se lhe adivinha na nostalgia com que, cá em terra, o seu olhar prescrita a planície azul nos dias tempestuosos em que esta é sacudida pela violencia dos tufões que a varrem furiosamente corno o simum africano lambe, com o seu hálito destruidor, as areias dos desertos. 

Aí pelo dobrar das quatro horas, quando as estrelas ainda se reflectem vaidosamente nas águas obscuras, largam para o mar os buques. Içam as suas velas, a latina e a polaca, e ao sópro do vento amigo, lá vão, barra em fora, com um farol à próa, avisadouro da navegação.

O velho arrais, de mão fincada na cana do leme, vai governando o barquinho enquanto o resto dos tripulantes, embrulhados em mantas, completa o sono interrompido a meio da noite.

Quando o sol começa a empurpurar as águas já os buques pairam lá no mar, a umas oito milhas da costa. O vento muda então de quadrante e os pescadores, depois de se orientarem, a fim de evitar as rochas submarinas e as carcassas das navios afundados, ali por alturas da barra, lançam a rede a umas setenta braças de água.

Dão-lhe depois uma folga de duzentas braças e carregam o pano, que tinha sido recolhido, a fim de o vento impulsionar o barco, pois sem a colaboração do mitológico Eolo a pesca não se poderia efectuar.

A rede, que não é de grandes proporções, apresenta a forma de. um triângulo isósceles. No vértice tem um saco com uma armadilha onde o peixe entra mas de onde não pode sair. Quando a rede está já no fundo a pressão de água abre uma das portas de madeira e a entrada do peixe fica livre.

Na parte que se arrasta pelo fundo do mar há uns pesos de chumbo que não deixam vir a rede acima. Na parte superior há bóias de cortiça e de vidro que mantém aquele pano da rede elevado acima do outro alguns metros. Fica assim uma vasta guela aberta que vai absorvendo tudo que encontra no seu rasteio.

O pescador depois descansa na coberta, dormitando ou conversando, atento aos navios que constantemente cortam o oceano. Apenas o timoneiro, enconchando a ossuda mão sôbre o rosto engelhado, vai prescrutando a terra que se avista ao longe e procurando as marcas para não dar com a rede na rocha ou noutro obstáculo que a rasgue.

Embalado pelo mar, naquela indolència contemplativa, sob o azul do céu e o brilho intenso do sol, o pescador parece lançar ao vento, num desafio ao mundo, aquela quadra de Espronceda:

Que es mi barco mi lesara,
Que es mi Dios la liberlad,
Mi ley la fuerza y el viento,
Mi unica pátria la mar.

Ai por volta das 15 horas, depois de seis ou sete horas de arrasto, o buque chega defronte do farol da Guia. Inicia-se então o trabalho mais árduo, o virar da rêde com o guincho manual. Todos os tripulantes se lançam às manivelas a içar o valioso saco. Os músculos sitos sob a pele encortiçada dos velhos pescadores, retezam-se e tornam-se-lhes mais nodosos os braços. Os rostos contraem-see a pele morena parece que vai estalar, deixando a descoberto os sulcos de carne viva e sangrenta. 

Ao incitamento do arrais os esforços unificam-se num valente impulso e o guincho ferrugento começa a ceder, chiando uma arrastada cantilena que compassa o vociferar dos pescadores, em cujos rostos começam a scintilar grossas bagas de suor. Este esfôrço extenuante dura mais de meia hora.

Por fim aparecem à superfície do mar as duas portas, que alguns pescadores vão recolher. Em seguida surgem as "malhetas", que são os cabos que estão ligados à rede, e depois de mais umas voltas do guincho gemedor aparecem as malhas desta. 

Os pescadores da barra do Tejo, puxando as redes carregadas, 1931.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os pescadores abandonam então as manivelas ferrugentas e dirigem-se para a borda do barco a puxar a rede, cujo saco, já à flor da água, vem inchado de peixes que se debatem numa luta doida para se libertarem das malhas que os aprisionam. 

O espectáculo que até aqui era monótono e rude toma um aspecto festivo e colorido. As mãos ansiosas dos pescadores agarram num talhão do saco e despejam-no na coberta. Milhares de peixes, aos quais o sol arranca scintilações de prata polida, saltitam e se contorcem na coberta, verdascando-se com os rabos e ensanguentando-se com as barbatanas. 

Os pescadores da barra do Tejo, a companha mostra-se contente com a pesca que foi boa, 1931.
Imagem: Hemeroteca Digital

Uma santola trucida uma pescadinha já morta e um grande exército de caranguejos de armaduras côr de lama vai devorando os pequenos peixinhos. Outro talhão do saco é despejado, com grande reboliço, sobre a coberta, que écoa cavernosamente à queda dc alguns búzios de arestas agressivas. 

Outros talhões vão sendo recolhidos até que a rede é metida toda a bordo. Na coberta eleva-se um gratule monte policromo de peixes de várias espécies, sabre o qual os caranguejos repelentes passeiam, como abutres por um campo dc batalha. 

Os pescadores da barra do Tejo, as mãos ansiosas dos pescadores agarram num talhão de um saco e despejam-no, 1931.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os pescadores, porém, não lhe dão tempo a inchar o estômago com o lauto banquete. Apanham-nos e esmigalham-nas entre os dedos, atirando-os depois para o mar.
— Raça malvada! Dão-nos cabo do peixe! Mestre Francisco da Maria Inês, que é o arais do buque Joana, a bordo do qual na encontramos, toma a cana do leme para dar direcção ao barco.
— Então, mestre Francisco, que tal é a pesca ?
— Não é má, não senhor!
— É todos os dias é assim?
— Qual! —exclama éle, fazendo uma carêta de enfastiado.
— Há dias que não apanham nada?
— Sempre vem alguma coisa búzios e caranguejos — responde-nos com um sorriso bom humor.
O barco, já com o pano carregado e as velas enfunadas, aprôa à barra. A bordo continua a acólita do peixe: os caranguejos e pequenos peixinhos são atirados ao mar e o resto é metido em cabazes para ser apresentado na lota. Escolhe-se a caldeirada para o nosso barco e despedimo-nos das simpáticos pescadores:
— Boa tarde! Obrigado! 
— Vão com Deus! — respondem-nos de bordo.
E o nosso barco, uma pequena lancha impulsionada por dois valentes moços, apresa ao "Comandante Milheiro" que por ali paira ao sabor das ondas mansas.

Comandante Milheiro, embarcação a vapor da Corporação de Pilotos do Rio e Barra de Lisboa, construída em 1928.
Imagem: Navios e navegadores

O buque lá vai mar em fora escoltado por urna patrulha de gaivotas e alcatrazes que, de vez em quando, mergulham na água para comer os peixinhos inúteis que os pescadores atiram pela borda.  Lá ao longe, pela nossa prôa, surge uma esquadra de buques, que regressa também da pesca. Sobre eles uma nuvem de aves marinhas sôlta gritos festivos esperando o lauto bôdo de peixe. 

Na ponte do comando, António Santos, piloto da valente estirpe de pescadores do sul, vai indicando-nos os nomes dos buques: o "Homem ao leme", o "Camela", o "Orca", o "Almazorra", o "Pardal", o "Rata" e, lá ao fundo, o "Salta à lua". 

Dal a pouco a esquadra, a todo o pano, desfila por nós. Um dos barcos, porém, vem atrasado e pede a ajuda de mestre José Lopes Terramoto, o encarregado do "Comandante Milheiro".  Como todo o bom algarvio, não recusa auxílio nos pescadores e passa um cabo ao buque que, daí a pouco, já próximo de Cascais, desfralda as velas e, com a ajuda do vento, lá vai mar em fora.
— Obrigado! — agradecem os pescadores. 
— Boa tarde! —respondem-lhes.
Transporte da sardinha na Trafaria, Joshua Benoliel, início do século XX.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Os bons pescadores lá vão contentes, naturalmente convencidos que o mundo não é tão mau como afirmam os homens que vivem cá em terra a degladiarem-se e a pelejarem numa luta quási sempre inglória.  (1)


(1) José Barão, Illustração n.° 130, 16 de maio de 1931

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