Muleta do Seixal, Associação da Classe Piscatória da Villa do Seixal, 1896. Imagem: Caxinas... de "Lugar" a Freguesia |
Ao vê-la pela primeira vez, parece impossível colocá-la em qualquer categoria das embarcações à vela. A sua armadoria parece menos com o de qualquer navio racional do que com um terrível pesadelo de um geômetra. Por toda a parte tudo parece ângulos e quadrados; o número de linhas retas é desconcertante e aparentemente totalmente sem significado.
Portuguese Muleta in The Story of Sail by GS Laird Clowes and Cecil Trew. Imagem: intheboatshed.net |
Podia menosprezá-la, no melhor, como uma aberração de um tipo excecional e permitir a sagacidade de qualquer velejador entende-la, e esquecer o leigo médio acostumado apenas a embarcações de recreio ou à imagem de navios de três mastros.
Mas é quando começamos a examinar a muletta que descobrimos sua verdadeira natureza. No principal, ela ainda é um latino, como mostra a sua vela grande.
An English frigate in choppy waters in the Tagus, John Thomas Serres (1759-1825). Imagem: Bonhams |
A vante ela aparelha esses toldos quadrados [water-sails], que pertenciam aos primeiros navios de três mastros da idade média, e transmitidos, através dos períodos Tudor e Elizabeth até ao início do século XIX, quando os nossos marinheiros costumavam chamá-los de "Jimmy Green's ."
Columbine e diversos navios experimentais na barra de Lisboa. A Muleta, aqui representada numa pintura de John Christian Schetky, é referida pela tipagem do casco, Bean Cod boat (Hektjalk dos Países Baixos). Imagem: Royal Museums Greenwich |
À popa uma varredoura projeta sobre a ré algo à maneira de um lugre do oeste de Inglaterra e, portanto, velas adicionais podem ser acrescentadas.
Á frente do pano latino [bastardo] existe uma vela de estai, que parte do topo do mastro para o gurupés ou, às vezes, para o extremo do bateló.
Devante, novamente, vem a giba, e além do toldo mais baixo, há também uma pequena vela quadrada que se estende a partir de um pequeno mastro com projeção considerável para a frente [bateló], segundo o costume, é uma sobrevivência do clássico Artemon que existiu até mesmo no tempo de São Paulo.
Muleta, Tagus, The Graphic, May 1883. Imagem: eBay |
Qual o significado de toda essa complicação, pergunta? A resposta é muito simples. Estas mulettas são empregues na indústria de pesca de arrasto, e a intenção é para equilibrar as velas da proa contra a da popa, de modo a que elas possam facilmente regular a velocidade do barco, quando a rede de arrasto está lançada.
A muletta é, evidentemente, muito orgulhosa de sua ascendência, pois ainda pinta os olhos na sua proa, ainda encaixa esses picos de curiosos a vante acima da linha de água, características curiosas e sobrevivências interessantes do momento em que as galés romanas usavam para se perfurarem entre si nas águas do Mediterrâneo.
A menor destas embarcações mede 13 metros de comprimento, e a maior 18, com amplo raio.
Vista do Tejo e da Trafaria, The river Tagus at Trafaria, John Cleveley Jnr, 1775. Imagem: Bonhams |
O número máximo de tripulantes não excede dezoito homens, mas embora pareça excessiva quantidade de mãos cremos que são necessárias, quando tantas seções diferentes de pano têm de ser manuseadas, e uma rajada súbita exige que todas estas velas surpreendentes sejam ajustadas inteligentemente.
As linhas da muletta não são menos curiosas do que o seu aparelho, em vez de ter uma quilha que desce mais abaixo do que o casco, dá-se o inverso, sendo seu fundo é muito côncavo, de modo que, quando está encalhada, fica por terra sem adornamento.
Além disso, quando ela adorna sob o seu pano, tem, portanto, um maior calado do que quando está exatamente na posição vertical.
A pesca é feita com uma espécie de rede de arrasto [tartaranha], em que os cabos da rede são fixados nos batelós [varas] que se veem em cada extremidade da embarcação, permitindo que esta derive lateralmente, com as velas da popa equilibrando as da proa, e um patilhão lateral que, em certa medida, controla a sua deriva.
Pescadores no Tejo, Fishermen at work off the mouth of the Tagus, John Cleveley Jnr, 1775. Imagem: Bonhams |
A zona principal de navegação destas embarcações está nas proximidades das Berlengas, um grupo de ilhéus, que se encontram ao largo da costa portuguesa perto da barra do Tejo.
Os bicos, embora sejam principalmente ornamentais, têm os seus usos, pois estão equipados com aberturas para os cabos dos toldos e, por vezes, também são utilizados para transportar os covos com peixe. (2)
Veio até ao princípio deste século, rocegando o fundo com uma rede de arrasto— a tartaranha — rebocada e ligada aos batelós — à proa e à popa — descaindo com o vento, isto é, arrastando de lado.
Muleta do Barreiro, João Vaz. Imagem: Revista da Armada |
Note-se que o nome, vindo do latim, significa, naquela origem "mover-se com dificuldade", isto é, embarcação ronceira.
De facto a Muleta nunca marcou pelas velocidades alcançadas mas sim pelo seu aspecto geral notável ao ponto de até celebridades estrangeiras, como o Alm. Páris no seu IV volume dos "Souvenirs de la Marine", de 1888, e o nosso Baldaque da Silva, hidrógrafo de grande renome, lhe dedicarem a sua atenção, em publicações, que a citam e explicam [...]
The Praҫa do Comércio Lisbon, John Cleveley Jnr, 1775. Imagem: Bonhams |
O seu velame era tão característico, que o desfraldar das velas, dava para a identificar quando arrastava a grande distância. Ficava de silhueta inconfundível.
Muleta do Seixal. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Tinha uma tripulação de 14 a 16 homens, 13 a 15 metros de comprimento, 4 de boca e 2 de pontal, costado liso.
O aparelho da Muleta compunha-se de um mastro, muito inclinado para vante, onde içava a verga duma vela grande triangular, latina e de dois compridos paus, os tais batelós, deitados para a proa e para a popa, que serviam para amurar e caçar as outras velas, e, ao mesmo tempo, para nas extremidades amarrarem os cabos que seguravam a rede, quando esta entrava em acção.
Muleta do Tejo, 1887. Imagem: Musée nationale de la Marine |
A ré, caçava no extremo do bateló um triângulo que içava na pena da vela grande, denominado varredoura de cima, e, por baixo, outro, a varredoura de baixo; e em estais que vão da cabeça do mastro para a roda de proa e para o bateló de vante, içavam umas seis ou sete pequenas velas chamadas toldos, muletins, varredoura e cozinheira, que, segundo o seu número, compensavam o efeito das velas de ré, obrigando a embarcação a manter-se atravessada, durante a pesca.
A vela grande triangular latina era a base de navegação de ir ou voltar do local de pesca: as outras, auxiliares de arrasto. (3)
Barcos de pesca ao largo da barra de Lisboa, Lisboa, 1856. Imagem: Royal Museums Greenwich |
A Muleta, também chamada bote de arrastar, usava as redes de tartaranha e pescava até fora da barra, entre o cabo da Roca e o cabo Espichel.
A beleza e a elegância desta embarcação eram-lhe dadas pelo uso das seguintes velas: varredouras à ré; moletim à proa; varredoura da vara, cojusteira, toldo da ponte e moletim de vara.
A Muleta tinha uma vela bastarda e o mastro curto e inclinado para vante e podia largar muitas e pequeninas velas servindo-se de umas vergônteas lançadas para diante pela proa e pela popa, dando-lhe regular andamento com ventos bonançosos.
Muleta, Barco Escola Português, Luis Ascêncio Tomasini (1823 - 1902). Imagem: Caxinas... de "Lugar" a Freguesia |
O seu casco tinha considerável largura a meio comprimento, e a proa era de forma arredondada e curva; na popa, pendia-lhe um grande leme, tendo mais no flanco larga pá que lhe aguentava a inclinação quando mergulhada por barlavento.
Estas embarcações, típicas dos pescadores do Seixal e do Barreiro, vieram a morrer no Tejo no início deste século, apesar de Ramalho Ortigão já em 1876 chamar a atenção para o seu fim: "… e as elegantes Muletas do Seixal, que infelizmente tendem a desaparecer da nossa baía."
Barcos no Tejo entre o Bugio e o Forte de São Julião da Barra, Luis Ascêncio Tomasini (1823 - 1902). Imagem: Cabral Moncada Leilões |
Em sua substituição, usaram-se os "modernos batéis, que pescam pelo mesmo sistema", conforme registava Baldaque da Silva em 1895.
Batel do Seixal, ou bote da tartaranha. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
O batel do Seixal, ou bote da tartaranha, era de tipo misto, com casco de bote modificado e velame da Muleta adaptado ao seu menor porte. (4)
Batel do Seixal, ou bote da tartaranha. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
(1) Diccionario de marinha, que aos officiaes da armada nacional portugueza...
(2) Chatterton, E. Keble, Fore and aft the story of the fore & aft rig from the earliest times to the present day, London, Seeley, Service & co., 1912
(3) Revista da Armada A Muleta, setembro 1975
(4) Muleta ou Bote de Arrastar
Informação relacionada:
A Muleta e a Tartaranha (séculos XV-XX)
Muleta do Barreiro
Barche e navicelle d'Europa
Informação genérica:
Construcção da Muleta do Seixal (modelismo)
Sailing ships : the story of their development from earliest times to the present day
A discreta Muleta em cenários do Tejo:
Uma fragata inglesa a chegar ao
Tejo frente à Torre de Belém, com uma fragata portuguesa ancorada ao
largo pela sua popa, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834. Imagem: Cabral Moncada Leilões |
Uma fragata inglesa de través
frente à margem sul do Tejo com pequenas embarcações nas proximidades,
Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834. Imagem: Cabral Moncada Leilões |
Sem comentários:
Enviar um comentário