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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Pelas praias do Caramujo

A íntima amisade, que contrahi com a Illustre Pessoa, que aqui serve de Heróe; o passeio, a musica, o divertimento de colher pelas praias do Caramujo, termo de Almada, differentes qualidades de mariscos, e finalmente a pesca nunca interrompida, fizerâo em mim tal impressão, que me determinei a celebrar este ultima diverlimento , a que sempre fui propenso; e porque era, e he aquelle, que alli mais cultivão as Illustres Famílias , que a éste sitio concorrem no tempo dos banhos. 

APDG, Sketches of portuguese life, manners, costume and character, Banhos no Tejo, 1826.
Imagem: Internet Archive

No dia 10 de Setembro de 1826, quando eu contava 27 annos de idade, estando todos, como costumávamos, applicados ao nosso divertido exercício, passeando no largo com grande prazer, appareceo de repente Belmiro, debaixo de cujo nome se intitula o Heróe da acção, acompanhado de outro amigo nosso, trazendo por huma corda huma masseira velha, ou gamella de amassar pão, muito rota por todos os lados. 

O cais do Caramujo, década de 1980.
Imagem: Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, Freguesia da Cova da Piedade

Todos perguntarão, porque trazia tal cousa; e elle respondeo, que era para nella hirmos pescar. Todos estimámos, principalmente eu, tal descoberta de vaso, para duplicarmos nosso regosijo nesta tarde. 

Logo, convocando elle alguns amigos, comigo começou a concertalla do modo, que melhor foi possível; nella metemos as redes e vogámos para o mar, elle, e eu sómente, porque ninguem mais se atreveu a acompanhar-nos.

Muitas pessoas, principalmente huma Senhora, sua filha, e mais familia nos dissuadíão de tentar o rio naquelle vaso pequeno e velho; mas desprezados estes avisos, e confiados em saber bem nadar, comettemos nossa viagem.

Caramujo, Leslie Howard, década de 1930.
Imagem: ZONA Magazine

Estando porem já muito distantes de terra, repentinamente sobreveio tão horrivel tempestade, que á vista de todos fez voltar o barquinho comnosco, que, privados de ver a terra por causa do aguaceiro, com relâmpagos, raios, trovões, pedra, etc. nos custou tomar a praia apesar das nossas forças em nadar.

Em fim chegámos á praia, e mandámos soltar hum bote, que estava prezo a hum cáes de pedra, para trazer a canoa, e as redes, que ficárão no largo, as, quaes trouxerão peixe, de que se fez huma merenda esplendida, como nunca tivemos, o que bem se pôde inferir pelos successos, que lhe antecederão, que posto sejão debuxados com tosco pincel, forão brilhantes [...]

Praia do Caramujo, Planta das Septe Quintas do Real Sitio do Alfeite (detalhe), 1849.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Do Caramujo expõe-se o sítio ameno;
E como delle gosâo pelo Estio
Innocentes, maritimos prazeres
Diversas personagens d'outras terras.
No designio Belmiro entra da pesca
C'os illustres vizinhos, que consentem,
E do dvertimento não desmentem [...]

Caramujo, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 15, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Do nosso antigo Tejo, ha na aurea margem,
Hum lugar mui ameno, delicioso,
Caramujo de séculos remotos
Pelos seus habitantes nomeado:
Dous altos montes sobem a seus lados,
Que parecem tocar do Ceo as nuvens.
Hum agradável prado mui risonho,
Onde assiste a formosa Primavera,
Torna seu local bello, e aprazível [...]

Viata da Quinta do Outeiro, Caramujo e enseada da Cova da Piedade, Francesco Rocchini, anterior a 1895.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

"Tudo o que Vénus diz, verdade he pura,
"Formosa Filha tua, grande Jove;
"Lá do Tejo nas margens, nas raízes
"Dos montes, que de base a Almada servem
"O Caramujo existe socegado.
"He maritimo porto, alli altares,
"E templos dedicados mil eu lenho,
"Onde o licôr divino nunca falta,
"Que com festividades me consagrão;
"Alli á Pesca entrega-se Belmiro [...]

Enseada da Cova da Piedade, c. 1900.
Em 1.° plano o pontão e a entrada da quinta do Alfeite e, em 2.°, o cais da Rankin & Sons.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

Belmiro se prepara com Phylinto;
Fileno vai também lançar as redes:
Já he visto o batel frágil nas ondas.
Difficutdades muitas se presentão.
Que pelos argonautas são vencidas.
A rede se prepara, que na barca
Já recolhida fôra, e só lhe falta
Remar bem para o largo com grão força [...]

Cais do Caramujo, pontão de madeira, década de 1970.
Imagem: Fernando Cruz

"Ó Deos do mar profundo, tu me escula,
"Mais que disse, dizer nâo pôde Vénus;
"Do Caramujo sou Patrono eterno;
"Eu requeiro o que implora a bella Deosa:
"Juno he prejura; Belmiro innocente;
"Juramento a verdade não precisa. [...] (1)


(1) Francisco António Martins Bastos, A pesca, Lisboa, Impressão Regia, 1831

Leitura relacionada:
Francisco António Martins Bastos na Biblioteca Nacional de Portugal 

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