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sexta-feira, 11 de maio de 2018

Maria Rosa Colaço (1935-2004)

Abri a porta e eles entraram. Eram quarenta e cinco e faltavam carteiras. Faltavam muitas carteiras, mesmo quando os sentei a três e três e pus cinco na mesa que me destinaram para secretária.

Maria Rosa Colaço.
Imagem: Youtube.

O director chegou e disse: Este é o seu reino e aqui tem os seus "meninos". E sorria. Se tiver sarilhos, a esquadra da polícia fica ao fim da rua.

E eu ali fiquei, face à nova aventura. Não eram génios, nem poetas, nem meninos prodígios. Eram filhos de pescadores, de varinas, de ladrões-de-coisas... essenciais-ao-dia-a-dia. (1)

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A Criança e a Vida saiu primeiro em Moçambique. Tinha levado comigo para África as redacções das crianças, como quem leva as cartas dos namorados. Um exemplar chegou ao director do ITAU que foi a Moçambique conhecer-me e propor a reedição em Portugal. 

Maria Rosa Colaço e os alunos-poetas de A criança e a vida.
Da esquerda, António Carlos, Vítor Barroca Moreira, a professora, Liís Filipe e Jorge.
Imagem: Romeu Correia, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada... 1978

Eram os anos 60, os estudantes acordavam definitivamente para as tarefas de luta. 

O pequeno livro, que cabia num bolso de casaco, entrou nas universidades como elemento quase mágico e começou a ser uma espécie de santo e senha entre os jovens. As crianças na sua voz lúcida e sem medo tinham escancarado as portas à denúncia dos podres e ao medo que corria nocturno e atento. 

Apesar do burburinho, algumas pessoas duvidaram da autenticidade dos textos. Levaram os miúdos à televisão para ver se os apanhavam em falso.

Um meu aluno que uma vez escreveu "o amor é não haver polícias". No dia da inauguração da Escola Maria Rosa Colaço ele veio de propósito da Suíça para estar ao meu lado. 

E eu perguntei-lhe: "Por que disseste aquilo?"

Então ele confidenciou que tinha escrito aquilo porque na altura o pai estava preso em Caxias, mas não podia contar-me. (2)

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Esta canção, "A Outra Margem", interpretada pelo Luís Represas e pelos Trovante, tem letra de Maria Rosa Colaço.


A Maria Rosa foi-me apresentada pelo escritor Romeu Correia, seu vizinho em Almada.

Foi uma amizade instantânea que começou, ainda nos anos 50, numa tarde de Inverno, no primeiro andar do café Avis nos Restauradores.

Era uma rapariga bonita, inteligente, bondosa, calma, com a sabedoria alentejana do seu Torrão natal a cintilar-lhe nos olhos.

Sobre a nossa amizade, ela descreve, mencionando-a, o cenário em que decorreu em "O Amor Tem Tantos Nomes" (1998), lembrando aqueles anos cinzentos que a nossa juventude, irreverente e lutadora, conseguia colorir.

Alta madrugada, cantávamos debaixo das janelas do Aljube, "Estupidamente, claro, porque os tiranos não se removem com canções nem falsos heroísmos, mas isso eu não, sabia porque aos dezoito anos só sabemos coisas importantes e únicas…", diz Maria Rosa. (3)

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A autora dedica o livro [Gaivota] a todas as crianças que,como Alfredo, são símbolo de sonho e de esperança.

Silhuetas, Artur Pastor (filho),  ed. Rolim.
Imagem: Delcampe

Conto que narra um dia na vida de Alfredo, dito Gaivota [a alcunha vem do facto de correr sobre os pontões de braços abertos]:

"Porque me chamam Gaivota? Está mesmo a ver-se… tenho passado entre os barcos e o Tejo, em cima deste paredão, correndo e escorregando nestas pedras húmidas, mais de metade da minha vida: às vezes, até a pele me sabe a sal."

Alfredo é-nos apresentado como um miúdo pobre na zona de Cacilhas. Vive ao deus-dará, fazendo de tudo um pouco, ou nada. Vive entre a raiva da sua situação e o deslumbramento da vida que o cerca.

Apesar da narração ser de terceira pessoa, passa frequentemente para o ponto de vista do próprio Gaivota, que nos interpela e é interpelado pelo narrador, em que questiona as suas memórias de um tempo mais feliz.

É a época do Natal e estamos perante uma criança desiludida, no entanto as suas reflexões produzem em nós um desejo de pensar também sobre a vida.

No final, perante a proposta de emprego como aprendiz de mecânico toda a felicidade perdida retorna, apesar da perda do pai em condições que não são explicitadas, de acossado pelo padrasto e descuidado pela mãe. (4)

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O cacilheiro, no Tejo, é assim, diariamente, a estrada possível das outras viagens que nunca faremos. 

O Tejo junto ao Cais das Colunas.

Nele começam e acabam as asas e as barbatanas de luz que séculos de adaptação à vida nos têm roubado.

É então que na manhã alada, o acordeão do cego nos devolve o eco da alegria possível.

Dos Mares nunca dantes navegados, restam-nos as viagens à Outra Banda, em persistentes, resistentes cacilheiros, naus familiares que nos ancoram o destino certo.

Indiferente às variantes com que se tem pretendido roubar-lhe a clientela, o cacilheiro do ano 2000 resume o português europeu com saudades inconfessadas das cangas de bois de lavradio que nunca devia ter largado.

No cacilheiro, o mundo é próximo e familiar, os olhares reconhecem-se, o diálogo ainda é possível, os mercadores do penso rápido, dos atacadores e das pilhas para o rádio, circulam intervalo dos cauteleiros, da pedinchice organizada, com cartões na lapela para elucidar os corações prevenidos.

Cais de cacilheiros, Terreiro do Paço, década de 1960.

Penélopes modernas fazem nas viagens do cacilheiro, com mãos hábeis, rendas que se vão tecendo sob o olhar de admiração das viajantes inaptas do banco da frente; jovens estudantes trocam beijos impúdicos, conclusões e cábulas sobre o Discurso do Método de mistura com as estridências dos Ena Pá 2000, que lhes gritam nos ouvidos com auscultadores; poetas experimentais escrevem e reescrevem novas versões incorrectas e mal plagiadas da Ode Marítima porque, em cada português há sempre um Álvaro de Campos à procura da posteridade.

Ao fundo, gaivotas famintas, recortam-se nos ácidos sulfurosos do céu do Barreiro onde o Kira sonha e pinta e o Sousa Pereira escreve poemas à tona da pele.

O cacilheiro, no Tejo, é assim, diariamente, a estrada possível das outras viagens que nunca faremos.


Nele começam e acabam as asas e as barbatanas de luz que séculos de adaptação à vida nos têm roubado.

É então que na manhã alada, o acordeão do cego nos devolve o eco da alegria possível.

Por entre pés, cestas, jornais, indiferença e alguns ouvidos atentos, vai o cego acordeando os fados da sua memória, deixando nas vigias algumas palavras de amor, quanto baste de saudade e as raivas, breves, do nosso fado português.

Ás vezes vou aqui, na amurada do cacilheiro; olho as gaivotas que pairam, voo rasteirinho, voo picado, voo maluco e penso, Liberdade é isto: ser gaivota branca.

Gaivota do Tejo. E mais nada...

Lisboa, Marcha  pela Paz, 1983.
José Saramago, Piteira Santos, Maria Rosa Colaço, Lopes Graça, Manuel da Fonseca, José Cardoso Pires e Urbano Tavares Rodrigues, fotografia de Rui Pacheco.
Imagem: Fundação José Saramago

Porque o resto é tudo conversa. Sem asas, nem espaço. (5)


(1) Boletim O Pharol n.° 30, setembro de 2016
(2) A Viagem dos Argonautas
(3) Aventar
(4) Leituras mal amanhadas Maria Rosa Colaço, Gaivota. Edições Nave, 1982
(5) rostos

Mais informação:
Maria Rosa Colaço (blog)
Boletim O Pharol n.° 0, dezembro de 2004
Boletim O Pharol n.° 30, setembro de 2016
Antifascistas da Resistência no Facebook
Maria Rosa Colaço no Youtube



Obras de Maria Rosa Colaço [cf. AMR Casa da Leitura]

Como obra de destinatário preferencial infantil publicada ao longo de várias décadas, Maria Rosa Colaço é uma figura marcante do universo de autores portugueses da segunda metade do século XX. A sua produção literária, abarcando a narrativa e o texto dramático, encontra-se centrada no universo infantil.

A partir da leitura dos seus textos, desde O Espanta-Pardais (1961) até O Coração e o Livro (2003), é possível perceber de forma muito clara e precisa a sua concepção de criança e de infância, a sua confiança inabalável nas suas competências e capacidades e a esperança ilimitada que deposita nas gerações mais jovens.

Assim, os textos de Maria Rosa Colaço caracterizam-se pelo facto de serem protagonizados por crianças e cruzados pelo maravilhoso que, de alguma forma, parece tentar superar ou mitigar as carências (afectivas ou materiais) com que os seus heróis se debatem. De índole interventiva e também pedagógica, a obra de Maria Rosa Colaço apela a uma releitura que não esqueça o percurso da autora.

COLAÇO, Maria Rosa (1961): O Espanta-pardais, Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural (a edição de 1981, da Plátano, em versão de texto dramático é ilustrada por Ana Maria Duarte de Almeida).
COLAÇO, Maria Rosa (1969) (org.): A criança e a vida, Lisboa, Edições ITAU (ilustrações das crianças).
COLAÇO, Maria Rosa (1982): Sofia e o Caracol, Lisboa, Plátano Editora (ilustração de Ana Maria Duarte d’Almeida).
COLAÇO, Maria Rosa (1983): Maria-Tonta, como eu, s/ local, Distri-Editora.
COLAÇO, Maria Rosa (1984): Aventuras de João-Flor e Joana-Amor, Plátano Editora, Lisboa (ilustração de Ana Duarte de Almeida).
COLAÇO, Maria Rosa (1987): Pássaro Branco, Círculo de Leitores/ Associação Portuguesa para a Educação pela Arte (ilustração de Ana Maria Duarte de Almeida).
COLAÇO, Maria Rosa (1989): Aventura com asas, Porto Editora, Porto (ilustração de Avelino Rocha) [reeditado em 2007, na mesma editora, com ilustrações de Ana Lúcia Pinto].
COLAÇO, Maria Rosa (1989): Gaivota, Lisboa, Caminho (ilustração de António Jorge Gonçalves).
COLAÇO, Maria Rosa (1989): O Mistério da coisinha azul, Plátano Editora, Lisboa (ilustração de Ana Duarte de Almeida).
COLAÇO, Maria Rosa (1990): O Menino e a Estrela, Livros Horizonte, Lisboa (ilustração de Concetta Scuderi).
COLAÇO, Maria Rosa (2003): O Coração e o Livro, Porto, Âmbar (ilustração de António Modesto).

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