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quarta-feira, 9 de maio de 2018

O Livro do Desassossego

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber porquê. 

E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus.

Almada, vista de [Alfama, sé patriarcal?] Lisboa, James Holland, 1837.
Imagem: Walker Art Gallery

Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade [...]

O céu negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente negro contra as asas, por contraste, vividamente brancas das gaivotas em voo inquieto. O dia, porém, não estava tempestuoso já. Toda a massa da ameaça da chuva passara para por sobre a outra margem, e a cidade baixa, úmida ainda do pouco que chovera, sorria do chão a um céu cujo Norte se azulava ainda um pouco brancamente. O fresco da Primavera era levemente frio.

Ramalhete de Lisboa, Carlos Botelho, 1935.
Imagem: Wikipédia

Numa hora como esta, vazia e imponderável, apraz-me conduzir voluntariamente o pensamento para uma meditação que nada seja, mas que retenha, na sua limpidez de nula, qualquer coisa da frieza erma do dia esclarecido, com o fundo negro ao longe, e certas intuições, como gaivotas, evocando por contraste o mistério de tudo em grande negrume.

Mas, de repente, em contrário do meu propósito literário íntimo, o fundo negro do céu do Sul evoca-me, por lembrança verdadeira ou falsa, outro céu, talvez visto em outra vida, em um Norte de rio menor, com juncais tristes e sem cidade nenhuma. Sem que eu saiba como, uma paisagem para patos bravos alastra-se-me pela imaginação e é com a nitidez de um sonho raro que me sinto próximo da extensão que imagino.

Praça do Comércio e Rio Tejo, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Terra de juncais à beira de rios, terreno para caçadores e angústias, as margens irregulares entram, como pequenos cabos sujos, nas águas cor de chumbo amarelo, e reentram em baías limosas, para barcos de quase brinquedo, em ribeiras que têm água a luzir à tona de lama oculta entre as hastes verde-negras dos juncos, por onde se não pode andar.

A desolação é de um céu cinzento morto, aqui e ali arrepanhando-se em nuvens mais negras que o tom do céu. Não sinto vento, mas há-o, e a outra margem, afinal, é uma ilha longa, por detrás da qual se divisa — grande e abandonado rio! — a outra margem verdadeira, deitada na distância sem relevo.

Ninguém ali chega, nem chegará. Ainda que, por uma fuga contraditória do tempo e do espaço, eu pudesse evadir-me do mundo para essa paisagem, ninguém ali chegaria nunca. Esperaria em vão o que não saberia que esperava, nem haveria senão, no fim de tudo, um cair lento da noite, tornando-se todo o espaço, lentamente, da cor das nuvens mais negras, que pouco a pouco se mergiam [sic] no conjunto abolido do céu.

Retrato de Fernando Pessoa, Almada Negreiros , 1956.
Imagem: Lisboa Desaparecida

E, de repente, sinto aqui o frio de ali. Toca-me no corpo, vindo dos ossos. Respiro alto e desperto. O homem, que cruza comigo sob a Arcada ao pé da Bolsa, olha-me com uma desconfiança de quem não sabe explicar. 

O céu negro, apertando-se, desceu mais baixo sobre o Sul [...]

Cada vez que assim contemplo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de altura, e sessenta e um quilos de peso, em que fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto com uma virtude nobre do entendimento.

Lisboa, Maluda.
Imagem: maluda.eu

O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno — vapor de carga preto — dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo  [...]

A ideia de viajar nauseia-me.

Já vi tudo que nunca tinha visto.

Já vi tudo que ainda não vi.

O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa diferença das coisas e das ideias, a perene identidade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, o templo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo que vivo só de mexer-se está passando.

Paisagens são repetições. Numa simples viagem de comboio divido-me inútil e angustiadamente entre a inatenção à paisagem e a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse outro. Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma.

Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei. A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste.

Ah, viajem os que não existem! Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida. Mas aos que pensam e sentem, aos que estão despertos, a horrorosa histeria dos comboios, dos automóveis, dos navios não os deixa dormir nem acordar.

De qualquer viagem, ainda que pequena, regresso como de um sono cheio de sonhos — uma confusão tórpida, com as sensações coladas umas às outras, bêbado do que vi.

Para o repouso falta-me a saúde da alma. Para o movimento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo; negam-se-me, não os movimentos, mas o desejo de os ter.

Muita vez me tem sucedido querer atravessar o rio, estes dez minutos do Terreiro do Paço a Cacilhas. E quase sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mesmo e do meu propósito.

A multidão aguardando o ministro na villa de Cacilhas, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital

Uma ou outra vez tenho ido, sempre opresso, sempre pondo somente o pé em terra de quando estou de volta.

Quando se sente demais, o Tejo é Atlântico sem número, e Cacilhas outro continente, ou até outro universo.

Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos da rua falam alto com uma voz solitária.

A rua franziu-se de luz intensa e pálida, e o negrume baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamentos ecoantes… A tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio, morno, quente — tudo ao mesmo tempo —, o ar em toda a parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos, e, com o sobressalto gelado, um pedregulho de som bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro.

O som da chuva diminui como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui angustiantemente.

Nova luz, de um amarelado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trêmulo ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada, a trovoada começava a aqui não estar com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que aumentava, o tremor da trovoada acalmava nos largos longes — rodava em Almada...

Lisboa, Avenida da Liberdade, década de 1900, publ. Mala da Europa.
Imagem: FCSH +Lisboa

Uma súbita luz formidável estilhaçou-se. Tudo estacou. Os corações pararam um momento. Todos são pessoas muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte. O som da chuva que aumenta alivia como lágrimas de tudo. Há chumbo [...]

A manhã, meio fria, meio morna, alava-se pelas casas raras das encostas no extremo da cidade. Uma névoa ligeira, cheia de despertar, esfarrapava-se, sem contornos, no adormecimento das encostas. (Não fazia frio, salvo em ter que recomeçar a vida.) E tudo aquilo — toda esta frescura lenta da manhã leve, era análogo a uma alegria que ele nunca pudera ter.

O carro descia lentamente, a caminho das avenidas. À medida que se aproximava do maior aglomeramento das casas, uma sensação de perda tomava-lhe o espírito vagamente. A realidade humana começava a despontar.

Nestas horas matinais, em que a sombra já desapareceu, mas não ainda o seu peso leve, o espírito que se deixa levar pelos incitamentos da hora apetece a chegada e o porto antigo ao sol. Alegraria, não que o instante se fixasse, como nos momentos solenes da paisagem, ou no luar calmo sobre o rio, mas que a vida tivesse sido outra, de modo que este momento pudesse ter um outro sabor que se lhe reconhece mais próprio.

Retrato de Fernando Pessoa, Almada Negreiros , 1964.
Imagem: Museu Calouste Gulbenkian

Adelgaçava-se mais a névoa incerta. O sol invadia mais as coisas. Os sons da vida acentuavam-se no arredor.

Seria certo, por uma hora como estas, não chegar nunca à realidade humana para que a nossa vida se destina. Ficar suspenso, entre a névoa e a manhã, imponderavelmente, não em espírito, mas em corpo espiritualizado, em vida real alada, aprazia, mais do que outra coisa, ao nosso desejo de buscar um refúgio, mesmo sem razão para o buscar.

Sentir tudo sutilmente torna-nos indiferentes, salvo para o que se não pode obter — sensações por chegar a uma alma ainda em embrião para elas, atividades humanas congruentes com sentir profundamente, paixões e emoções perdidas entre conseguimentos de outras espécies.

As árvores, no seu alinhamento pelas avenidas, eram independentes de tudo isto.

A hora acabou na cidade, como a encosta do outro lado do rio quando o barco toca no cais. Ele trouxe consigo, enquanto não tocou na margem, a paisagem da outra banda pegada à amurada; ela despegou-se quando se deu o som da amurada a tocar nas pedras. 

Porto de Lisboa (Portugal), Caes da Ribeira Nova, ed. Martins/Martins & Silva, 60, década de 1900.
Imagem: Delcampe

O homem de calças arregaçadas sobre o joelho deitou um grampo ao cabo, e foi definitivo e concludente o seu gesto natural. Terminou metafisicamente na impossibilidade na nossa alma de continuarmos a ter a alegria de uma angústia duvidosa. 

Os garotos no cais olhavam para nós como para qualquer outra pessoa, que não tivesse aquela emoção imprópria para a parte útil dos embarques [...] (1)


(1) Fernando Pessoa (Bernardo Soares), O Livro do Desassossego

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