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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

J. Marciano, Tanoaria e Estabelecimento de banhos no Ginjal

É um cidadão duma gordura hyperbolica o meu amigo J. Marciano. Antes do alvorescer da mocidade, já elle movia entre as mãos infantis arcos e aduelas. A julgar pelos seus olhos pequenos e vivos, que ainda hoje scintillam de alegria e bom humor, devia ser um rapaz endiabrado. Com o tempo e o trabalho o corpo, na sita forte musculatura, engrossou de tal sorte, como que avolumando-se segundo a forma dos productos da sua industria, que hoje parece um pequeno tonel. 

Cais do Ginjal, Óleo, Alfredo Keil
Casario do Ginjal



J. Marciano, porém, apesar da grande materia ponderavel, que a natureza houve por bem justapor em camadas adiposas á sua estructura, conserva ainda uma grande agilidade do movimentos, é sempre o primeiro a apparecer na sua tanoaria, onde trabalham dezenas de operarios, e nunca o sol ao nascer o apanhou na cama.

É um gosto vêl-o. em mangas de camisa, ao raiar d'alva, defronte d'esse bailo horisonte do Ginjal, que tem por fado as dentadas ameias graníticas da serra de Cintra, e no primeiro plano a magnifica foz do Tejo cristalino, é uma delicia vêl-o a destacar-se na penumbra crepuscular como um collosso de bronze, porque elle é trigueiro como um Beduíno. 

Dá as suas ordens a sessenta, oitenta, cem operarios, e toda aquella engrenagem viva de intelligencia  e vontades entra em movimento methodico, regular, preciso, como as rodas d'uma machina. É sobretudo distincto como elle mantem a desse o modo, a disciplina do trabalho. 

Nunca, no meio de tantos operarios, e n'um dos lugares mais afastados do centro do povoado, houve a minima desordem. Os operarios de J. Marciano seguem o exemplo do patrão; em regra pode dizer-se que são os mais bem comportados de Almada. 

Fabricam-se n'aquella tanoaria toneis dama grandeza collossal ao pé dos quaes o meu é como a cabana do pescador junto do Kremelin, por hypothese.

Já, em noite de borrasca, eu e uma caravana de rapazes fomos surprendidos por um d'estes aguaceiros de verão, que despejam sobre as cabeças torrentes de chuva em que se rasgam as cataratas do ceu; e salvou nos um desses toneis monstruosos, que não tinha ainda os tampos, e em que entramos á vontade, como na Arca de Noé. 

Mas a actividade industrial de J. Marciano não se limita, nem se podia limitar, a fazer toneis. Sendo o Ginjal uma das mais pitorescas margens do Tejo, lembrou-se de construir ali um chalet para banhos. 

Lisboa vista do Ginjal, Alfredo Keil.
Casario do Ginjal

Dito e feito. Tudo o que havia de carpinteiros e pedreiros em disponabilidade no concelho de Almada marchou logo para dar começo á portentosa fabrica, e em menos de tres meses uma longa casaria branca flanqueada de elegantes ogivas envidraçadas, surgia como por encanto sobre a arenosa praia do Ginjal. 

Dentro ha banhos de todas as qualidades, deste a torrente, que e despenha dos altos rochedos, até a simples "douche", desde o banho russo, ou a vapor, até á delicada immersão em urna de marmore em tepida agua perfamada. 

J. Marciano fez e ezornou aquillo com um gosto verdadeiramente oriental.

Avultam as estatuas de alabastro nos mosaicos dos nichos das piscinas; tranças de flores de nacar suspendem da aboboda de crystal petriticações marinhas, conchas das mais bellas reverberações prismaticas, naiades e ondinas, de fôrmas voluptuosas, destacam nadando no ether dos frescos das paredes; plantas aquaticas de largas folhas avelludadas fluctuam em vasos collossaes de porcelana; todo o que o requinte da arte e do luxo póde inventar para deleite da vista o do olfato ali se ostenta como palacio de fadas. 

Por isso tambem os banhos do Ginjal são boje os mais concorridos de damas, donzeis e trovadores. Fazem-se ali n'estes dois meses proximos futuros sonetos, odes e poemas, como nunca os fez a antiga Arcadia Portugueza. 

Vidal já cantou aquella praia em redondiiba maior, e Florencio Ferreira sagrou-lhe na harpa magoada uma das suas mais harmoniosas endechas. 

Vapor da carreira de Cacilhas, 1890, Óleo, Alfredo Keil
Casario do Ginjal



Este anno consta-nos que ha de descer para aquellas bandas do Tejo uma constellação de poetas. J. Marciano recebe-os a todos de braços abertos, e é muito capaz de lhes abrir a torneira da fonte Castalia de qualquer dos seus mais bojudos toneis de Malvasia. (1)


(1) Diário Illustrado, 26 de julho de 1882

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