Embrechados no Seminário de Almada, antigo Convento de S. Paulo. Imagem: Alexandra Lopes |
Agora um drama verdadeiro.
Nos fins do seculo XVI e principio do XVII, passa-se em Almada o mysterioso e pungente episodio sobre o qual Garrett architectou o mais bello poema em prosa da nossa litteratura, a mais poetica definição da alma portugueza, ao mesmo tempo apaixonada e cavalheirosa, repassada de mysticismo e vibrante de amor, accessivel a todas as ideias generosas, namorada e supersticiosa, dilacerada pela fatalidade do destino, energica na resolução do supremo sacrifício.
Lisboa, Civitates Orbis Terrarum, Georg Braun, Frans Hogenberg, 1572. Imagem: Prosimetron |
E porque os personagens existiram, e porque viveram. e se amaram, e os dois principaes se separaram ao cabo de uma união feliz, para irem acabar a existencia distanciados nas cellas dos seus conventos, o "Frei Luiz de Sousa" tem além do prestigio de symbolisar o genio d'uma nação, o interesse que despertam as scenas vividas.
Quem não conhece o drama de Garrett não é portuguez. Inutil portanto recordal-o.
Vista de Almada tomada do Campo de S. Paulo, Nogueira da Silva, grav. Coelho Junior, 1859. Imagem: Archivo Pittoresco, Hemeroteca Digital |
Que ha de realidade n'essa obra? O episodio fundamental é verdadeiro. Verdadeiros os principaes personagens. Exacto o desenlace. É de Garrett a escolha da mais artistica e delicada das versões sobre os motivos de separação, a psychologia das figuras, e o sopro de genio que anima o drama.
Pelos annos de 1575 residia em Almada e tinha ali propriedades D. Maria da Silva, mãe de D. Magdalena de Vilhena.
Esta casou com D. João de Portugal, da casa dos condes de Vimioso, por volta de 1568, vivendo com elle dez annos até á partida para Alcacer Kibir.
Batalha de Alcácer Quibir, 1578, gravura Andrada, Miguel Leitão de, Miscellanea, 1689. Imagem: Wikipédia |
Ficaram tres filhos, D. Luiz, que veiu a morrer em Tanger, n'uma escaramuça depois de 1592. Duas meninas, D. Maria de Vilhena e D. Joanna de Portugal, que vieram mais tarde a casar, esta ultima com D. Lopo de Almeida, dos quaes nasceu uma filha que acompanhou sua avó para o convento quando a elle se re recolheu. D. João de Portugal desappareceu na batalha. Os documentos officiaes deramn'o como morto.
Batalha de Alcácer Quibir, 1578, gravura Machado, Diogo Barbosa, Memórias para a História de Portugal, 1751. Imagem: Wikipédia |
D. Magdalena, conta-se, espaçara por alguns annos o segundo casamento com Manuel de Sousa Coutinho, com receio de não ser na realidade viuva.
Afinal as razões que lhe deram os proprios parentes do primeiro marido convenceram o seu coração, já de ha muito dominado pelo encanto do brilhante cavalleiro Manuel de Sousa. Casaram entre 1584 e 1586.
Elle tinha todas as qualidades que seduzem as mulheres. Era bravo e destemido, tentava-o a aventura longiqua. As coisas banaes passadas pela sua palavra adquiriam a harmonia que nos embala quando lêmos periodos da Historia de S. Domingos e Vida do Arcebispo.
Usava no airoso chapéu de aba larga a pluma branca a la moda, e na imaginação tremulava-lhe a pluma ligeira d'uma phantasia romanesca.
Generoso, valente e poeta, captivou a linda e opulenta viuva. Alguns auctores teem avançado que essa riqueza tinha em grande parte resolvido o cavalleiro de 30 annos a desposar uma viuva mais velha do que elle.
Entretanto essa hypothese é destituida de fundamento pela rasão de que uma grande parte da fortuna e toda a que vinha do primeiro marido, pertencia aos filhos que d'elle tinham ficado.
E Manuel era rico, e cavalleiro, e namorado!... Em que repugna que elle se deixasse apaixonar pela bella e seductora viuva, que além de tudo não era talvez tanto mais velha do que elle?
Tiveram uma filha — a Maria do drama de Garrett, a que alguns escriptores chamam D. Anna de Noronha.
Em Lisboa viviam os conjuges a S. Roque, na freguezia do Loreto. Mas a sua residencia predilecta era Almada, onde, segundo affirma Barbosa Machado, Manuel commandava um corpo de setecentos infantes e cem cavallos.
Vista do Seminário de Almada, antigo Convento Dominicano de São Paulo Mário Novais, 1946. Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian |
A casa que habitavam n'esta villa era na rua Direita, como se vê d'uma escriptura publicada pelo erudito escriptor sr. Sousa Viterbo, na sua memoria apresentada a Academia Real das Sciencias.
Qual ella fosse torna-se difficil averiguar. Não só porque o incendio, cavalheirosamente ateiado pelo proprio Manuel, a teria destruido, e as confrontações indicadas na escriptura nada elucidam, como por não haver indicio na rua Direita de reedificação nenhuma que indique ter havido ali habitação nobre.
Percorrida essa rua, apenas uma morada de casas mais importante onde se veem uns bellos azulejos, permitte á imaginação conjecturar ter sido ali a pousada dos dois protogonistas do drama.
E certo que elles habitavam n'aquella rua e que já então Manuel de Sousa Coutinho cultivava as lettras em prosa e em verso, quando no anno de 1599 a peste grassava em Lisboa.
Resolveram os governadores do Reino, em nome de D. Filippe, virem estabelecer-se em Almada, e para palacio do governo escolheram a casa em que D. Magdalena e Manuel residiam.
Foi então que o fogoso cavalleiro e ardente patriota respondeu á importuna intimação, incendiando a sua casa, episodio com que Garrett fecha tão brilhantemente o acto do seu drama "Illumino a minha casa", diz Manuel de Sousa "para receber os muito poderosos e excellentes senhores governadores d'estes reinos."
O facto é verdadeiro. Elle proprio o narra no prologo que em latim escreveu ás obras de Jayme Falcão: "In fumum et cineres abïere".
E é mesmo de crer que esse atrevido repto atirado aos govemadores do Reino, influisse para a sua resolução em se expatriar. Retirou para Madrid, onde encontrou o acolhimento protector de D. Pedro e D. João de Borja, e d'ahi seguiu para a America.
Neste ponto se affastou da realidade Garrett, no seu drama, que faz succeder immediatamente ao incendio de Almada a catastrophe que decidiu os dois esposos a tomarem o habito. Entre um e outro facto mediaram perto de 13 annos.
Foi em 1600 que elle partiu para a America, em 1604 que d'ali regressou, e em 1613 que se realisou o divorcio.
O que motivou a sua volta a Portugal? Qual foi a causa da separação?
Diz o bispo de Vizeu, D. Francisco Alexandre Lobo, e confirma-o Barbosa Machado, que o trouxera arrebatadamente á patria a noticia da morte de sua filha.
Outros affirmam que viria por saber que os governadores que ultrajara já tinham sido substituídos, e que saudades da familia e da sua Almada, que tanto estremecia, o tinham repatriado.
N'esta hypothese, sua filha ainda viveria; e a sua morte, mais tarde, teria grande influencia na resolução de os paes se recolherem ao convento.
A mysteriosa causa do divorcio, interessante problema de psychologia, que tanto preoccupa aos escriptores que d'elle teem tratado, está ainda hoje para resolver.
Seria a morte da filha unica?
Não ha uma data que nos possa guiar. Não nenhuma citação que nos elucide. Seria, como se inclina a crer o sr. Sousa Viterbo um phenomeno de suggestão, que teria actuado no espirito dos dois, levando-os a esta especie de duplo suicidio?
É facto que, pouco tempo antes, o conde e a condessa de Vimioso se tinham separado, para professarem, ella no convento do Sacramento em Alcantara, que instituira, e elle no de S. Paulo, em Almada.
Vista do Seminário de Almada, antigo Convento Dominicano de São Paulo Mário Novais, 1946. Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian |
A coincidencia de serem os mesmos conven que Manuel de Sousa e D. Magdalena vieram a professar, a amizade e parentesco que existia entre o Vimioso e Manuel de Sousa Coutinho, a inclinação ao mysticismo da alma de D. Magdalena de Vilhena, creada e educada por uma mãe excessiváthente devota, n'uma epocha de profundas crenças religiosas, e supersticiosos terrores, que facilmente levariam o seu animo a procurar abrigo contra as tempestades da vida no convento que a condessa de Vimioso instituira e onde se escolhera, tudo teria influido no espirito dos dois esposos, já ambos no começo do inverno da vida, a procurarem no claustro paz e tranquillidade.
A apparição do peregrino, facto que aos eruditos repugna e aos poetas seduz, foi o motivo escolhido por Garrett para explicar a subita resolução do divorcio.
Tirou-o Garrett da narrativa de Frei Antonio da Encarnação, que, por ser contemporaneo dos acontecimentos, tem em favor da sua versão um grande saldo de probabilidades.
Conta elle que em 1613, estando D. Magdalena de Vilhena em Almada, lhe apparecera um peregrino que vinha da Terra Santa, trazendo novas de um portuguez que ha muitos annos vivia em Jerusalem, e que escapara aos desastres de Alcacer Kibir.
E dando os signaes certos de D. João de Portugal, o primeiro marido, accrescentou que fôra elle quem ali o mandára.
Aterrada com tão fulminante acontecimento, contou a seu segundo marido o que se passara, e o que Frei Jorge seu irmão presenceára.
Elle então dizem que respondera: "Até agora, senhora, vivi em boa fé convosco; e creio de vós que na mesma boa fé viveste comigo; porque fio de vós que não casarieis outra vez se não tivesseis por certa a morte do vosso primeiro marido. O que convém mais é fugir para o sagrado da religião."
A este episodio, narrado por Frei Antonio da Encarnação, põe muitas reservas o Bispo de Vizeu, o sr. Sousa Viterbo e outros, que se teem occupado do caso, e attribuem ainvenção ao espirito de messianismo sebastico que inflammava as imaginações n'essa epocha.
E a phantasia popular, que esperava ver apparecer o "Desejado" e cria que elle não perecera, facilmente daria como explicação á repentina deliberação dos dois conjuges, a chegada d'um mensageiro que trazia novas do cavalleiro de Alcacer Kibir.
Não havendo provas que invalidem esta versão, e havendo em seu favor o testemunho de um contemporaneo, porque regeital-o? E porque não fundiremos na alma dos dois heroes d'essa historia os tres motivos de anniquillamento moral?
A morte d'uma filha. é a maior dôr humana. E essa dôr ter-lhes-hia quebrado as energias vitaes.
A apparição do peregrino mensageiro do D. João de Portugal, ou elle proprio, como alvitra Garrett, seria para as suas almas a catastrophe determinante do refugio na casa de Deus.
E o exemplo dos condes de Vimioso, tão seus íntimos, ter-lhes-hia indicado o caminho. Por isso n'esse mesmo anno de 1613, deixando Almada, entraram, ella no convento de Alcantara, levando comsigo uma netasinha de sete annos, que a seguiu na clausura, elle no convento dos dominicanos de Bemfica, ondeveiu a escrever as mais harmoniosas paginas da harmoniosa lingua portugueza.
Quando depois de dominicano, Frei Luiz de Sousa escreve a sua Historia de S. Domingos, ao contar a fundação do convento de S. Paulo em Almada, por Frei Francisco Foreiro, no anno de 1569, e dando d'ella algumas noticias, deixa ainda transparecer n'essas paginas o encanto pela terra que tanto amára, e onde tanto amára.
"Sitio, diz elle do local do convento, que como é no mais alto do monte, e pendurado sobre o mar, fica como grimpa, sujeito a todos os ventos. Porém, paga-se este damno com ser senhor de um tão fermoso e tão bem assombrado horisonte, que confiadamente e sem parecer encarecimento, podemos affirmar que não ha outro tal em toda a redondeza da terra".
Vista do Seminário de Almada, antigo Convento Dominicano de São Paulo Mário Novais, 1946. Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian |
Conta elle depois que por ser de tal modo formoso o panorama de Lisboa que da villa de Almada se disfructa escolheu D. Filippe II esta villa para gozar da vista da cidade, antes de n'ella entrar.
Em uma noite mandou que lhe crivassem a cidade de Lisboa de luminarias, e tão deslumbrante era o espectaculo, que Frei Luiz de Sousa accrescenta que: "estando assim ardendo sem damno, toda, ficou devendo mais ás sombras nocturnas que ao resplendor do sol".
Aqui faz a viva memória do já morto Manoel de Sousa Coutinho,
cavalleiro portuguez, como se vivo fora.
Não morreu às mãos de nenhum castelhano,
senão à do amor que tudo pôde.
Caminhante, procura saber-lhe a vida,
e lhe invejarás a morte.
in Branco, Camilo Castelo, Mosaico e silva de curiosidades historicas, literarias e biographicas, Porto, Livraria Chardron de Lélo & irmão.
Almada — convento de S. Paulo, in Almada em 1897 Imagem: Hemeroteca Digital |
Annos depois, diz-se, esteve ali também o Duque de Bragança, mas com o intuito de ás occultas vir entender-se com os conjurados que em 1640 o acclamaram Rei com o nome de D. João IV. (1)
(1) Sabugosa, Conde de, Embrechados, Lisboa, Portugal-Brasil Lda., 1911
Versão integral impressa:
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte I)
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte II)
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