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terça-feira, 29 de maio de 2018

Praia da Trafaria, 1915

Praia da Trafaria é uma aguarela [de Leitão de Barros] representando uma casa típica isolada, em ruinas, inserida numa paisagem inóspita. Iniciou-se como aguarelista, mas apesar de ser um "excelente aguarelista... troca esta carreira" e "dedicou-se sobretudo à decoração e ao cinema", tornando-se realizador de cinema. 

Praia da Trafaria, Leitão de Barros, 1915.
Ilustração Portugueza nº 516, 10 de Janeiro de 1916

Obteve a 1ª medalha em aguarela em 1919."As suas obras singularizam-se pelo agudo sentimento estético". As suas aguarelas de paisagens com arquiteturas "palpitam em suas tintas luminosas", como é o caso da Praia da Trafaria. (1)

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A firma Mariano Martins & Cª está instalada na Trafaria, num edifício junto ao Presídio (mais tarde a garagem da Empresa de Camionagem Piedense), tem frota pesqueira própria em nome da firma uma embarcação e ancoradouro) e recorre a mão de obra local e forasteira. (2)

Trafaria — Vista geral, ed. Martins/Martins & Silva, 1201, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Pelo Concelho destaca-se a Trafaria: Este logar tem progredido duma maneira notável depois que para aqui vieram as industrias de conservas e pesca, a vapor. Esta temporada já o cerco da firma Mariano Martins & Companhia apanhou peixe no valor de 59 contos de réis, sendo fabricado em conserva, na fabrica que estes srs. possuem, muito mais, pois, além deste peixe, tem vindo para a mesma fabrica doutros cercos.

Conservas Mariano Martins & Cª, 1918.
Can the Can

Isto faz com que se empregue aqui muitos operários, o que de certo modo favorece o comércio local. Consta que outras fábricas vão construir e seria bom que, a quem compete estes assuntos, diligenciasse convencer esses industriaes a construírem as suas fábricas para além da Avenida Shóre, nos terrenos denominados do Torrão, pois a existência das fábricas dentro da povoação, fará afastar a colónia balnear que será pena perder por ser já numerosa e distinta.

Trafaria, Rua 5 de Outubro
Imagem: Fundação Portimagem

Seria conveniente que a Câmara olhasse com atenção para esta terra, mas com a devida imparcialidade, sem se deixar influenciar por certos "meninos bonitos" que por aqui há julgando-se os sobas da mesma. (2)


(1) As esposições de arte na Ilustração Portuguesa
(2) Can the Can cf. Arquivo Geral da Marinha
(3) Can the Can cf. Jornal d'Almada nº 21, 8 de dezembro de 1916

Informação relacionada:
Can the Can (pesquisa: Trafaria)
Conservas Praia do Sol
Fábrica de Conservas Omar

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Estaleiros de praia

Apesar da sua exígua dimensão, foi nesses estaleiros das praias do estuário do Tejo que se apoiou, ao nível da construção e reparação naval, uma boa parte da actividade marítima desta área regional.

Estaleiros da Mutela, Carlos Pinto Ramos, aguarela, 1931.
Museu José Malhoa

As unidades instaladas na praia da Margueira, e também na de Mutela, situadas na zona ribeirinha do concelho de Almada, virada a nascente, caracterizavam-se, no início do século XX, por uma grande simplicidade. 

Dispunham, normalmente, de uma ou duas carreiras, de um guincho destinado a puxar as embarcações para terra e de alguns barracões que funcionavam, simultaneamente, como oficina e depósito de ferramentas e materiais diversos.

Os restantes apetrechos ficavam espalhados pela praia onde assentavam as quilhas das embarcações em construção ou reparação.

A madeira mais utilizada nestes estaleiros era o pinho, proveniente das matas de Leiria e de Alcácer do Sal. Depois de cortados os troncos e transformados em pranchas, de comprimentos variáveis, estas eram enterradas no lodo, amarradas com correntes, e aí conservada, até que as mãos hábeis de um carpinteiro de machado lhes desse a forma necessária.

Doka velha, Leitão de Barros, 1916
[eventualmente trata-se da mesma aguarela referenciada como Estaleiro da Mutela (Mutelo) e Casas na Mutela].
Ilustração Portuguesa,n° 567, 1 de janeiro de 1917

Perto destas instalações havia sempre alguns ferreiros que, entre duas marteladas nos cascos das cavalgaduras, fabricavam as cintas, as cavilhas de entroncar e zincavam os pregos utilizados na construção das embarcações.

Na primeira década do século XX funcionavam na praia da Margueira, em permanente actividade, dois estaleiros: o do "Gouveia" e o do "Machado".

Logo ao lado, na praia de Mutela, estavam situados os da "Manga" e do "Zé da Lanchinha". Mas, a par destes, existiam outros, com carácter temporário, que duravam apenas o tempo suficiente para se construir uma embarcação.

Mais tarde, no início dos anos trinta, surgiu o estaleiro do "Durão", em Margueira, e os do "Chico Cavaco" e do "Cravidão", em Mutela.

Destas unidades saíram fragatas, varinos, canoas, batelões e, também, embarcações a motor destinadas ao transporte de passageiros entre as duas margens do Tejo, como o "Renascer" [LX-3107-TL, construído em 1917 em Olhão, como rebocador], o "Pacífico" e o "Pacato".

Vista do Arsenal do Alfeite, Caramujo e Mutela, Mario Novais, década de 1930.
flickr

A mão-de-obra com carácter permanente, utilizada em cada um destes estaleiros, era constituída por calafates, carpinteiros de machado e carpinteiros de branco, não ultrapassando, de um modo geral, os vinte homens. 

Gente que, de um modo geral, cultivava um certo elitismo e a manutenção de uma escala hierárquica bastante rígida ao nível das suas profissões, indícios de um espírito corporativo com raízes na medievalidade. 

Por sinal, era ainda comum, nesse início do século XX, a passagem do ofício de carpinteiro de machado, de pais para filhos. 

Quando o trabalho a realizar requeria um maior número de operários, os patrões recorriam à contratação de pessoal eventual. A "Malta do Sol", como eram designados os trabalhadores não especializados, que, entre outras tarefas braçais, serravam os troncos chegados dos pinhais e cobriam os cascos dos navios com alcatrão.

O Sr. Aires, um carpinteiro de machado que começou como aprendiz no estaleiro do "Zé da Lanchinha", em 1909, com quem tivemos oportunidade de conversar em 1987, quando, pela primeira vez abordámos este tema, dizia-nos, com indisfarçável orgulho que: 

"...Naquela altura um mestre era um mestre. Os patrões até chegavam a mandar ir buscar um gajo a casa de carruagem. E não julgue que se andava vestido de qualquer maneira. Havia alguns que até andavam de fato preto, chapéu de coco e laço à anarquista. É claro que, para se chegar a oficial e depois a mestre era preciso ser-se bom e suar muito. Enquanto éramos aprendizes nunca ganhávamos nada. Os pais de alguns até ofereciam dinheiro e coisas ao mestre, para eles começarem a trabalhar. O meu pai é que nunca deu nada..."

João Gomes Silvestre (João Marcela), mestre carpinteiro de machado, e mestre Bernardino Gomes Silvestre, calafate.
Artigos do jornal João Semana

Noutra passagem desta entrevista, quando perguntámos ao sr. Aires que recordações tinha do movimento grevista durante a primeira República, respondeu-nos peremptoriamente:

"... O que é que julga? – Não havia muitas greves. A malta do sindicato chegava à praia, dizia no primeiro estaleiro quanto é que queria e, quando chegava ao ultimo, os gajos (os patrões) já tinham aceite tudo..."

De facto o Sr. Aires tinha razão, porque, tanto quanto pudemos verificar, o numero de greves na construção naval, no período compreendido entre 1910 e 1926 foi incomparavelmente menor do que, por exemplo, na industria corticeira. Para esta situação contribuía – pensamos – o facto deste sector ser formado, sobretudo, por pequenas empresas.

Os estaleiros da Margueira e da Mutela formaram muitos calafates e carpinteiros de machado que, mais tarde, foram trabalhar para a "Companhia Portuguesa de Pesca", para a "Sociedade de Reparação de Navios", para o "Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau", para a "Parry & Son" e para o "Arsenal de Marinha".

Alguns trocaram o machado e a polaina pelo martelo de rebites, mas outros continuaram a sua arte, porque nestas empresas e, sobretudo, nos dois últimos estaleiros também se faziam trabalhos em madeira, tanto na manutenção como na construção de embarcações em ferro e, mais esporadicamente, num ou noutro iate ou batelão. 

Cova da Piedade, Mutela, aterro para construção da variante à Estrada Nacional 10.
Museu da Cidade de Almada

Nos anos cinquenta, todos os estaleiros das praias da Margueira e Mutela foram encerrados em consequência do aterro de toda a frente ribeirinha que se estende de Cacilhas à Cova da Piedade, seguido da construção de uma muralha e da avenida que ainda hoje existe. 

Na década de sessenta, como já antes referimos, foi construído nesse local o estaleiro da "Lisnave", também conhecido pelo "estaleiro da Margueira". 

A partir de então e até ao seu encerramento, na década de noventa, o concelho de Almada tornou-se no maior centro de indústria naval do estuário do Tejo e do país. 

Lisnave (Margueira), o paquete Príncipe Perfeito e petroleiro Esso Norway na doca n.° 13.
Porto de Lisboa

A par da "Lisnave", que empregava uns milhares de trabalhadores e à volta da qual foram surgindo umas quantas pequenas e médias empresas ligadas ao ramo, continuavam a laborar firmas bem mais antigas como o "Arsenal de Marinha", a "Parry & Son", a "“Sociedade de Reparações Terra e Mar", mas também importantes empresas empenhadas na pesca do alto, como o "Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau" e a "Companhia Portuguesa de Pesca".

Estas, obviamente não envolvidas na construção naval, mas dispondo de serviços de manutenção e reparação, como era o caso da "Companhia Portuguesa de Pesca", que dispunha de mais de uma centena de operários especializados, entre os quais se encontravam alguns hábeis "carpinteiros de branco" e "carpinteiros de machado", herdeiros da tradição dos ancestrais estaleiros das praias ribeirinhas do estuário do Tejo, como as as da Margueira e Mutela.

Vista do Arsenal do Alfeite, Caramujo e Mutela, Mario Novais, década de 1930.
flickr

Hoje, com excepção do "Arsenal de Marinha", tudo desapareceu. (1)


(1) O Farol, As Margueiras, Contributos para a história de Cacilhas, J.F. de Cacilhas, 2013

Artigos relacionados:
Construção naval tradicional no lugar da Mutela
Renascer
Doca 13
Lisnave
Kong Haakon VII na Lisnave
História alternativa
etc.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Sítio de Olho-de-Boi

Parece que não será no edificio do sr. Raton, mas na Outra-banda, no sitio de Olho-de-boi, que a companhia de "Fiação e Tecidos" vai estabelecer a sua fábrica. N'este último local esteve a fábrica de "lanificios de patente" [panos de feltro?], empresa que está em liquidação.

Olho de Boi, João Vaz, 1887.
Imagem: MNSR

Em qualquer sitio porém que a companhia de "Fiação e Tecidos" se estabeleça, fazemos votos pela sua prosperidade. (1)

Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense [fundada em 1838], armazéns, rua dos Fanqueiros 135, Lisboa.

Fonte da Pipa — Almada,
Olho de Boi, ed. desc.,década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Tecidos de algodão. Esta companhia tem três fábricas: duas em Santo Amaro, Belem, para a fiação e tecelagem; uma em Olho de Boi, Almada, para a fiação e tinturaria.

Operários (durante as épocas normais): 285 do sexo masculino e 465 do sexo feminino.

Salários: de 280 réis a 800 réis por dia para os homens; de 420 réis a 240 réis por dia para as mulheres; de 80 réis a 460 réis por dia para os menores.

Produção anual: 385 contos de réis mais ou menos. Escoamento: os de Portugal e colónias de África, Brasil e Espanha.

Almada, Boca do Vento, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 12, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Medalhas nas esposições de Lisboa 1849, Porto 1861, Lisboa 1863, Londres 1861, Londres 1862, Paris 1855, Porto 1865. (2)

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CPP (Companhia Portuguesa de Pesca, Lisboa)

E em 1947, no Sábado sem Sol, evocara a fábrica de gelo para os frigoríficos de bordo, com aquela ponte em cimento tracejada de rails para vagonetas... Também o relógio da torre, em Almada, e as cinco badaladas no bronze do sino, logo o apito para a saída do pessoal da Companhia Portuguesa de Pesca. (3)

Olho de Boi, Companhia Portuguesa de Pesca, Amadeu Ferrari, década de 1940.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A Companhia Portuguesa de Pesca foi fundada no ano de 1920 por quarto pequenos armadores de pesca de arrasto, cada um proprietário de um navio.

Tipo de arrastão a vapor do início do séclo XX.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Esta Companhia surgiu num contexto de expansão da indústria conserveira e piscatória.

Inicialmente, os navios dedicados unicamente à pesca por arrastão costeira funcionavam a partir do cais de Santos, na margem norte, em Lisboa. devido ao pouco espaço na margem direita do rio Tejo, por estarem já implantadas algumas das importantes unidades fabris e devido à manutenção e aparelhagem dos navios, a direcção decidiu que era necessário construírem infra-estruturas de apoio.

Arrastões da Companhia Portuguesa de Pesca, Alcatraz e Liberal Primeiro, na Doca 1 da C.U.F., em Lisboa.
Imagem: Caxinas a freguesia

O local escolhido foi a margem esquerda, no Olho de Boi em Almada.

Numa primeira fase, foi celebrado um contrato de aluguer com a Administração Geral do Porto de Lisboa para a zona ribeirinha na margem sul, que ia desde o início do caminho para Almada até à Quinta da Arealva.


Nesta zona encontrava-se já uma muralha, que permitia a acostagem dos arrastões. Esta foi alargada mais tarde com a construção de um cais, assente em pilares, que avançou umas dezenas de metros em relação à estrutura existente, sendo assim possível atingir área profunda e portanto mais favorável à manobra das embarcações.

Lançamento à água do arrastaõ Almada em 1953.
Foram gémeos do Almada na Companhia Portuguesa de pesca os arrastões Alfama, Ajezur, Alvalade e Alfeite.
cf. Navios à vista

A escolha deste local deve-se também ao facto de se encontrar aí um edifício desactivado, que pertencera à Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonenses, passando este edifício a ser a zona de mecânica da CPP e o pólo das restantes estruturas fabris posteriormente construídas.

Olho de Boi - Beira Tejo, Manuel Tavares, aguarela sobre papel, 1960
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Esta fábrica era uma das unidades industriais cujo aparecimento na segunda metade do séc. XIX foi um dos marcos da industrialização na margem sul.

Navios no cais do Ginjal, Real Bordalo, 1976.
Imagem: eBay

A CPP adquiriu este edifício, assim como algumas quintas contíguas, que se estendiam entre a orla ribeirinha e a arriba.

Cais do Ginjal, arrastões Algol e Alcoa da CPP, 1984.
Imagem: Nuno Bartolomeu

Alguns anos mais tarde a companhia expandiu-se ao longo da zona ribeirinha, para Este, até ao cais da Fonte da Pipa [...] (4)

"Estuário do Tejo - Cais do Olho de Boi 1984 - 3 atuneiros da Empresa de Pescado do Algarve; 4 arrastões da CPP da classe ALMADA; 4 arrastões da SNAPA da classe ILHA DE SÃO VICENTE; os arrastões PEDRO DE BARCELOS e ÁLVARO MARTINS HOMEM, da SNAB / foto de autor desconhecido, gentilmente cedida por Nuno Bartolomeu."
cf. Navios à vista
Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/84

Pelo Decreto-Lei 139/84, foi extinta a CPP - Companhia Portuguesa de Pesca, S. A. R. L., tendo o Estado exercido o direito de reserva relativamente a alguns bens do património da empresa, abrangendo navios, participação financeira e direitos de crédito, com a possibilidade de os mesmos serem afectos a outras empresas [...] (5)

Art. 5.º - 1 [Decreto-Lei 139/84]- Ao abrigo do n.º 2 do artigo 44.º do Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril, o Estado reserva, do património da empresa, o seguinte:

1.º - Navios:
a) Aldebaran - Lx-39-A;
b) Alcoa - Lx-30-A;
c) Alcyon - Lx-51-A;
d) Algol - Lx-32-A;
e) Algenib - Lx-41-A;
f) Alvalade - Lx-65-A;
g) Alfeite - Lx-67-A;
h) Alcântara - Lx-19-A;
i) Almada - Lx-57-A;
j) Alcaide - Lx-71-A;
l) Alfama - Lx-59-A;
m) Aljezur - Lx-63-A. [...] (6)


(1) Revista Universal Lisbonense n.° 12, setembro de 1845
(2) Catalogue spécial de la section portugaise à l'Exposition universelle de Paris en 1867
(3) Vidas Lusófonas: Romeu Correia 
(4) Almada Digital
(5) Resolução do Conselho de Ministros 30/84, de 7 de Maio
(6) Decreto-lei 139/84, de 7 de Maio

Artigos relacionados:
O Grémio

Mais informação (Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense):
Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense : relação dos seus accionistas... 1872
Revista da exposição portugueza no Rio de Janeiro em 1879

Mais informação (CPP - Companhia Portuguesa de Pesca, Lisboa):
Flickr (FCG), Pescas, Mário Novais
Companhia Portuguesa de Pesca (entrevista a Augusto Ramos)
Companhia Portuguesa de Pesca (entrevista a Augusto Ramos - tabela de excertos)
Restos de Colecção: Companhia Portuguesa de Pesca
Marinha (arquivo histórico)
Navios à vista: o abalroamento do arrastão Alvor
Blogue dos navios e do mar: Fishing vessel Blue


Leitura adicional:
50 anos da Companhia Portuguesa de Pesca, "Jornal do Pescador", Agosto 1970, pp 25-27.
Os Arrastões do Bacalhau



Sobre o Açor e o Alda Benvinda (os primeiros barcos de pesca a vapor em Portugal):
Momentos de História
Agepor 11

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Maria Rosa Colaço (1935-2004)

Abri a porta e eles entraram. Eram quarenta e cinco e faltavam carteiras. Faltavam muitas carteiras, mesmo quando os sentei a três e três e pus cinco na mesa que me destinaram para secretária.

Maria Rosa Colaço.
Imagem: Youtube.

O director chegou e disse: Este é o seu reino e aqui tem os seus "meninos". E sorria. Se tiver sarilhos, a esquadra da polícia fica ao fim da rua.

E eu ali fiquei, face à nova aventura. Não eram génios, nem poetas, nem meninos prodígios. Eram filhos de pescadores, de varinas, de ladrões-de-coisas... essenciais-ao-dia-a-dia. (1)

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A Criança e a Vida saiu primeiro em Moçambique. Tinha levado comigo para África as redacções das crianças, como quem leva as cartas dos namorados. Um exemplar chegou ao director do ITAU que foi a Moçambique conhecer-me e propor a reedição em Portugal. 

Maria Rosa Colaço e os alunos-poetas de A criança e a vida.
Da esquerda, António Carlos, Vítor Barroca Moreira, a professora, Liís Filipe e Jorge.
Imagem: Romeu Correia, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada... 1978

Eram os anos 60, os estudantes acordavam definitivamente para as tarefas de luta. 

O pequeno livro, que cabia num bolso de casaco, entrou nas universidades como elemento quase mágico e começou a ser uma espécie de santo e senha entre os jovens. As crianças na sua voz lúcida e sem medo tinham escancarado as portas à denúncia dos podres e ao medo que corria nocturno e atento. 

Apesar do burburinho, algumas pessoas duvidaram da autenticidade dos textos. Levaram os miúdos à televisão para ver se os apanhavam em falso.

Um meu aluno que uma vez escreveu "o amor é não haver polícias". No dia da inauguração da Escola Maria Rosa Colaço ele veio de propósito da Suíça para estar ao meu lado. 

E eu perguntei-lhe: "Por que disseste aquilo?"

Então ele confidenciou que tinha escrito aquilo porque na altura o pai estava preso em Caxias, mas não podia contar-me. (2)

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Esta canção, "A Outra Margem", interpretada pelo Luís Represas e pelos Trovante, tem letra de Maria Rosa Colaço.


A Maria Rosa foi-me apresentada pelo escritor Romeu Correia, seu vizinho em Almada.

Foi uma amizade instantânea que começou, ainda nos anos 50, numa tarde de Inverno, no primeiro andar do café Avis nos Restauradores.

Era uma rapariga bonita, inteligente, bondosa, calma, com a sabedoria alentejana do seu Torrão natal a cintilar-lhe nos olhos.

Sobre a nossa amizade, ela descreve, mencionando-a, o cenário em que decorreu em "O Amor Tem Tantos Nomes" (1998), lembrando aqueles anos cinzentos que a nossa juventude, irreverente e lutadora, conseguia colorir.

Alta madrugada, cantávamos debaixo das janelas do Aljube, "Estupidamente, claro, porque os tiranos não se removem com canções nem falsos heroísmos, mas isso eu não, sabia porque aos dezoito anos só sabemos coisas importantes e únicas…", diz Maria Rosa. (3)

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A autora dedica o livro [Gaivota] a todas as crianças que,como Alfredo, são símbolo de sonho e de esperança.

Silhuetas, Artur Pastor (filho),  ed. Rolim.
Imagem: Delcampe

Conto que narra um dia na vida de Alfredo, dito Gaivota [a alcunha vem do facto de correr sobre os pontões de braços abertos]:

"Porque me chamam Gaivota? Está mesmo a ver-se… tenho passado entre os barcos e o Tejo, em cima deste paredão, correndo e escorregando nestas pedras húmidas, mais de metade da minha vida: às vezes, até a pele me sabe a sal."

Alfredo é-nos apresentado como um miúdo pobre na zona de Cacilhas. Vive ao deus-dará, fazendo de tudo um pouco, ou nada. Vive entre a raiva da sua situação e o deslumbramento da vida que o cerca.

Apesar da narração ser de terceira pessoa, passa frequentemente para o ponto de vista do próprio Gaivota, que nos interpela e é interpelado pelo narrador, em que questiona as suas memórias de um tempo mais feliz.

É a época do Natal e estamos perante uma criança desiludida, no entanto as suas reflexões produzem em nós um desejo de pensar também sobre a vida.

No final, perante a proposta de emprego como aprendiz de mecânico toda a felicidade perdida retorna, apesar da perda do pai em condições que não são explicitadas, de acossado pelo padrasto e descuidado pela mãe. (4)

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O cacilheiro, no Tejo, é assim, diariamente, a estrada possível das outras viagens que nunca faremos. 

O Tejo junto ao Cais das Colunas.

Nele começam e acabam as asas e as barbatanas de luz que séculos de adaptação à vida nos têm roubado.

É então que na manhã alada, o acordeão do cego nos devolve o eco da alegria possível.

Dos Mares nunca dantes navegados, restam-nos as viagens à Outra Banda, em persistentes, resistentes cacilheiros, naus familiares que nos ancoram o destino certo.

Indiferente às variantes com que se tem pretendido roubar-lhe a clientela, o cacilheiro do ano 2000 resume o português europeu com saudades inconfessadas das cangas de bois de lavradio que nunca devia ter largado.

No cacilheiro, o mundo é próximo e familiar, os olhares reconhecem-se, o diálogo ainda é possível, os mercadores do penso rápido, dos atacadores e das pilhas para o rádio, circulam intervalo dos cauteleiros, da pedinchice organizada, com cartões na lapela para elucidar os corações prevenidos.

Cais de cacilheiros, Terreiro do Paço, década de 1960.

Penélopes modernas fazem nas viagens do cacilheiro, com mãos hábeis, rendas que se vão tecendo sob o olhar de admiração das viajantes inaptas do banco da frente; jovens estudantes trocam beijos impúdicos, conclusões e cábulas sobre o Discurso do Método de mistura com as estridências dos Ena Pá 2000, que lhes gritam nos ouvidos com auscultadores; poetas experimentais escrevem e reescrevem novas versões incorrectas e mal plagiadas da Ode Marítima porque, em cada português há sempre um Álvaro de Campos à procura da posteridade.

Ao fundo, gaivotas famintas, recortam-se nos ácidos sulfurosos do céu do Barreiro onde o Kira sonha e pinta e o Sousa Pereira escreve poemas à tona da pele.

O cacilheiro, no Tejo, é assim, diariamente, a estrada possível das outras viagens que nunca faremos.


Nele começam e acabam as asas e as barbatanas de luz que séculos de adaptação à vida nos têm roubado.

É então que na manhã alada, o acordeão do cego nos devolve o eco da alegria possível.

Por entre pés, cestas, jornais, indiferença e alguns ouvidos atentos, vai o cego acordeando os fados da sua memória, deixando nas vigias algumas palavras de amor, quanto baste de saudade e as raivas, breves, do nosso fado português.

Ás vezes vou aqui, na amurada do cacilheiro; olho as gaivotas que pairam, voo rasteirinho, voo picado, voo maluco e penso, Liberdade é isto: ser gaivota branca.

Gaivota do Tejo. E mais nada...

Lisboa, Marcha  pela Paz, 1983.
José Saramago, Piteira Santos, Maria Rosa Colaço, Lopes Graça, Manuel da Fonseca, José Cardoso Pires e Urbano Tavares Rodrigues, fotografia de Rui Pacheco.
Imagem: Fundação José Saramago

Porque o resto é tudo conversa. Sem asas, nem espaço. (5)


(1) Boletim O Pharol n.° 30, setembro de 2016
(2) A Viagem dos Argonautas
(3) Aventar
(4) Leituras mal amanhadas Maria Rosa Colaço, Gaivota. Edições Nave, 1982
(5) rostos

Mais informação:
Maria Rosa Colaço (blog)
Boletim O Pharol n.° 0, dezembro de 2004
Boletim O Pharol n.° 30, setembro de 2016
Antifascistas da Resistência no Facebook
Maria Rosa Colaço no Youtube



Obras de Maria Rosa Colaço [cf. AMR Casa da Leitura]

Como obra de destinatário preferencial infantil publicada ao longo de várias décadas, Maria Rosa Colaço é uma figura marcante do universo de autores portugueses da segunda metade do século XX. A sua produção literária, abarcando a narrativa e o texto dramático, encontra-se centrada no universo infantil.

A partir da leitura dos seus textos, desde O Espanta-Pardais (1961) até O Coração e o Livro (2003), é possível perceber de forma muito clara e precisa a sua concepção de criança e de infância, a sua confiança inabalável nas suas competências e capacidades e a esperança ilimitada que deposita nas gerações mais jovens.

Assim, os textos de Maria Rosa Colaço caracterizam-se pelo facto de serem protagonizados por crianças e cruzados pelo maravilhoso que, de alguma forma, parece tentar superar ou mitigar as carências (afectivas ou materiais) com que os seus heróis se debatem. De índole interventiva e também pedagógica, a obra de Maria Rosa Colaço apela a uma releitura que não esqueça o percurso da autora.

COLAÇO, Maria Rosa (1961): O Espanta-pardais, Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural (a edição de 1981, da Plátano, em versão de texto dramático é ilustrada por Ana Maria Duarte de Almeida).
COLAÇO, Maria Rosa (1969) (org.): A criança e a vida, Lisboa, Edições ITAU (ilustrações das crianças).
COLAÇO, Maria Rosa (1982): Sofia e o Caracol, Lisboa, Plátano Editora (ilustração de Ana Maria Duarte d’Almeida).
COLAÇO, Maria Rosa (1983): Maria-Tonta, como eu, s/ local, Distri-Editora.
COLAÇO, Maria Rosa (1984): Aventuras de João-Flor e Joana-Amor, Plátano Editora, Lisboa (ilustração de Ana Duarte de Almeida).
COLAÇO, Maria Rosa (1987): Pássaro Branco, Círculo de Leitores/ Associação Portuguesa para a Educação pela Arte (ilustração de Ana Maria Duarte de Almeida).
COLAÇO, Maria Rosa (1989): Aventura com asas, Porto Editora, Porto (ilustração de Avelino Rocha) [reeditado em 2007, na mesma editora, com ilustrações de Ana Lúcia Pinto].
COLAÇO, Maria Rosa (1989): Gaivota, Lisboa, Caminho (ilustração de António Jorge Gonçalves).
COLAÇO, Maria Rosa (1989): O Mistério da coisinha azul, Plátano Editora, Lisboa (ilustração de Ana Duarte de Almeida).
COLAÇO, Maria Rosa (1990): O Menino e a Estrela, Livros Horizonte, Lisboa (ilustração de Concetta Scuderi).
COLAÇO, Maria Rosa (2003): O Coração e o Livro, Porto, Âmbar (ilustração de António Modesto).

quarta-feira, 9 de maio de 2018

O Livro do Desassossego

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber porquê. 

E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus.

Almada, vista de [Alfama, sé patriarcal?] Lisboa, James Holland, 1837.
Imagem: Walker Art Gallery

Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade [...]

O céu negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente negro contra as asas, por contraste, vividamente brancas das gaivotas em voo inquieto. O dia, porém, não estava tempestuoso já. Toda a massa da ameaça da chuva passara para por sobre a outra margem, e a cidade baixa, úmida ainda do pouco que chovera, sorria do chão a um céu cujo Norte se azulava ainda um pouco brancamente. O fresco da Primavera era levemente frio.

Ramalhete de Lisboa, Carlos Botelho, 1935.
Imagem: Wikipédia

Numa hora como esta, vazia e imponderável, apraz-me conduzir voluntariamente o pensamento para uma meditação que nada seja, mas que retenha, na sua limpidez de nula, qualquer coisa da frieza erma do dia esclarecido, com o fundo negro ao longe, e certas intuições, como gaivotas, evocando por contraste o mistério de tudo em grande negrume.

Mas, de repente, em contrário do meu propósito literário íntimo, o fundo negro do céu do Sul evoca-me, por lembrança verdadeira ou falsa, outro céu, talvez visto em outra vida, em um Norte de rio menor, com juncais tristes e sem cidade nenhuma. Sem que eu saiba como, uma paisagem para patos bravos alastra-se-me pela imaginação e é com a nitidez de um sonho raro que me sinto próximo da extensão que imagino.

Praça do Comércio e Rio Tejo, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Terra de juncais à beira de rios, terreno para caçadores e angústias, as margens irregulares entram, como pequenos cabos sujos, nas águas cor de chumbo amarelo, e reentram em baías limosas, para barcos de quase brinquedo, em ribeiras que têm água a luzir à tona de lama oculta entre as hastes verde-negras dos juncos, por onde se não pode andar.

A desolação é de um céu cinzento morto, aqui e ali arrepanhando-se em nuvens mais negras que o tom do céu. Não sinto vento, mas há-o, e a outra margem, afinal, é uma ilha longa, por detrás da qual se divisa — grande e abandonado rio! — a outra margem verdadeira, deitada na distância sem relevo.

Ninguém ali chega, nem chegará. Ainda que, por uma fuga contraditória do tempo e do espaço, eu pudesse evadir-me do mundo para essa paisagem, ninguém ali chegaria nunca. Esperaria em vão o que não saberia que esperava, nem haveria senão, no fim de tudo, um cair lento da noite, tornando-se todo o espaço, lentamente, da cor das nuvens mais negras, que pouco a pouco se mergiam [sic] no conjunto abolido do céu.

Retrato de Fernando Pessoa, Almada Negreiros , 1956.
Imagem: Lisboa Desaparecida

E, de repente, sinto aqui o frio de ali. Toca-me no corpo, vindo dos ossos. Respiro alto e desperto. O homem, que cruza comigo sob a Arcada ao pé da Bolsa, olha-me com uma desconfiança de quem não sabe explicar. 

O céu negro, apertando-se, desceu mais baixo sobre o Sul [...]

Cada vez que assim contemplo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de altura, e sessenta e um quilos de peso, em que fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto com uma virtude nobre do entendimento.

Lisboa, Maluda.
Imagem: maluda.eu

O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno — vapor de carga preto — dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo  [...]

A ideia de viajar nauseia-me.

Já vi tudo que nunca tinha visto.

Já vi tudo que ainda não vi.

O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa diferença das coisas e das ideias, a perene identidade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, o templo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo que vivo só de mexer-se está passando.

Paisagens são repetições. Numa simples viagem de comboio divido-me inútil e angustiadamente entre a inatenção à paisagem e a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse outro. Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma.

Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei. A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste.

Ah, viajem os que não existem! Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida. Mas aos que pensam e sentem, aos que estão despertos, a horrorosa histeria dos comboios, dos automóveis, dos navios não os deixa dormir nem acordar.

De qualquer viagem, ainda que pequena, regresso como de um sono cheio de sonhos — uma confusão tórpida, com as sensações coladas umas às outras, bêbado do que vi.

Para o repouso falta-me a saúde da alma. Para o movimento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo; negam-se-me, não os movimentos, mas o desejo de os ter.

Muita vez me tem sucedido querer atravessar o rio, estes dez minutos do Terreiro do Paço a Cacilhas. E quase sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mesmo e do meu propósito.

A multidão aguardando o ministro na villa de Cacilhas, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital

Uma ou outra vez tenho ido, sempre opresso, sempre pondo somente o pé em terra de quando estou de volta.

Quando se sente demais, o Tejo é Atlântico sem número, e Cacilhas outro continente, ou até outro universo.

Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos da rua falam alto com uma voz solitária.

A rua franziu-se de luz intensa e pálida, e o negrume baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamentos ecoantes… A tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio, morno, quente — tudo ao mesmo tempo —, o ar em toda a parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos, e, com o sobressalto gelado, um pedregulho de som bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro.

O som da chuva diminui como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui angustiantemente.

Nova luz, de um amarelado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trêmulo ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada, a trovoada começava a aqui não estar com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que aumentava, o tremor da trovoada acalmava nos largos longes — rodava em Almada...

Lisboa, Avenida da Liberdade, década de 1900, publ. Mala da Europa.
Imagem: FCSH +Lisboa

Uma súbita luz formidável estilhaçou-se. Tudo estacou. Os corações pararam um momento. Todos são pessoas muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte. O som da chuva que aumenta alivia como lágrimas de tudo. Há chumbo [...]

A manhã, meio fria, meio morna, alava-se pelas casas raras das encostas no extremo da cidade. Uma névoa ligeira, cheia de despertar, esfarrapava-se, sem contornos, no adormecimento das encostas. (Não fazia frio, salvo em ter que recomeçar a vida.) E tudo aquilo — toda esta frescura lenta da manhã leve, era análogo a uma alegria que ele nunca pudera ter.

O carro descia lentamente, a caminho das avenidas. À medida que se aproximava do maior aglomeramento das casas, uma sensação de perda tomava-lhe o espírito vagamente. A realidade humana começava a despontar.

Nestas horas matinais, em que a sombra já desapareceu, mas não ainda o seu peso leve, o espírito que se deixa levar pelos incitamentos da hora apetece a chegada e o porto antigo ao sol. Alegraria, não que o instante se fixasse, como nos momentos solenes da paisagem, ou no luar calmo sobre o rio, mas que a vida tivesse sido outra, de modo que este momento pudesse ter um outro sabor que se lhe reconhece mais próprio.

Retrato de Fernando Pessoa, Almada Negreiros , 1964.
Imagem: Museu Calouste Gulbenkian

Adelgaçava-se mais a névoa incerta. O sol invadia mais as coisas. Os sons da vida acentuavam-se no arredor.

Seria certo, por uma hora como estas, não chegar nunca à realidade humana para que a nossa vida se destina. Ficar suspenso, entre a névoa e a manhã, imponderavelmente, não em espírito, mas em corpo espiritualizado, em vida real alada, aprazia, mais do que outra coisa, ao nosso desejo de buscar um refúgio, mesmo sem razão para o buscar.

Sentir tudo sutilmente torna-nos indiferentes, salvo para o que se não pode obter — sensações por chegar a uma alma ainda em embrião para elas, atividades humanas congruentes com sentir profundamente, paixões e emoções perdidas entre conseguimentos de outras espécies.

As árvores, no seu alinhamento pelas avenidas, eram independentes de tudo isto.

A hora acabou na cidade, como a encosta do outro lado do rio quando o barco toca no cais. Ele trouxe consigo, enquanto não tocou na margem, a paisagem da outra banda pegada à amurada; ela despegou-se quando se deu o som da amurada a tocar nas pedras. 

Porto de Lisboa (Portugal), Caes da Ribeira Nova, ed. Martins/Martins & Silva, 60, década de 1900.
Imagem: Delcampe

O homem de calças arregaçadas sobre o joelho deitou um grampo ao cabo, e foi definitivo e concludente o seu gesto natural. Terminou metafisicamente na impossibilidade na nossa alma de continuarmos a ter a alegria de uma angústia duvidosa. 

Os garotos no cais olhavam para nós como para qualquer outra pessoa, que não tivesse aquela emoção imprópria para a parte útil dos embarques [...] (1)


(1) Fernando Pessoa (Bernardo Soares), O Livro do Desassossego

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Margem esquerda

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Cella Nova, Senhora da Rosa de Caparica

Alferrara e Mendoliva constituíam, com o lugar de Barriga, ou Cela Nova (futuro mosteiro de Nossa Senhora da Rosa da Caparica), um núcleo de eremitérios fundados em torno das vilas de Almada, Palmela e Setúbal, numa zona de forte presença santiaguista e com o apoio régio e dos mestres da Ordem. 

Nossa Senhora da Rosa com o Menino (detalhe), séc. XVI.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Sitos em território da diocese olisiponense, acabariam, todos eles, por ser anexados ao mosteiro do Santíssimo Sacramento de Lisboa, fundado nessa cidade em 1647 e posteriormente escolhido como nova sede da Província dos Paulistas. 

Com a extinção das casas de Alferrara e de Nossa Senhora da Rosa da Caparica, já concluída em 1813, os cartórios de todos os eremitérios acima referidos acabariam assim por migrar para Lisboa e, após 1834, com o arquivo desta casa, viriam a transitar para a Torre do Tombo [...]

Nossa Senhora da Rosa com o Menino, séc. XV.
Imagem: Wikipédia

Filho de Mestre Joane [Fernando, regedor, a. 1433-1463 (Barriga — Cela Nova)], físico do Infante D. João, apresenta-se a si mesmo, em 1445, como "pobre Jrmjtam da Jrmjndade e companhia de Meem de sseaura pobre Ja finado".

Companheiro, pois, de Mendo Seabra, ingressou na pobre vida ainda antes de 1433, dado que, após a morte de João Fernandes, regedor da Serra de Ossa, ocorrida necessariamente antes desta data, é a ele quem o dito Mendo envia para reger o eremitério de Barriga, que este entretanto reedificara.

Sabemos que Mendo Seabra manteve, até à sua morte, o governo de Mendoliva e a supervisão sobre os eremitérios de Barriga ou Cela Nova e de Alferrara, colocando aí eremitas da sua confiança.

Santo Antão e S. Paulo 1.o Ermita, Mestre dos Arcos,
(Gregório Lopes ?).
Imagem: MNAA

Na eminência da sua morte (1442), nomeara para o suceder, com os mesmos poderes, ao eremita João Eanes, a quem também o regedor de Cela Nova manifestou a sua obediência, atestada no diploma que para o efeito manda redigir em Setúbal a 29 de Setembro de 1445. 

Pelo mesmo documento, procurava ainda garantir o reconhecimento de todos os bens que lhe haviam sido anteriormente doados como pertencentes ao conjunto da comunidade. 

Para isso inclui no mesmo acto o traslado de uma anterior doação que lhe fora feita, ainda em 1442 mas já após a morte de Mendo Seabra, de chãos, casas e outros bens no dito lugar de Barriga, renunciando expressamente a todo o direito pessoal sobre os mesmos [....] (1)

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A vila de Almada encontrava-se, desde 1385, entre as terras doadas ao Condestável, com a respectiva jurisdição, mantendo, contudo, a Ordem de Santiago os seus direitos de padroado sobre as igrejas da urbe, na sequência do escambo estabelecido com o rei Dinis em 1297. 

Em Maio de 1422, Nuno Álvares Pereira doaria a vila e os respectivos direitos jurisdicionais à sua neta Isabel, futura mulher do Infante D. João, administrador do mestrado santiaguista.

Em 1527, uma visitação feita pelos oficiais da Ordem de Santiago revela a existência, neste local, de uma ermida, que aparentava obras recentes e com algum investimento ao nível dos materiais construtivos e decorativos, das pinturas, imagens e alfaias.

De nave única, embora com dois altares laterais, dispunha ainda de uma torre sineira, pia baptismal e alpendre. Anexa, refere-se a existência de uma sacristia e de estruturas de habitação para os pobres, rodeadas por uma vinha e pomar.

Apesar dos dados disponíveis confirmarem o apoio recebido posteriormente por parte de importantes membros da nobreza, nada se conhece sobre eventuais reconstruções ou ampliações do mosteiro, sabendo-se que este manteve sempre uma comunidade de pequenas dimensões.

Extinção: c. 1813, sendo as respectivas rendas anexadas ao Mosteiro do Santíssimo Sacramento de Lisboa.

The environs and harbour of Lisbon (assinalam-se o mosteiro e a ribeira), Laurie & James, publ. 1812.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Vestígios materiais do eremitério medieval: A igreja do mosteiro já se encontrava em completo estado de ruína e abandono em finais do século XIX, sobrevivendo hoje apenas alguns vestígios arquitectónicos integrados em casas particulares. (2)

Em 1834, no âmbito da "Reforma geral eclesiástica" empreendida pelo Ministro e Secretário de Estado, Joaquim António de Aguiar, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo Decreto de 30 de Maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas, ficando as de religiosas, sujeitas aos respectivos bispos, até à morte da última freira, data do encerramento definitivo.

Carta Topográfica Militar da Península de Setúbal (detalhe), José Maria das Neves Costa, 1813
Imagem: IGeoE

Os bens foram incorporados nos Próprios da Fazenda Nacional. (3)

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Notas:
Cela Nova (Termo de Almada)
Designação:
1. Barriga (termo de Almada) [Termo documentado pela primeira vez em 1414 (cf. TT, Mosteiro de Nossa Senhora da Rosa da Caparica, maço 2 de pergaminhos, nº 30 [antigo maço 1, nº 1] (1414.12.10, Almada). Pressupõe que o eremitério já existia nessa data, aproximando-se da data de 1410 proposta pela cronística moderna da Ordem para a fundação do eremitério (cf. Fr. Manuel de S. Caetano Damásio, Thebaida Portuguesa…, tomo I, p. 325).), é utilizado paralelamente com o de Cela Nova.]
2. Cela Nova (termo de Almada) [Assim referido por Mendo Seabra em 1442 (TT, Mosteiro de Nossa Senhora da Consolação de Alferrara, maço 3, nº 17). Ao longo do período medieval, é utilizado paralelamente com o de Barriga para designar este eremitério.]
3. Vale de Grou (termo de Palmela [sic]) [O topónimo surge em duas cartas régias, de 1451 e 1455, na última referindo-se pertencer ao termo de Palmela (TT, Chancelaria de D. Afonso V, lv. 35, fl. 93v e lv. 15, fl. 183). Contudo, o topónimo pertence efectivamente ao concelho de Almada e à freguesia da Caparica, respeitando os documentos referidos ao eremita Fernando (III) que dirige o eremitério de Cela Nova entre a. 1433 e 1463 (cf. parte II, B 96).]
4. Santa Maria de Barriga (termo de Almada) [TT, Leitura Nova, Odiana, lv. 3, fls. 145v-146 (1457.03.03, Lisboa).]
5. Santa Maria da Rosa (termo de Almada) [Já aparece com a referência a Santa Maria da Rosa em 1511 - TT, Mosteiro de Nossa Senhora da Rosa da Caparica, maço 2 de pergaminhos, nº 35 [antigo maço 1, nº 33] (1511.06.11, Borba).] (4)


(1) João Luís Inglês Fontes, Da "Pobre vida" à congregação da serra de ossa..., 2012
(2) João Luís Inglês Fontes, Idem
(3) Arquivo Nacional Torre do Tombo
(4) João Luís Inglês Fontes, Idem, ibidem

Mais informação:
Chronica dos Erémitas da Serra de Ossa, no reyno de Portugal...
Santuario Mariano e Historia das Imagēs milagrosas de Nossa Senhora...
Chorographia moderna do reino de Portugal...
Corografia Portugueza e descripçam topografica...
Portugal antigo e moderno...

Informação relacionada:
Histórias da História da Charneca de Caparica
Mosteiro da Rosa na revista ARTIS