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domingo, 26 de junho de 2022

Fragateiros de Ovar

De acordo com a Monografia de Ovar de Alberto Sousa Lamy, terminadas até meados da Primavera as construções navais nos estaleiros da freguesia de Ovar, dos quais o principal era o do cais da Ribeira, onde anualmente se construíam dez fragatas, os calafates iam para Lisboa, onde se empregavam no serviço do conserto das embarcações antigas.

Estaleiros da Mutela, Carlos Pinto Ramos, aguarela, 1931
Museu José Malhoa

Na sua Monografia da Freguesia Rural de Ovar, de 1912, João Vasco de Carvalho refere-se à indústria da construção de fragatas e de outros barcos de menor tonelagem, a qual atingiu tal escala que a companhia dos caminhos de ferro mandou construir vagões especiais para o seu transporte para Lisboa e Porto.

Era também importante a indústria anexa, a dos fragateiros, empregando-se 2500 a 3000 ovarenses no serviço das fragatas em Lisboa. Rocha e Cunha escreveu a respeito desta indústria: “Os estaleiros de Ovar e Pardilhó, desde longa data e até há poucos anos, construíam fragatas e varinos para serviço de outros portos, principalmente Lisboa.

João Gomes Silvestre (João Marcela), mestre carpinteiro de machado, e mestre Bernardino Gomes Silvestre, calafate.
Artigos do jornal João Semana

Concluída a construção, estas embarcações, sumariamente aparelhadas e carregadas com madeira que servia de lastro e dava frete, tripuladas por três homens de boa têmpera, em geral ílhavos, aproveitavam a época dos ventos bonançosos do norte, e seguiam costa abaixo para o porto de destino.

Estas expedições, que por vezes tinham desfecho trágico, eram denominadas enviadas” (...)

Em 1890, todos os “barcos grandes” que se usavam na costa do Furadouro e nos restantes portos do concelho, bem como nas costas de Paramos, Espinho, Torreira e S. Jacinto, eram construídos em Ovar.

O mesmo sucedia com os “barcos pequenos”, do tipo bateira, usados nos portos deste concelho e nas costas de Paramos, Espinho, Torreira, S. Jacinto e Costa Nova do Prado, bem como em alguns dos que serviam os pescadores de Ouro, S. João da Foz e Afurada.


Cacilhas, Caes e Pharol, ed. desc., década de 1900.
Fundação Portimagem

No entanto, a indústria dos calafates e fragateiros, nos seus moldes tradicionais, estava já agonizante, prejudicada com as obras do porto de Lisboa e a construção de paredões, onde os grandes navios que vinham ao Tejo passaram a acostar, tornando dispensável a maior parte do serviço das fragatas. (1)

(...) tendo como certo que desde finais do século XIX, João Gomes Silvestre, conhecido por “João Marcela”, natural de Ovar, surge como proprietário do estaleiro da Mutela, partilhando a sua direcção com o irmão Bernardino Gomes Silvestre.

Doka velha, Leitão de Barros, 1916
[eventualmente trata-se da mesma aguarela referenciada como Estaleiro da Mutela (Mutelo) e Casas na Mutela].
Ilustração Portuguesa,n° 567, 1 de janeiro de 1917

Em 1917, ainda na posse dos mesmos industriais, o estaleiro mantinha as mesmas confrontações do aforamento primitivo, apenas acrescido da serventia, para arrecadação de ferramentas, de um moinho de maré que era propriedade dos herdeiros dos Condes de Mesquitela, e se encontrava desactivado.

Zona dos estaleiros da Mutela em 1941, Vitalino António
cf. Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade

  1. Estaleiro e oficina do Peres
  2. Estaleiro do Pinhal, Zé dos ovos, Chico de Sezimbra
  3. Zona da represa para os toros de madeira estarem na água
  4. Muralha da Luíza da água
  5. Cais da fábrica Ramos (cortiça)
  6. Cais do Martins (vinhos)
  7. Cantinho da lapa onde os esgotos descarregavam na praia
  8. Fábrica da farinha
  9. Clínica António Elvas
  10. Estaleiro do João Marcelo (herdeiros), Manuel Lino, Cravidão (sócios)
  11. Moinho de maré (pertença da sociedade Manuel Lino) onde eram guardados os apetrechos náuticos
  12. Ferraria do João Vieira (João Ferreiro)
  13. Estaleiro da sociedade Manuel Caetano, Lázaro, Américo Cravidão
  14. Ferraria do Chouffer em brasa
  15. Zona de encalhe das embarcações para ficar em cima dos picadeiros (para raspar fundos e aplicar bréu)
  16. Estação de toros de madeira de Zé Cravidão (fornecimento dos estaleiros)
  17. Cavalariça do André
  18. Residência (barraca do Manel Preto) empregado do forno de cal
  19. Esplanada do liberdade
  20. Estaleiro do Chico Cavaco
  21. Estaleiro do Fialho (irmão do Chico Cavaco)
  22. Ferraria do Fialho
  23. Cais da fábrica Cabruja & Cabruja Lda. (cortiça)
  24. Estaleiro do Joaquim Picadeiro
  25. Estaleiro da sociedade Pedro, Serafim e Fernando
  26. Largo da Mutela
  27. Serração do Cereja (anteriormente Santo Amaro, Manuel Febrero)
  28. Taberna do Adelino Baeta
  29. Taberna da Emília da Praia 
O estaleiro dos “Silvestres” funcionou até 1947, ano em que teve lugar um processo de expropriações, tendo por objectivo a abertura do troço da Estrada Nacional n° 10, ligando Cacilhas à Cova da Piedade.Com este estaleiro naval desapareceram muitos outros que se situavam nas imediações, como os de Manuel Caetano, Américo Cravidão, Francisco Cavaco, João Fialho, Joaquim Maria da Silva, ou Pedro Lopes e Serafim Matos, transferindo-se alguns para o concelho do Seixal enquanto outros simplesmente deram por terminada a sua actividade. (2)

Como conheci os irmãos Silvestre (Mestres “Marcelas”)

"Conheci o Sr. João Marcela e o Sr. Bernardino em 1936, em Mutela, onde eram construtores de fragatas e barcos de madeira.

O João Gomes Silvestre era mestre carpinteiro de machado, e o mestre Bernardino Gomes Silvestre era calafate, tendo sido ambos construtores em Ovar, num estaleiro que tinham ali para os lados da Ribeira. Eu mesmo andei numa fragata, a "Sertória", construída por eles em Ovar, e lançada ao mar em 7/3/1907.

O mestre João era grande na estatura e grande nas obras que fazia. Tudo o que saía das suas mãos era perfeito.

O irmão, mestre Bernardino, era a mesma coisa. Vi-o a calafetar uma fragata com água pela cintura…

Havia vários estaleiros na Praia de Mutela, mas os dos Marcelas rivalizavam com todos: serviam uma clientela das melhores que havia, de que faziam parte alguns proprietários de fragatas naturais de Ovar.

Muita coisa boa poderia dizer destes dois gigantes e competentes fragateiros da minha terra, que Deus chamou ainda novos."

João Pinto Ramalhadeiro (cf. Artigos do jornal João Semana, Fragateiros de Ovar)

Apesar da sua exígua dimensão, foi nesses estaleiros das praias do estuário do Tejo que se apoiou, ao nível da construção e reparação naval, uma boa parte da actividade marítima desta área regional.As unidades instaladas na praia da Margueira, e também na de Mutela, situadas na zona ribeirinha do concelho de Almada, virada a nascente, caracterizavam-se, no início do século XX, por uma grande simplicidade.

Os estaleiros da Mutela ao centro da vista tomada do Arsenal do Alfeite po' Mário Novais na década de 1930.
flickr

Dispunham, normalmente, de uma ou duas carreiras, de um guincho destinado a puxar as embarcações para terra e de alguns barracões que funcionavam, simultaneamente, como oficina e depósito de ferramentas e materiais diversos.

Os restantes apetrechos ficavam espalhados pela praia onde assentavam as quilhas das embarcações em construção ou reparação.

A madeira mais utilizada nestes estaleiros era o pinho, proveniente das matas de Leiria e de Alcácer do Sal. Depois de cortados os troncos e transformados em pranchas, de comprimentos variáveis, estas eram enterradas no lodo, amarradas com correntes, e aí conservada, até que as mãos hábeis de um carpinteiro de machado lhes desse a forma necessária.Perto destas instalações havia sempre alguns ferreiros que, entre duas marteladas nos cascos das cavalgaduras, fabricavam as cintas, as cavilhas de entroncar e zincavam os pregos utilizados na construção das embarcações.

Na primeira década do século XX funcionavam na praia da Margueira, em permanente actividade, dois estaleiros: o do "Gouveia" e o do "Machado".

Logo ao lado, na praia de Mutela, estavam situados os da "Manga" e do "Zé da Lanchinha". Mas, a par destes, existiam outros, com carácter temporário, que duravam apenas o tempo suficiente para se construir uma embarcação.

Mais tarde, no início dos anos trinta, surgiu o estaleiro do "Durão", em Margueira, e os do "Chico Cavaco" e do "Cravidão", em Mutela.

Destas unidades saíram fragatas, varinos, canoas, batelões e, também, embarcações a motor destinadas ao transporte de passageiros entre as duas margens do Tejo, como o "Renascer" [LX-3107-TL, construído em 1917 em Olhão, como rebocador], o "Pacífico" e o "Pacato".

Cacilheiro Renascer no cais das colunas.
ALERNAVIOS

A mão-de-obra com carácter permanente, utilizada em cada um destes estaleiros, era constituída por calafates, carpinteiros de machado e carpinteiros de branco, não ultrapassando, de um modo geral, os vinte homens. 

Gente que, de um modo geral, cultivava um certo elitismo e a manutenção de uma escala hierárquica bastante rígida ao nível das suas profissões, indícios de um espírito corporativo com raízes na medievalidade. 

Por sinal, era ainda comum, nesse início do século XX, a passagem do ofício de carpinteiro de machado, de pais para filhos. 

Quando o trabalho a realizar requeria um maior número de operários, os patrões recorriam à contratação de pessoal eventual. A "Malta do Sol", como eram designados os trabalhadores não especializados, que, entre outras tarefas braçais, serravam os troncos chegados dos pinhais e cobriam os cascos dos navios com alcatrão.

O Sr. Aires, um carpinteiro de machado que começou como aprendiz no estaleiro do "Zé da Lanchinha", em 1909, com quem tivemos oportunidade de conversar em 1987, quando, pela primeira vez abordámos este tema, dizia-nos, com indisfarçável orgulho que: 

"...Naquela altura um mestre era um mestre. Os patrões até chegavam a mandar ir buscar um gajo a casa de carruagem. E não julgue que se andava vestido de qualquer maneira. Havia alguns que até andavam de fato preto, chapéu de coco e laço à anarquista. É claro que, para se chegar a oficial e depois a mestre era preciso ser-se bom e suar muito. Enquanto éramos aprendizes nunca ganhávamos nada. Os pais de alguns até ofereciam dinheiro e coisas ao mestre, para eles começarem a trabalhar. O meu pai é que nunca deu nada..."

Noutra passagem desta entrevista, quando perguntámos ao sr. Aires que recordações tinha do movimento grevista durante a primeira República, respondeu-nos peremptoriamente:

"... O que é que julga? – Não havia muitas greves. A malta do sindicato chegava à praia, dizia no primeiro estaleiro quanto é que queria e, quando chegava ao ultimo, os gajos (os patrões) já tinham aceite tudo..."

De facto o Sr. Aires tinha razão, porque, tanto quanto pudemos verificar, o numero de greves na construção naval, no período compreendido entre 1910 e 1926 foi incomparavelmente menor do que, por exemplo, na industria corticeira. Para esta situação contribuía – pensamos – o facto deste sector ser formado, sobretudo, por pequenas empresas.

Cova da Piedade, Mutela, aterro para construção da variante à Estrada Nacional 10.
Museu da Cidade de Almada

Os estaleiros da Margueira e da Mutela formaram muitos calafates e carpinteiros de machado que, mais tarde, foram trabalhar para a "Companhia Portuguesa de Pesca", para a "Sociedade de Reparação de Navios", para o "Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau", para a "Parry & Son" e para o "Arsenal de Marinha".

Alguns trocaram o machado e a polaina pelo martelo de rebites, mas outros continuaram a sua arte, porque nestas empresas e, sobretudo, nos dois últimos estaleiros também se faziam trabalhos em madeira, tanto na manutenção como na construção de embarcações em ferro e, mais esporadicamente, num ou noutro iate ou batelão. 

Vista aérea da variante à Estrada Nacional 10, zona da Mutela e da Margueira, 1958
IGeoE

Nos anos cinquenta, todos os estaleiros das praias da Margueira e Mutela foram encerrados em consequência do aterro de toda a frente ribeirinha que se estende de Cacilhas à Cova da Piedade, seguido da construção de uma muralha e da avenida que ainda hoje existe.  (3)


(1) Clara Sarmento, Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa, 2007
(2) Deputados do Grupo parlamentar do PCP, Cria o Museu Nacional da Indústria Naval, Lisboa, Parlamento, 2005, 19 págs.
(3) O Farol, As Margueiras, Contributos para a história de Cacilhas, J.F. de Cacilhas, 2013

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Estaleiros de praia

quarta-feira, 22 de junho de 2022

A festa do São João

Doces recordações da juventude! Fonte da Pipa! Nayade querida, inexgotavel manancial de purissimas aguas! Que Deus te abençôe como eu te bem-disse quando mitigando a sede, espargia ao longe olhares saudosos, invejando as gaivotas as suas azas para me embalar no espaço, e me deslizar por sobre as vagas do formoso Tejo, n'uma d'aquellas manhãs em que o astro do dia, toucado de delgadas nuvens, ordena ao sul que sopre brandamente, e imprime a seus raios um colorido prateado!

Lisbon from Fort Almeida [sic], Drawn by C. Stanfield from a Sketch by W. Page, Engraved by E. Finden, Fieldmarshal The Duke of Wellington
Cesar Ojeda

Perto da noite toda aquella mocidade voltava em numero de quasi 60 pessoas, a percorrer os arredores da villa até principiarem as fogueiras, que se saltavam, e onde se queimavam alcachofras no meio de risos e descantes; dividindo-se e subdividindo-se a turba pelas casas, em que se brincava o resto da noite.

No dia seguinte celebrava-se a festa de S. João na capella da quinta da Ramalha, havia procissão, e depois saía a celebrada dança dos pausinhos, assim chamada por levarem os pares uns bordões pintados de vivas cores, com que faziam muitas sortes e passos agradaveis; e quem diante d'ella ia e a dirigia era Pedro Marques, de casaca de esteira, caraça preta e grande chapéo armado, montado n'um jumento, e com o rosto voltado para a cauda do animal.

Almada festas de S. João Baptista, aspecto parcial da Feira Popular, 1970.
Arquivo Municipal de Lisboa

No rocio de Almada havia um coreto de musica, d'onde partiam para as casas compridas grinaldas de louro e murta, entremeadas de lanternas para a illuminação á noite; e faziam-se ali n'essa tarde cavalhadas, para o que se lançava de uma janella a outra, em todo o comprimento da praça, uma grande corda, em que se penduravam panellas de barro cheias de agua de cheiro ou de ratos, balõezinhos contendo pardaes ou lagartixas, casaes de pombos, de rolas, e outros objectos.

Uma duzia de mascarados a cavallo em rocinantes tentavam, cada um por sua vez, na corrida a galope, desprender da corda e enfiar nas lanças de que vinham armados estes premios d'aquelle jogo; mas quasi sempre se quebravam as panellas, se rasgavam os balõesinhos, e voavam os pardaes, os pombos e as rolas, caindo os ratos, a agua de cheiro ou as lagartixas por toda a praça, o que dava logar a grandes risadas, chufas e applausos.

Procissão de S João em Almada, segundo uma photographia do sr. dr. Judice Pragana.
Hemeroteca Digital, revista Branco e Negro, Julho de 1897

Durava isto por muito tempo, e todos se mostravam mui satisfeitos. Á noite illuminava-se todo o Rocio, queimava-se um fogo de vistas, e appareciam novamente a dança dos pausinhos e outras, tudo com muita musica e arruido. (1)