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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Arte xávega na Costa da Caparica a Património Imaterial

A Arte-Xávega é uma técnica de pesca tradicional que consiste na utilização de uma rede de cerco envolvente que é lançada no mar e depois puxada para terra.

O mar como patrimonio, exposicão: arte-xávega na Costa da Caparica, 2015.
Imagem: Francisco Silva

A Arte, como é designado o conjunto constituído por cordas, alares e saco, é lançada ao mar a partir de uma embarcação, deixando em terra a ponta da corda designada por banda panda. Depois de largar a rede, a embarcação regressa à praia trazendo a outra ponta de corda, designada por banda barca.

Logo que a segunda corda chega à praia inicia-se o processo de alagem em simultâneo de ambas as cordas, puxando para a praia a rede cuja boca do saco se mantém aberta através da utilização de boias e de pesos.

Praia do Sol, C. Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n
Imagem: Delcampe

Esta técnica de pesca, praticada também em outras regiões do país, foi trazida para a Costa da Caparica por comunidades piscatórias de Ílhavo e Olhão, responsáveis pelo povoamento do lugar. 

Adaptando-se às praias e ao mar da Costa da Caparica, a Arte-Xávega adquiriu características específicas que a distinguem de práticas semelhantes utilizadas em outras regiões do país.

Considerada como arte de cerco envolvente de puxar para terra a Arte-Xávega tem uma origem remota que segundo alguns autores remonta à pré-história, estando documentada em diversas regiões do Mediterrâneo mas também no Índico. 

Barco lua na praia de Cox's Bazar, baía de Bengala, Bangladesh.
Imagem: WATEVER

Em Portugal a utilização das redes da Arte-Xávega nos moldes que atualmente se conhecem remontam ao século XVIII e terão sido introduzidas por armadores andaluzes e catalães nas praias do Algarve e da Costa Nova, na sequência da proibição em 1725 da pesca de arrasto nas praias da Catalunha.

Na Costa da Caparica as condições naturais necessárias à utilização da Xávega: praia aberta e sem obstáculos, fundos de areia sem rocha e abundância de peixe, associada à proximidade da foz e estuário do Tejo, atraíram companhas de pescadores oriundos de Ílhavo e Olhão que aqui vinham pescar sazonalmente tirando partido do mar mais calmo e da proximidade do mercado da capital para o escoamento do pescado, principalmente sardinha.

Costa da Caparica, Entrando no mar, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins

A partir de 1770 ter-se-ão fixado definitivamente na Costa as primeiras companhas oriundas de Ílhavo dando início ao povoamento do lugar, até então despovoado e desprezado pelas populações locais, em parte devido à insalubridade derivada da existência de pântanos e juncais que dominavam a paisagem de areal da costa atlântica da freguesia de Caparica.

Como forma de dar resposta a algumas das necessidades da população que então passou a constituir a povoação da Costa os mestres das companhas organizaram o "Cofre dos Quinhões das Companhas", para o qual cada companha contribuía conforme o pescado vendido, com o rendimento do cofre se pagava anualmente ao “cirurgião”, ao padre e ao escrivão.

Costa da Caparica, Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

O muro de cemitério e a sua pequena capela, assim como o poço que abastecia a população de água potável, foram igualmente pagos com dinheiro do "Cofre", que financiava as festas em honra da padroeira, Nossa Senhora do Rosário, a manutenção da capela e o apoio aos mais desvalidos da comunidade.

Praia do Sol, C. Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n, Poço de Bomba.
Imagem: Delcampe

A organização social destas primeiras comunidades locais baseava-se em laços familiares e laborais, sendo que cada companha constituía como que uma família alargada, num segundo nível.

Os locais de origem marcavam de forma mais profunda a separação social entre ílhavos e algarvios, que ocupavam espaços territoriais diferenciados, cuja linha divisória (atual Rua dos Pescadores) separava os descendentes dos ilhavenses, a norte, dos algarvios, a sul.

Identificam-se entre alguns pescadores e pescadoras indivíduos oriundos do Alentejo que se fixaram na Costa da Caparica e desenvolveram a sua atividade em torno da pesca.

Costa da Caparica, Almada, Passaporte, 69, Pescadores transportando as redes.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Acerca da origem dos membros da comunidade piscatória importa ainda referir que a necessidade de força de trabalho utilizada na Arte-Xávega contribuiu para integrar na comunidade muitos indivíduos de origens desconhecidas que procuravam abrigo e trabalho nas companhas da Arte-Xávega.

Eram chamados barraqueiros por habitarem nas barracas da companha, utilizadas para guardar as redes e outros apetrechos de pesca. Esta realidade mantém-se atual, sendo que continuam a habitar nos alvéolos dos pescadores da Costa vários pescadores de origem africana.

A Praia do Sol, O transporte da rede e a faina, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 105.
Imagem: Delcampe

Contudo, na sua maioria, os membros da comunidade piscatória são naturais da Costa da Caparica, sendo a pesca uma atividade que se mantém no âmbito das famílias e um recurso perante a falta de outras oportunidades de ocupação profissional.

A Arte-Xávega seria então o principal método de pesca utilizado de entre outras artes tradicionais de cerco e alar para terra como o Chinchorro, a Rede-Pé, a Mugeira ou o Estremalho, artes que foram proibidas por terem malhagens reduzidas sendo por isso consideradas muito predatórias.

A pesca com a Arte-Xávega, mais precisamente a condução das redes, fazia-se com recurso a embarcações designadas Saveiros ou Barcos de Mar, trazidos pelos pescadores da Beira Litoral (Mira, Torreira, por exemplo onde ainda hoje são utilizados).

Barco de Mar, companha de S. José, praia de Mira.
Imagem: ahcravo's Blog

Eram movidos a remos por tripulações com cerca de vinte remadores a bordo, contudo as condições do mar da Costa da Caparica levaram à transformação dos Saveiros em embarcações mais pequenas e com um desenho ligeiramente diferente a que se chamou Meia-lua (por apresentarem as bicas simétricas enquanto o Saveiro apresenta a bica da proa mais elevada do que a da popa) ou Saveiro da Costa.


Em comum ambas as embarcações apresentavam o fundo plano, que permitia a manobra deslisando sobre a areia, bem como a popa e a proa elevadas para vencer a rebentação das ondas quer à vante quer à ré adaptando-se ao vale da onda.

O meia-lua, de dimensões variáveis consoante o número de remos que levava: dez, oito ou seis, embarcava uma tripulação composta pelo arrais, espadilheiro (manobrava o remo da espadilha colocado à popa que servia de leme), calador (responsável por "meter" e largar a rede), rapaz do pau da corda e os remadores, um por cada remo, conforme a dimensão da embarcação.

Pormenor da praia da Caparica, ed. Fotex, 144
Imagem: Delcampe

A partir de meados do século XX os meias-luas vão sendo substituídos por embarcações mais pequenas designados por "barco de duas bicas", que apresentavam ainda a popa e a proa levantadas mas com as bicas mais baixas, ainda movido a remos mas de mais fácil manobra e adaptado a outros tipos de pesca para além da Arte-Xávega.

Costa da Caparica, Saindo para o mar, ed. Centro de Caridade N. Sra. do Perpétuo Socorro, 173.
Imagem: Delcampe

Na Costa da Caparica a adaptação de motores aos barcos da Arte-Xávega iniciou-se na década de setenta do século XX. Fazia-se nos meia-lua através de um "poço" à popa, onde o motor era introduzido na vertical. Isso obrigava a que, na chegada à praia, o motor tivesse de ser levantado para não bater no fundo.

No sentido de aumentar a segurança e a estabilidade da embarcação, bem como torná-la mais versátil para outros tipos de pesca, foram sendo introduzidas as Lanchas ou Chatas.

Costa da Caparica, Puxando a barca para a pesca,
ed. Centro de Caridade N. Sra. do Perpétuo Socorro, 613.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

A mecanização da alagem através da adaptação de aladores à tomada de força dos tratores, introduzidos na década de setenta do século XX para apoiar as manobras das embarcações e o transporte do peixe, resulta de várias experiências realizadas por alguns armadores locais e generaliza-se a partir de finais da década de oitenta do século XX.

Costa da Caparica, Companha São José, de volta à faina, 2015.
Imagem: Francisco Silva no Facebook

Segundo a opinião de alguns pescadores, recolhida em contexto de diálogo informal, a mecanização dos barcos, do transporte do peixe e da alagem da rede é condição determinante para a sobrevivência da Arte-Xávega na Costa da Caparica, pois já ninguém se sujeitaria ao esforço necessário para realizar manualmente e à força de músculos todas as tarefas necessárias durante uma jornada de pesca.

Costa da Caparica, Pôr do Sol, ed. Passaporte, s/n.
Imagem: Delcampe

A faina da pesca realizada através da Arte-Xávega na Costa da Caparica, sendo praticada no mar e na praia constitui uma atração turística que cativa muitos dos frequentadores da praia nomeadamente banhistas que principalmente durante os meses de verão acorrem em grande número para observar a chegada à praia da rede e a escolha do peixe.

Nesse sentido apesar da proibição desta prática da pesca nas áreas concessionadas entre 09:00 e 19:00 horas, imposta durante a época balnear, alguns concessionários viabilizam o acesso dos tratores através das concessões no sentido de possibilitar a prática da Arte-Xávega.

A possibilidade de comprar peixe na praia diretamente aos pescadores constitui outro atrativo que contribui para a valorização da Arte-Xávega na Costa da Caparica enquanto recurso turístico, para além de favorecer o rendimento das companhas.

Encontram-se jovens de ambos os sexos integrados nas companhas da Arte-Xávega, tendo como principal objetivo auferir de algum rendimento monetário. 

Apesar de se observar alguma falta de interesse por parte das novas gerações em dar continuidade à atividade piscatória na Costa da Caparica, observa-se uma renovação das companhas entre as quais se encontram atualmente três governadas por “donos” com idades na casa dos quarenta anos ou menos.

Nesse sentido considera-se que os conhecimentos e experiência necessária ao governo da Arte, principalmente no que diz respeito à construção e manutenção das redes imprescindíveis à continuidade da prática da Arte-Xávega e sem qualquer viabilidade de produção industrial, se encontram minimamente salvaguardados e com possibilidade de terem continuidade e viabilidade económica.

Costa da Caparica, As redes, aguarela de Manuel Tavares, 1965.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

O património imóvel associado à comunidade piscatória da Costa da Caparica e por inerência à prática da Arte-Xávega relaciona-se com os locais de arrumação dos aparelhos e artes de pesca, bem como a habitação.

Contudo, em virtude do crescimento urbano da cidade da Costa da Caparica, observaram-se a partir da primeira metade do século XX transformações profundas que condicionaram a atual concentração habitacional da comunidade piscatória.

Os primeiros locais de fixação de população na Costa da Caparica dividiam-se em dois núcleos separados pelo traçado da atual Rua dos Pescadores — as famílias de pescadores oriundos do Algarve a norte, e as de Ílhavo a sul.

Costa da Caparica, Vista parcial e Rua dos Pescadores, ed. Passaporte, 72, década de 1960.
Imagem: Delcampe

As habitações primitivas da Costa eram construídas em tábuas e estorno (gramínea que se desenvolve nas dunas).

O primeiro bairro em alvenaria foi construído a norte da Rua dos Pescadores em 1884 por iniciativa do deputado Jaime Artur da Costa Pinto, com a finalidade de alojar as famílias de pescadores cujas habitações haviam sido destruídas por um incêndio.

Costa da Caparica, As novas edificações, 1887, desenho de João Ribeiro Cristino
Imagem: Hemeroteca Digital

Contudo, a partir do primeiro quartel do século XX, com o desenvolvimento da Costa da Caparica enquanto estância balnear e subsequente urbanização da zona norte da povoação as famílias dos pescadores que se aí se haviam instalado foram de alguma forma "empurradas" para sul, onde surgiu o bairro de barracas designado por "Rua 15".

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

A partir da década de sessenta do século XX, com a construção do Bairro dos Pescadores, integrada nas medidas de fomento da pesca tradicional promovidas pelo Estado Novo através do almirante Henrique Tenreiro e da Junta Central da Casa dos Pescadores, sedeada na Costa da Caparica, a maioria dos pescadores da Costa da Caparica passa a dispor de habitação no bairro cuja construção se desenvolverá em três fases.

Acerca da habitação dos pescadores foi possível perceber que a proximidade da habitação ao mar é uma condição determinante para a viabilidade da atividade da pesca, pois a decisão acerca da saída para a faina depende da observação do estado do mar, pelo que a proximidade da praia é determinante na decisão dos mestres e na possibilidade de chamar os camaradas para a faina.

Importa referir que tradicionalmente um dos elementos da companha, geralmente uma criança, tinha a função de "chamador": percorria as habitações dos pescadores gritando "chama o arrais" convocando assim os pescadores para a faina.

Uma das zonas referidas pelos pescadores mais idosos, como local de referência para a comunidade piscatória da Costa da Caparica situa-se onde se encontra o Hotel Praia do Sol.

A Praia do Sol - O Hotel, década de 1930
ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia.
Imagem: Delcampe

Esse local era designado "o Alto" onde se concentrava um núcleo habitacional e onde se via o mar. Quando os alcatrazes caiam mergulhando no mar era sinal de sardinha.

Em data não determinada, quatro famílias da Costa da Caparica foram fundar a povoação da Fonte da Telha, onde se juntam também duas famílias da Charneca.

A Fonte da Telha (Costa da Caparica, Praia do Sol), Cruz Louro, 1937.
Imagem: Cruz Louro

A transformação determinante na história da Costa da Caparica e da sua comunidade piscatória opera-se a partir da década de vinte do século passado com a classificação de estância balnear.

As famílias de pescadores passam então a alugar as suas casas aos "banhistas" habitando durante o verão nas barracas de apoio à pesca, alguns pescadores durante esse período passam a trabalhar como banheiros nas praias concessionadas.

A Arte-Xávega, os seus pescadores e principalmente os barcos meia-lua, constitui uma atração turística, passando a imagem do pescador e do barco meia-lua a estar ligada à promoção turística da Costa como "imagem de marca".

Costa da Caparica, barco meia-lua, Adriano Sousa Lopes, década de 1930.
Imagem: Flickr

Diversos fotógrafos registaram imagens da faina piscatória na Costa da Caparica, sendo que algumas dessas imagens foram publicadas em postais e folhetos turísticos.

Artistas plásticos e fotógrafos, entre os quais se destacam José António Passaporte, João Martins e Júlio Dinis, registaram os métodos de pesca então utilizados na Arte-Xávega constituindo um acervo que permite documentar a Costa da Caparica e das suas gentes durante a primeira metade do século XX.

Importa ainda referir que não se realizou nenhum recenseamento da comunidade piscatória, havendo contudo indícios de que algumas pessoas que trabalham na pesca habitem em outras localidades do concelho, nomeadamente a Charneca e o Monte de Caparica, sem esquecer a Trafaria, povoação piscatória cuja ocupação antecede a Costa da Caparica e onde residem muitos pescadores que também pescam e integram as companhas da Costa.

As novas tecnologias de comunicação e a facilidade das deslocações com recurso a meios de transporte próprios terá introduzido algumas alterações ao nível dos locais de habitação dos pescadores, contudo o caracter familiar da atividade contribui para que na sua maioria a classe piscatória habite na Costa da Caparica.

As principais manifestações religiosas da comunidade piscatória da Costa da Caparica já não se realizam, contudo permanecem na memória coletiva das populações locais demonstrando a religiosidade própria dos pescadores que, não frequentando a igreja, possuem uma forte devoção associada à proteção que esperam receber.

As principais celebrações consistiam numa procissão em honra de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da Costa da Caparica, durante a qual era transportada uma miniatura de meia-lua cuja tripulação é composta por Jesus Cristo e os apóstolos (imagem conservada na primitiva igreja paroquial).

Costa da Caparica, Procissão da Senhora do Rosário, Revista Ilustração, 1937.

A Nossa Senhora do Cabo Espichel constituiu outra das devoções da comunidade piscatória da Costa que, até às primeiras décadas do século XX participava regularmente no Círio do Cabo, percorrendo parte do percurso pela praia.

As práticas de pesca tradicional utilizadas na Costa da Caparica estão dependentes de um conjunto de fatores naturais que condicionam o sucesso da atividade e os riscos associados à navegação que podem colocar em perigo a integridade física dos pescadores.

Costa da Caparica, Almada, Passaporte, 60, Arribação dos pescadores após o lançamento das redes

Nesse sentido, embora seja difícil aferir as crenças e devoções particulares de cada pescador, alguns dos aspetos referidos no Anexo I em 19.3. [ver anexos], nomeadamente a pintura de um olho de cada lado da proa de algumas embarcações assim como os nomes que lhes são atribuídos, constituem no nosso entender aspetos que caraterizam as manifestações de Património Imaterial associadas à Arte-Xávega na Costa da Caparica. (1)



(1) MatrizPCI: Arte-Xávega na Costa da Caparica

Anexos:
MatrizPCI — Chata
MatrizPCI — Arte
MatrizPCI — Bibliografia
MatrizPCI — Multimédia

Temas:
Arte xávega
Saveiro meia Lua
Costa da Caparica

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Renascer

Navio-motor com casco e superestruturas de madeira, construído no ano de 1917 num estaleiro da então vila de Olhão.

Cacilheiro Renascer no Cais das Colunas, ed. Dúlia, década de 1950.
Imagem: Delcampe

Concebida como rebocador, esta modesta embarcação interrompeu essa sua primeira actividade em inícios dos anos 50 para ser transformada em transporte de passageiros.

Isto, depois de ter sido vendida à empresa Jerónimo Rodrigues Durão, Lda, de Cacilhas, que a colocou nas ligações entre a sua terra e Lisboa, nomeadamente o Terreiro do Paço.

Cacilheiro Renascer no cais das colunas.
Imagem: ALERNAVIOS

Na sua qualidade de cacilheiro, o "Renascer" — que tinha uma arqueação bruta de 56 toneladas e media 22,66 metros de comprimento por 5,50 metros de boca — funcionava com 4 membros de equipagem e podia receber a bordo uma lotação máxima de 250 passageiros.

Um grupo de seminaristas a bordo do cacilheiro Renascer.
Imagem: Fundação Mário Soares
O "Renascer" estava registado no porto de Lisboa com o número oficial LX-3107-TL. O seu motor diesel desenvolvia 225 hp de potência, o que lhe permitia navegar à velocidade de cruzeiro de 8 nós. (1)

Antigo cacilheiro Renascer, c. 1920(?).
Imagem: Delcampe


(1) ALERNAVIOS

domingo, 27 de dezembro de 2015

Embrechados (5 de 5)

Embrechados são os mosaicos caprichosos as incrustações variegadas feitas de seixos multicôres, de búzios e conchas, de fragmentos de louças finas, de contas e crystaes coloridos que adornavam as grutas, os nichos e alegretes dos jardins e quintas portuguezas [...]

Praça Duque da Terceira, pormenor da calçada.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Dorme desde então Almada, perto de dois séculos, na Historia de Portugal, até que accorda em 1833, com a entrada de Telles Jordão, que o Duque de Cadaval, governador de Lisboa, para ah mandara com 3:000 homens, defender esse posto avançado, e fazer face ao Duque da Terceira, que vinha com 1:500 homens sobre Lisboa.

Um desembarque em Cacilhas, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 2, década de 1900.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

A 22 de julho a columna liberal entrava em Setúbal, saltava por Azeitão, descia ao valle de Coina, e marchava pelo Seixal e pelo Alfeite, até á Piedade. 

Ahi, ao entardecer do dia 23, encontrava as avançadas do Telles Jordão. A guarnição miguelista de Almada, vindo ao seu encontro a Cacilhas, e julgando o inimigo muito superior em numero, aterrorisou-se.

Rua Direita — Cacilhas, ed. desc., década de 1900
Imagem: Delcampe, Oliveira

O combate, já de noite, foi uma derrota rápida para os miguelistas, que vinham apavorados, atropelar-se no Caes de Cacilhas. No escuro dessa noite houve forte carnificina.

Telles Jordão, a cavallo, combatendo, forcejava entrar u'uma falua. Abriram-lhe o craneo com uma cutilada, e arrastaram-n'o, quasi morto, emquanto uma grande parte dos seus fugia pelas trevas da noite, em catraios, faluas e barcos cacilheiros.

Pela madrugada do dia 24, o Duque de Cadaval mandou evacuar Lisboa. Foram avisar d'isto o Duque da Terceira á Outra Banda. O castello d'Almada entregou-se-lhe, e a sua columna atravessou o rio, entrando triumphante na capital.

Almada, O interior do castelo, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 7, década de 1900
Imagem: Delcampe

Hoje a figura em bronze do brilhante Conde de Villa Flor, Duque da Terceira, alli no caes do Sodré, sobre o pedestal de pedra, com a cabeça levemente inclinada e pensativa, olha com a insistência immovel das estatuas, para a frente, lá ao longe, a villa de Almada, que se lhe rendeu n'essa linda manhã de julho.

Cais do Sodré e praça Duque da Terceira, 1906.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

E se porventura no craneo de metal ainda palpitasse um cérebro, o seu pensamento correndo ao arripio pelo tempo que já passou, iria recordando, n'uma evocação, as scenas trágicas ou festivas, sentimentaes ou guerreiras, de que foi theatro essa Almada de Frei Luiz de Sousa, dos autos de Gil Vicente, do cerco do século XVI, das façanhas dos cruzados inglezes, e das origens da sua fundação árabe.


Versão integral impressa:
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte I)
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte II)

Tema:
Guerras Liberais

sábado, 26 de dezembro de 2015

Embrechados (4 de 5)

Embrechados são os mosaicos caprichosos as incrustações variegadas feitas de seixos multicôres, de búzios e conchas, de fragmentos de louças finas, de contas e crystaes coloridos que adornavam as grutas, os nichos e alegretes dos jardins e quintas portuguezas [...]

Embrechados no Seminário de Almada, antigo Convento de S. Paulo.
Imagem: Alexandra Lopes

Agora um drama verdadeiro. 

Nos fins do seculo XVI e principio do XVII, passa-se em Almada o mysterioso e pungente episodio sobre o qual Garrett architectou o mais bello poema em prosa da nossa litteratura, a mais poetica definição da alma portugueza, ao mesmo tempo apaixonada e cavalheirosa, repassada de mysticismo e vibrante de amor, accessivel a todas as ideias generosas, namorada e supersticiosa, dilacerada pela fatalidade do destino, energica na resolução do supremo sacrifício.

Lisboa, Civitates Orbis Terrarum, Georg Braun, Frans Hogenberg, 1572.
Imagem: Prosimetron

E porque os personagens existiram, e porque viveram. e se amaram, e os dois principaes se separaram ao cabo de uma união feliz, para irem acabar a existencia distanciados nas cellas dos seus conventos, o "Frei Luiz de Sousa" tem além do prestigio de symbolisar o genio d'uma nação, o interesse que despertam as scenas vividas.

Quem não conhece o drama de Garrett não é portuguez. Inutil portanto recordal-o.

Vista de Almada tomada do Campo de S. Paulo, Nogueira da Silva, grav. Coelho Junior, 1859.
Imagem: Archivo Pittoresco, Hemeroteca Digital

Que ha de realidade n'essa obra? O episodio fundamental é verdadeiro. Verdadeiros os principaes personagens. Exacto o desenlace. É de Garrett a escolha da mais artistica e delicada das versões sobre os motivos de separação, a psychologia das figuras, e o sopro de genio que anima o drama.

Pelos annos de 1575 residia em Almada e tinha ali propriedades D. Maria da Silva, mãe de D. Magdalena de Vilhena.

Esta casou com D. João de Portugal, da casa dos condes de Vimioso, por volta de 1568, vivendo com elle dez annos até á partida para Alcacer Kibir.

Batalha de Alcácer Quibir, 1578, gravura Andrada, Miguel Leitão de, Miscellanea, 1689.
Imagem: Wikipédia

Ficaram tres filhos, D. Luiz, que veiu a morrer em Tanger, n'uma escaramuça depois de 1592. Duas meninas, D. Maria de Vilhena e D. Joanna de Portugal, que vieram mais tarde a casar, esta ultima com D. Lopo de Almeida, dos quaes nasceu uma filha que acompanhou sua avó para o convento quando a elle se re recolheu. D. João de Portugal desappareceu na batalha. Os documentos officiaes deramn'o como morto.

Batalha de Alcácer Quibir, 1578, gravura Machado, Diogo Barbosa, Memórias para a História de Portugal, 1751.
Imagem: Wikipédia

D. Magdalena, conta-se, espaçara por alguns annos o segundo casamento com Manuel de Sousa Coutinho, com receio de não ser na realidade viuva. 

Afinal as razões que lhe deram os proprios parentes do primeiro marido convenceram o seu coração, já de ha muito dominado pelo encanto do brilhante cavalleiro Manuel de Sousa. Casaram entre 1584 e 1586. 

Elle tinha todas as qualidades que seduzem as mulheres. Era bravo e destemido, tentava-o a aventura longiqua. As coisas banaes passadas pela sua palavra adquiriam a harmonia que nos embala quando lêmos periodos da Historia de S. Domingos e Vida do Arcebispo. 

Usava no airoso chapéu de aba larga a pluma branca a la moda, e na imaginação tremulava-lhe a pluma ligeira d'uma phantasia romanesca.

Generoso, valente e poeta, captivou a linda e opulenta viuva. Alguns auctores teem avançado que essa riqueza tinha em grande parte resolvido o cavalleiro de 30 annos a desposar uma viuva mais velha do que elle. 

Entretanto essa hypothese é destituida de fundamento pela rasão de que uma grande parte da fortuna e toda a que vinha do primeiro marido, pertencia aos filhos que d'elle tinham ficado. 

E Manuel era rico, e cavalleiro, e namorado!... Em que repugna que elle se deixasse apaixonar pela bella e seductora viuva, que além de tudo não era talvez tanto mais velha do que elle?

Tiveram uma filha — a Maria do drama de Garrett, a que alguns escriptores chamam D. Anna de Noronha.

Em Lisboa viviam os conjuges a S. Roque, na freguezia do Loreto. Mas a sua residencia predilecta era Almada, onde, segundo affirma Barbosa Machado, Manuel commandava um corpo de setecentos infantes e cem cavallos.

Vista do Seminário de Almada, antigo Convento Dominicano de São Paulo  Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

A casa que habitavam n'esta villa era na rua Direita, como se vê d'uma escriptura publicada pelo erudito escriptor sr. Sousa Viterbo, na sua memoria apresentada a Academia Real das Sciencias. 

Qual ella fosse torna-se difficil averiguar. Não só porque o incendio, cavalheirosamente ateiado pelo proprio Manuel, a teria destruido, e as confrontações indicadas na escriptura nada elucidam, como por não haver indicio na rua Direita de reedificação nenhuma que indique ter havido ali habitação nobre.

Percorrida essa rua, apenas uma morada de casas mais importante onde se veem uns bellos azulejos, permitte á imaginação conjecturar ter sido ali a pousada dos dois protogonistas do drama. 

E certo que elles habitavam n'aquella rua e que já então Manuel de Sousa Coutinho cultivava as lettras em prosa e em verso, quando no anno de 1599 a peste grassava em Lisboa.

Resolveram os governadores do Reino, em nome de D. Filippe, virem estabelecer-se em Almada, e para palacio do governo escolheram a casa em que D. Magdalena e Manuel residiam. 

Foi então que o fogoso cavalleiro e ardente patriota respondeu á importuna intimação, incendiando a sua casa, episodio com que Garrett fecha tão brilhantemente o acto do seu drama "Illumino a minha casa", diz Manuel de Sousa "para receber os muito poderosos e excellentes senhores governadores d'estes reinos."

O facto é verdadeiro. Elle proprio o narra no prologo que em latim escreveu ás obras de Jayme Falcão: "In fumum et cineres abïere". 

E é mesmo de crer que esse atrevido repto atirado aos govemadores do Reino, influisse para a sua resolução em se expatriar. Retirou para Madrid, onde encontrou o acolhimento protector de D. Pedro e D. João de Borja, e d'ahi seguiu para a America.

Neste ponto se affastou da realidade Garrett, no seu drama, que faz succeder immediatamente ao incendio de Almada a catastrophe que decidiu os dois esposos a tomarem o habito. Entre um e outro facto mediaram perto de 13 annos.

Foi em 1600 que elle partiu para a America, em 1604 que d'ali regressou, e em 1613 que se realisou o divorcio.

O que motivou a sua volta a Portugal? Qual foi a causa da separação? 

Diz o bispo de Vizeu, D. Francisco Alexandre Lobo, e confirma-o Barbosa Machado, que o trouxera arrebatadamente á patria a noticia da morte de sua filha.

Outros affirmam que viria por saber que os governadores que ultrajara já tinham sido substituídos, e que saudades da familia e da sua Almada, que tanto estremecia, o tinham repatriado.

N'esta hypothese, sua filha ainda viveria; e a sua morte, mais tarde, teria grande influencia na resolução de os paes se recolherem ao convento.

A mysteriosa causa do divorcio, interessante problema de psychologia, que tanto preoccupa aos escriptores que d'elle teem tratado, está ainda hoje para resolver. 

Seria a morte da filha unica? 

Não ha uma data que nos possa guiar. Não nenhuma citação que nos elucide. Seria, como se inclina a crer o sr. Sousa Viterbo um phenomeno de suggestão, que teria actuado no espirito dos dois, levando-os a esta especie de duplo suicidio?

É facto que, pouco tempo antes, o conde e a condessa de Vimioso se tinham separado, para professarem, ella no convento do Sacramento em Alcantara, que instituira, e elle no de S. Paulo, em Almada.

Vista do Seminário de Almada, antigo Convento Dominicano de São Paulo  Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

A coincidencia de serem os mesmos conven que Manuel de Sousa e D. Magdalena vieram a professar, a amizade e parentesco que existia entre o Vimioso e Manuel de Sousa Coutinho, a inclinação ao mysticismo da alma de D. Magdalena de Vilhena, creada e educada por uma mãe excessiváthente devota, n'uma epocha de profundas crenças religiosas, e supersticiosos terrores, que facilmente levariam o seu animo a procurar abrigo contra as tempestades da vida no convento que a condessa de Vimioso instituira e onde se escolhera, tudo teria influido no espirito dos dois esposos, já ambos no começo do inverno da vida, a procurarem no claustro paz e tranquillidade.

A apparição do peregrino, facto que aos eruditos repugna e aos poetas seduz, foi o motivo escolhido por Garrett para explicar a subita resolução do divorcio.

Tirou-o Garrett da narrativa de Frei Antonio da Encarnação, que, por ser contemporaneo dos acontecimentos, tem em favor da sua versão um grande saldo de probabilidades.

Conta elle que em 1613, estando D. Magdalena de Vilhena em Almada, lhe apparecera um peregrino que vinha da Terra Santa, trazendo novas de um portuguez que ha muitos annos vivia em Jerusalem, e que escapara aos desastres de Alcacer Kibir. 

E dando os signaes certos de D. João de Portugal, o primeiro marido, accrescentou que fôra elle quem ali o mandára.

Aterrada com tão fulminante acontecimento, contou a seu segundo marido o que se passara, e o que Frei Jorge seu irmão presenceára.

Elle então dizem que respondera: "Até agora, senhora, vivi em boa fé convosco; e creio de vós que na mesma boa fé viveste comigo; porque fio de vós que não casarieis outra vez se não tivesseis por certa a morte do vosso primeiro marido. O que convém mais é fugir para o sagrado da religião."

A este episodio, narrado por Frei Antonio da Encarnação, põe muitas reservas o Bispo de Vizeu, o sr. Sousa Viterbo e outros, que se teem occupado do caso, e attribuem ainvenção ao espirito de messianismo sebastico que inflammava as imaginações n'essa epocha.

E a phantasia popular, que esperava ver apparecer o "Desejado" e cria que elle não perecera, facilmente daria como explicação á repentina deliberação dos dois conjuges, a chegada d'um mensageiro que trazia novas do cavalleiro de Alcacer Kibir.

Não havendo provas que invalidem esta versão, e havendo em seu favor o testemunho de um contemporaneo, porque regeital-o? E porque não fundiremos na alma dos dois heroes d'essa historia os tres motivos de anniquillamento moral?

A morte d'uma filha. é a maior dôr humana. E essa dôr ter-lhes-hia quebrado as energias vitaes. 

A apparição do peregrino mensageiro do D. João de Portugal, ou elle proprio, como alvitra Garrett, seria para as suas almas a catastrophe determinante do refugio na casa de Deus.

E o exemplo dos condes de Vimioso, tão seus íntimos, ter-lhes-hia indicado o caminho. Por isso n'esse mesmo anno de 1613, deixando Almada, entraram, ella no convento de Alcantara, levando comsigo uma netasinha de sete annos, que a seguiu na clausura, elle no convento dos dominicanos de Bemfica, ondeveiu a escrever as mais harmoniosas paginas da harmoniosa lingua portugueza.

Quando depois de dominicano, Frei Luiz de Sousa escreve a sua Historia de S. Domingos, ao contar a fundação do convento de S. Paulo em Almada, por Frei Francisco Foreiro, no anno de 1569, e dando d'ella algumas noticias, deixa ainda transparecer n'essas paginas o encanto pela terra que tanto amára, e onde tanto amára.

"Sitio, diz elle do local do convento, que como é no mais alto do monte, e pendurado sobre o mar, fica como grimpa, sujeito a todos os ventos. Porém, paga-se este damno com ser senhor de um tão fermoso e tão bem assombrado horisonte, que confiadamente e sem parecer encarecimento, podemos affirmar que não ha outro tal em toda a redondeza da terra".

Vista do Seminário de Almada, antigo Convento Dominicano de São Paulo  Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Conta elle depois que por ser de tal modo formoso o panorama de Lisboa que da villa de Almada se disfructa escolheu D. Filippe II esta villa para gozar da vista da cidade, antes de n'ella entrar.

Em uma noite mandou que lhe crivassem a cidade de Lisboa de luminarias, e tão deslumbrante era o espectaculo, que Frei Luiz de Sousa accrescenta que: "estando assim ardendo sem damno, toda, ficou devendo mais ás sombras nocturnas que ao resplendor do sol".
Aqui faz a viva memória do já morto Manoel de Sousa Coutinho,
cavalleiro portuguez, como se vivo fora.

Não morreu às mãos de nenhum castelhano,
senão à do amor que tudo pôde.

Caminhante, procura saber-lhe a vida,
e lhe invejarás a morte.


in Branco, Camilo Castelo, Mosaico e silva de curiosidades historicas, literarias e biographicas, Porto, Livraria Chardron de Lélo & irmão.
Almada — convento de S. Paulo, in Almada em 1897
Imagem: Hemeroteca Digital

Annos depois, diz-se, esteve ali também o Duque de Bragança, mas com o intuito de ás occultas vir entender-se com os conjurados que em 1640 o acclamaram Rei com o nome de D. João IV. (1)

(1) Sabugosa, Conde de, Embrechados, Lisboa, Portugal-Brasil Lda., 1911

Versão integral impressa:
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte I)
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte II)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Embrechados (3 de 5)

Embrechados são os mosaicos caprichosos as incrustações variegadas feitas de seixos multicôres, de búzios e conchas, de fragmentos de louças finas, de contas e crystaes coloridos que adornavam as grutas, os nichos e alegretes dos jardins e quintas portuguezas [...]

Convento da Madre de Deus, Museu Nacional do Azulejo, Grande Panorama de Lisboa (detalhe), século XVIII.
Imagem: O Universo Numa Casca de Noz

Depois da epopéa a farça. A Rainha D. Leonor, mulher de El-Rei D. João II, é uma das mais luminosas figuras da Historia de Portugal. Bella e elegante na sua mocidade, segundo a pintam as chronicas, a sua estatura moral é de primeira grandeza, e a sua influencia decisiva na sociedade do século XVI.

Rainha D Leonor (1458-1525), José Malhoa, 1926.
Imagem:  Wikipédia

Á sua iniciativa e intelligente impulso deve Portugal a instituição das Misericórdias, a introducção da Imprensa, e, por assim dizer, o Theatro nacional.

Foi ella quem, cooperando com D Beatriz, sua mãe, appelidada a Rainha Velha, trouxe ás festas da corte o poeta Gil Vicente, o iniciador do theatro portuguez.
Depois de isto escripto, os estudos de D. Carolina Michaelis de Vasconcellos, vieram demonstrar que a designação de Rainha Velha, se deve applicar á Rainha D. Leonor e não a sua mãe. Vide Nota Vicentina II - Coimbra, 1918. 
Em 1502, uma quarta-feira, 8 de junho, representou-se na camara da Rainha D. Maria, que dois dias antes tivera um filho (o futuro D. João III), o Monologo do Vaqueiro, que se pôde considerar a primeira peça dramática com forma litteraria representada entre nós.

Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro,
Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Depois, vê-se pelas rubricas das obras do poeta, a grande influencia que na sua factura teve a Rainha D. Leonor. É perante ella que em 1504 é representado na egreja das Caldas o Auto de S. Martinho. É por seu mandado que em 1505 se representa nos Paços da Alcáçova em Lisboa, o Auto dos Quatro Tempos.

É em 1506 que em Abrantes, tendo nascido o infante D. Luiz [Duque de Beja e donatário de Almada, pai de D. António, Prior do Crato], filho de El-Rei D. Manuel, foi pelo mesmo Gil Vicente feito no serão do Paço um sermão á christianissima Rainha D. Leonor, e a seu mandado o Auto da Alma.

Pátio do Prior, cuja construção consta ter sido ordenada por D. Luiz,
fotografia de Júlio Diniz,década de 1950.
Imagem: Visita Virtual Rotas de Almada

E ás representações que a ella directamente não eram dedicadas, ou por seu mandado feitas, assistiu muita vez como protectora que era do poeta, e como principal elemento da animação e brilho dos serões reaes, a cuja organisação já presidia em tempo de seu marido, nos Paços de Santarém, de Setúbal, etc.

Nascimentos de Principes, casamentos reaes, recepções e despedidas, eram quasi sempre acompanhadas com alguma representação do Gil, que fazia os autos a El-Rei. 

E muitas vezes, sem motivo de festa, ou acontecimento publico, e unicamente por desfastio nas continuas mudanças da Corte, que fugia aos assaltos da peste, tão frequente n'essa épocha, Gil Vicente representava um Auto, ou uma Farça que o seu génio animava com a graça viva das concepções, com o engenho dos argumentos, com a critica mordente dos costumes, com o desenho dos caracteres, com o bem achado das situações.

Foi durante um d'aquelles recrudescimentos de peste em Lisboa, que a Rainha D. Leonor, em 1509, se retirou para Almada. E alli, fiel ás suas predilecções, chamou Gil Vicente para lhe representar um auto.

Lisboa c. 1500–1510, Crónica de Dom Afonso Henriques, Duarte Galvão.
Imagem: Wikipédia

Acudiu elle prompto ao chamamento, e alli mesmo compoz a farça chamada o Auto da índia. Diz a rubrica assim: "Á farça seguinte chamam Auto da Índia".

"Foi fundado sobre que hua mulher, estando já embarcado para a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desviado, e que já não ia, e ella, de pezar, está chorando. Foi feita em Almada, representada á muito catholica rainha D. Leonor, era de 1519."

Esta data está errada na edição de Hamburgo, pois que na edição de 1562 se lê: "Era de MDIX." E assim deve ser. Em 1510 ainda a Rainha alli estava, quando foi do processo de Vasco Abul, como adeante veremos. Accresce também que n'um dialogo d'esta farça a Moça diz: 

Trez annos ha Que partiu Tristão da Cunha.

Ora a partida da armada de Tristão da Cunha para a Índia, foi em abril de 1506, O que dá positivamente os trez annos em 1509.

Diz o sr. Theophilo Braga que o poeta dá a entender que esta farça era já conhecida do vulgo por que n'ella se diz: Á farça seguinte chamam Auto da índia.

Salvo o devido respeito ao douto professor, parece-nos que aquelle dizer não indica senão que ao tempo que o poeta, ajudado por sua filha Paula Vicente, a Tangedora, coordenava as suas obras, a esta farça, que já era então muito conhecida, chamavam Auto da índia. Como se sabe, n'esse período inicial do theatro raramente se repetia nas representações a mesma peça. E na rubrica d'esta claramente diz o poeta: Foi feita em Almada.

Gil Vicente, em muitos dos typos de seu theatro, é o precursor de Moliére. É fácil o parallelo, já mais de uma vez apresentado, entre os dois génios. Apontam os mesmos ridículos, como na farça dos Fisicos, em que o nosso poeta, com dois séculos de avanço, enche de epigrammas uma classe depois tão caricaturada pelo comediographo francez. Um e outro debicam no clero e na nobreza. E n'esta farça da Índia, as figuras da Ama e do Marido são perfeitamente de um Moliére do século XVI.

Algumas figuras do teatro Vicentino.
Imagem: AVM

Como vimos na rubrica, a anedocta sobre que a farça assenta, tomada nos costumes portuguezes a que as partidas das armadas para a índia tinham dado feições novas, põe em relevo um facto decerto frequente na classe baixa em que elle se passa; e confirmando o provérbio que diz: les absents ont toujours tort, aponta com graça e ironia a fragilidade e a perfídia do coração feminino.

Personagens são apenas cinco: A Ama, que rejubila com a partida do marido para a índia. A Moça — creada acomodatícia, que lhe diz:

Dae-me alviçaras, senhora, 
já lá vae de foz em fora,
(Ama ) — Dou-te uma touca de seda,
(Moça) — Ou quando elle vier
Dae-me do que vos trouxer.

Figuram mais dois galantes, um castelhano e outro portuguez, o Lemos, que, aproveitando a ausência do marido e a leviandade da mulher, se introduzira na sua habitação, com seu assentimento, e finalmente o marido, que chega bem fora de propósito e bem pouco desejado, mas ainda a tempo talvez de não ter ardido Troía, e de ouvir de sua mulher os hypocritas protestos de affeição.

N'um dialogo rápido, em versos cheios de conceitos, e com a genuína graça portugueza, Gil Vicente define promptamente os caracteres dos cinco, e desenvolve a anedocta sem delongas que enfastiem.

A Ama diz á Moça, sua confidente:

Quem se vê moça e formosa, 
Esperar pela ira má, 
Hi se vae elle a pescar Meia legoa pelo mar, 
Isto bem o sabes tu 
Quanto mais a Calecut: 
Quem ha tanto de esperar?
...
Para que he envelhecer, 
Esperando pelo vento? 
Quant'eu por mui necia sento, 
A que o contrario fizer. 
Partem em Maio daqui 
Quando o sangue novo atiça...

E ella, moça e formosa, a quem o sangue novo atiça, sente com prazer que pela escada lhe sobe o castelhano, que emphaticamente se declara quando ella lhe pergunta:

(Ama) — Bem que vinda foi ora esta? 
(Cast.) — Vengo aqui em busca mia, 
Que me perdi en aquel dia 
Que os vi hermosa y honesta.

Continua o castelhano a alardear o seu sentimento:

Supe que vueso marido Era ido. 
Al diablo que lo doij 
El desesfrado perdido. 
Que mas índia que vos, 
Que mas piedras preciosas, 
Que mas alindadas cosas 
Que estardes juntos los dos?

Ella defende-se com requintado coquettismo e acaba por lhe conceder uma entrevista ás nove da noite, dizendo-lhe que dê signal com uma pedrinha na janella.

Apenas elle sahe, entra o Lemos, que:

Andava aqui.
Meu namorado perdido, 
(Moça) — Quem ? O rascão do sombreiro? 
(Ama) — Mas antes era escudeiro.

E o Lemos, que se declara:

Vosso Captivo, senhora, 
(Ama) — Jesu! Tamanha mezura!
Sou a rainha, por ventura ? 
 (Lem.) — Mas sois minha imperadora!

E assim piegas e alambicado, continua cortejando, quando se ouvem na janella as pedrinhas do castelhano. Querem metter o Lemos para a cozinha, o castelhano impacienta-se, e depois de peripécias varias, exclama a moça:

Quantas arles, quanta manha, 
Que sabe fazer minha ama, 
Um na rua outro na cama... 
E logo partiu a armada 
Domingo de madrugada, 
Não pôde muito tardar, 
Nova se ha de tornar 
Noss'amo pêra a pousada.


Três annos ha 
Que partiu Tristão da Cunha.

Volta d'ahi a pouco esbaforida e exclama:

(Moça) — Ai, Senhora! Venho morta:
Noss'amo he hoje aqui.
(Ama) — Má nova venha por ti.
Perra, excommungada, torta.

E quando depois o marido entra, esperando encontrar n'ella mulher de recato, ella descreve-lhe o que soffreu com a ausência:

Jesu! Eu fiquei finada,
Três dias não comi nada.
A alma se me queria ir.

Juro-vos que de saudade 
Tanto de pão não comia 
A triste de mi cada dia. 
Doente era uma piedade.

Aonde não ha marido 
Cuidae que tudo é tristura, 
Não ha prazer nem folgura 
Sabei que é viver perdido, 
Alembrava-vos eu lá?
(Mar. ) — E como?
(Ama.) — Agora, aramá 
Lá ha índias mui formosas; 
Lá faríeis vós das vossas 
E a triste de mi cá. 
Encerrada n'esta casa... 

Com que conhecimeuto do coração humano nâo é lançada esta nota pérfida destinada a socegar o confiado marido, e a lisongeiar-lhe a vaidade! 

E com estas fallas lá o leva a ir juntamente com ella ver a nau que o trouxera, e assim, diz Gil Vicente, na rubrica, "fenece esta farça".

Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens, Retábulo de Santa Auta, c. 1522, MNAA.
Imagem: (In)Cultura

Divertiu ella por certo, distrahiu, e alegrou o escolhido auditório dos refugiados em Almada, por causa da peste, que ardia defronte em Lisboa. Mas nâo deixa de ser curioso ver uma Rainha, já a esse tempo tocando nos 52 annos, entregue habitualmente á vida severa e recatada do seu palácio de Enxobregas, e o escol da sociedade que a acompanhava comprazerem-se e folgarem com as aventuras algo libertinas da astuta e leviana mulher do embarcadiço, com a ingénua e cega confiança d'elle, e com os requebros amorosos dos dois rufiões, tudo expresso em linguagem crua e sem rebuços.

Mestre do Retábulo de Santa Auta, Chegada das Relíquias de Santa Auta (detalhe),
Cristovão de Figueiredo?, c. 1520, MNAA.
Imagem: do Porto e não só...

É que no século XVI havia menos convencionalismo. Diziam-se as coisas pelos seus no mes, sem que escandalisasse ouvir o que hoje se chamaria um palavrão. Os personagens de Gil Vicente fallam deante da corte com a liberdade, isenta de circumloquios, com que hoje as regateiras e collarejas da praça da Figueira discutem entre si.

E não só a hinguagem era rude, e as pragas, as chufas, as exclamações brutaes eram pronunciadas claramente, como também a ideia do pudor era diversa da que hoje impera.

Gil Vicente entrava vestido de Vaqueiro, na camará em que dois dias antes a Rainha D. Maria tinha dado á luz um filho, e referia-se sem euphemismo ao facto physiologico que n'esse quarto se passara.

Os amores dos clérigos, as proezas dos frades rufiões, a interferência das alcoviteiras, e os infortúnios dos mal maridados, eram contados por claro, a Rei, Rainha, Infantes e cortezãos. Mas não era só Gil Vicente quem tomava estas liberdades nas suas peças.

Nos serões do Paço, onde se discutiam subtilezas d'amor e se versejava sobre as intrigas da corte, não só as palavras eram ciaras, — e as expressões d'então parecem hoje indecorosas, — mas os factos sobre que se faziam apodos e se rimavam coisas de folgar, eram, segundo o critério d'agora, sujas ou escabrosas.

Quem quizer ler no cancioneiro de Resende as trovas do Brazeiro, as trovas do Conde de Vimioso ao Barão do Alvito, porque vindo com El-Rei de Almeirim, se lhe destemperou o estômago, etc, terá uma idéa da pouca limpeza na linguagem corrente d'esse tempo.

E quem lêr as trovas de Fernam da Silveyra a D. Rodrigo de Castro, que beijou uma dama, ou as de D. Joam de Meneses, e vários poetas a outra dama que beijava D. Guiomar de Castro, terá ideia das surprezas d'aquelle D. Rodrigo, e das proezas d'aquella dama de saphica memoria.

Mas o que hoje faria corar muitos que ouvissem taes desmandos u'uma sala, era admittido como fina essência de espirito em toda aquella épocha, e n'esse serão do paço d' Almada, no anuo de 1509.

Onde se aposentava a Rainha D. Leonor, n'essa villa? E onde era representada perante ella e a sua corte a farça da índia? Palácio com grandeza e magnificência não havia. 

Durante toda a Edade Média a corte deslocava-se muito frequentemente, e a não ser em Lisboa, Santarém, Cintra, Estremoz, Coimbra, Almeirim, Setúbal e Évora, e ainda outras terras onde havia paços verdadeiramente reaes, de resto escolhia-se uma casa boa ou soffrivel para aposentação dos Reis, e a comitiva accomodava-se pelas habitações dos principaes d'essa localidade.

Em Almada não havia paço, mas é de presumir que a Rainha D. Leonor teria ali, herdada de sua mãe a Infanta D. Beatriz, alguma morada de casas pertencentes ao almoxarifado. 

Lisbona citta principale nel regno di Portogallo fu presa dall'armatta con l'esercito del re catolico all ultimo d'agosto l'anno 1580, Mario Cartaro.
Imagem: Universität Salzburg

E foi n'essas casas, de que hoje não ha vestígios, onde se refugiou da peste, onde hospedou Gil Vicente, e os comediantes, e onde reuniu a sua corte, para ouvir e se deleitar com as graças da Farça da índia. Foi alli também que no anno seguinte se deu o caso que na litteratura ficou com o nome de Processo de Vasco Abul. 

Nos serões do Paço era vulgar debaterem-se entre poetas, ou simples versejadores, algumas questões amorosas, anecdotas pessoaes, casos da Corte em forma de pleito judicial, ou processo o que foi para assim dizer o rudimento de uma espécie de arte dramática. 

No Cancioneiro de Resende encontram-se vários torneios métricos tratados por esta forma como a questão do Cuidar e Suspirar, esta de Vasco Abul e outras mais. 

Quer-se ir procurar a origem d'esta maneira de versejar na intenção que tiveram os juriconsultos da Itália (depois da passagem do papado para Avinhão) de tornarem conhecidas as formas do processo, compondo debates entre grandes personagens da antiguidade, que se atacavam e defendiam pelo ministério dos procuradores e advogados, usando dos recursos das discussões judiciarias.

O processo de Vasco Abul, que se debateu nos seroes da Rainha D. Leonor, estando ella ainda em Almada, em 1510, tem esta forma usada nas discussões dos tribunaes, e n'ella entram vários poetas, como vamos vêr.

O que deu origem a este caso diz-nos uma rubrica do cancioneiro geral que reza assim: 

"Anrique da Mota a Vasco Abul, porque andando uma moça baylando em Alemquer, deu-lhe, zombando, uma cadeia d'ouro, e depois a moça não lh'a quiz tornar, e andaram sobre isso em demanda, e veo Vasco Abul falar sobre isso ha raynha, estando em Almada e haly lhe fez estas trovas."

Vasco Abul era um cavalleiro que vinha de nobre gente, e parece certo ser aquelle mesmo Abul que annos antes em 1488, fora como capitão d'uma caravella na armada da "ida e passagem de D. João de Bemoim" o príncipe Jalofo, que visitara D. João II. 

Lisboa, Chafariz d’El-Rey c. 1570- 1580, autor desconhecido.
Entre outros detalhes, um africano a cavalo com o hábito da Ordem de Saniago.
Imagem: Lisboa, cidade africana

A essa opinião se inclina o erudito escriptor o sr. Anselmo Braamcamp Freire. E a nós parece-nos essa opinião confirmada nos versos: 

Andais ledo cm grão guisa 
Como quem veio da Myna.

Não era portanto d'uma grande mocidade o Vasco Abul, posto que fosse bem disposto, isto é, bem parecido ainda, quando, segundo dizem as trovas: 

Uma gentil bailadeira 
De Alemquer fermosa, 
gentil mulher, 
me chofrou d'esta maneira: 
Por me não parecer feia, 
vendo a bailar um dia, 
lhe mandei por boa estreia 
uma cadeia que eu no pescoço trazia. 
Depois, quando a quizera recolher, 
quizeram-se fazer crer 
que eu por sua lh'a dera. 

O folião do velhote, vendo a mocetona dançar, e sentindo ferver-lhe o sangue, com amor, galanteria ou concupiscência, tira do pescoço uma cadeia d'ouro que valia "cincoenta bons cruzados", cerca de 130$000 réis, e enfia-a no pescoço da rapariga, que das trovas se parece deduzir ser órfã, e que decerto tomaria o offerecimento como declaração de namorado.

Ella, segundo a alegação que elle depois offerece: 

Bailava bailo vilão 
ou mourisca 
mas chamo-lh'eu carraquisca, 
Mais viva que tardião.

O caso é que elle, acabada a dança, quiz recuperar a sua cadeia, mas a bailadeira recusou-se a dar-lh'a, e começando assim a demanda, o velhote veiu queixar-se á Rainha D. Leonor, a Almada, onde Aurique da Motta, poeta satyrico, e mais outros ajudadores, lhe dirigem trovas n'uma troça que o deixou mal ferido:

Que buscaes cá nesta ierra? 
Com tal sul
Meu senhor Vasco Abul? 

E o poeta das trovas figura um dialogo em que o Abul responde defendendo-se. Parece terem-lhe declarado guerra, allega, mas tudo são mexericos ou intrigas que lhe levantaram.

Replica Anrique da Motta:

Vós andais esmorecido, 
Eu não sei que vós haveis,

Responde o Abul: 

É um caso tão subido 
Que duvido 
Se vós o entendereis 

Motta:

Não cureis de duvidar 
E dizei-m'o

Abul:

Não no digo porque temo 
Que hão de mim zombar.

E tinha razão de temer que zombassem d'elle, porque este dialogo todo, composição do Motta, revela notável graça pela facilidade em improvisar. E' uma troça pegada ao cavalleiro e capitão da caravella que depois de, em um Ímpeto de enthusiasmo, ter sido generoso com a ladina bailadeira, se arrepende, e quer voltar atraz, tirando-lhe a cadeia.

Depois, quando quizera recolher, 
Quizeram-me fazer crer 
Que eu por sua lh'a dera. 

Responde-lhe o Motta: 

E vós ficais d'ahi honrado, 
Não deveis dizer ahi ai, 
Que o homem bemcriado Namorado 
O bom é ser liberal. 

Mas de liberal e generoso é que Abul não tinha fama, pois no seguimento do processo é sempre apodado pela sua avareza. Dizem-lhe que nâo crie fama de escasso e mais: 

Usai liberdade' 
e quiçá, 
se vos não ama 
Essa dama 
amarvos-ha de verdade. 
E hi levar boa vida 
A vossa casa, 
qu'isto é vergonha rasa 
Avareza conhecida. 

Aperta-o tanto o Motta que o obriga a declarar: 

Ataes me por tal 
maneira que me pesa, 
e nâo posso achar defesa 
que preste, posto que queira 
a verdade não me vale, 
Por escasso me apregôo, 

E acabando em "vilancete", exclama Anrique da Motta: 

Todos vós outros, senhores, 
Que sabeis aqueste feito, 
Sede meus ajudadores.

Estes ajudadores são vários. Uns, poetas da corte, outros poetas de profissão, como Gil Vicente, que também entra n'este processo. Outros são empregados na casa da Rainha D. Leonor, como João Alvares, o secretario, Sebastião da Costa, o cantor, Branca Alves, crystaleira, e até o Mestre Gil, que parece ao sr. Theophilo Braga ser o celebre ourives, auctor da custodia dos Jeronymos, que por muitas vezes tem passado por ser o próprio Gil Vicente do theatro.

Os Doze Apóstolos da Custódia de Belém, Gil Vicente, 1506.
Imagem: MNAA

O sr. Theophilo Braga nos seus recentes estudos affirma ser um primo do poeta que foi ourives também da Rainha D. Leonor, que tinha o mesmo nome, e que também metrificava, como também ao poeta não eram estranhas as regras da arte da ourivesaria. E d'aqui nasceu facilmente a confusão. 

E um dos argumentos do sr. Theophilo Braga para a existência da dualidade do ourives e do poeta é, n'este processo de Vasco Abul, apparecer uma copla de Mestre Gil, ao passo que adeante se lê no cancioneiro e n'este mesmo processo o parecer de Gil Vicente, sem lhe chamar Mestre.

Ao sr. Anselmo Braamcamp parece que este Mestre Gil será o cirurgião-mór a quem os documentos sempre dão esta designação e que morreu em 1511.
Depois de ter apparecido este artigo publiquei o — Auto da Festa — obra desconhecida de Gil Vicente, que fiz anteceder de uma explicação. A propósito d'este livro, escreveu no Jornal do Comercio, com o pseudonymo de Silex, o erudito escriptor o sr. Anselmo Braamcamp Freire que tão valiosos serviços tem prestado aos estudos históricos, uma serie de artigos intitulados: — Gil Vicente — Poeta Ourives. Aproveito o ensejo para agradecer as lisonjeiras referencias que faz ao meu ensaio.
Agradeço egualmente a forma como aprecia as minhas conjecturas e hypotheses, ainda mesmo quando d'ellas diverge. Feliz o livro que gera outro livro. N'este caso congratulo-me duplamente, pois a minha publicação fez nascer os artigos que tão brilhantemente demonstram a identificação do Poeta com o Ourives.
Fechado aqui esto parenthesis, que tem o seu interesse, e acceitando que o Ourives da Rainha ou o cirurgião-mór também fosse trovador com o nome de Mestre Gil, vejamos quem são os outros ajudadores. 

É Agostinho Giram, é Affonso Fernando Montarroio, é Diogo de Lemos, é Diogo Gonçalves, e Fernão Dias, é finalmente o próprio Gil Vicente, que dá o seu parecer com uma arte e uma firmeza que demonstra a sua superioridade sobre os precedentes, a maior parte dos quaes são versejadores de occasião n'este divertimento palaciano, e que não mais figuram entre os poetas do tempo. 

Todos estes entraram no processo, por assim dizer, como testemunhas de accusação, e os seus depoimentos teem mais ou menos interesse. Um, porém, o do cantor Sebastião da Costa, é digno de reparo, pois que diz: 

Andais ledo, 
em grão guisa 
Como quem veiu da Myna, 
Galante, cheio de frisa, 
Como vossa gentil divisa 
De cruz vermelha mui fina 
E pois já se determina 
Que percais este collar. 
Não vos deve de lembrar. 

O facto de dizer: como quem veiu da Myna, isto é de S. Jorge da Mina que fica ao sul do paiz de Jalofos, para onde partira em 1480 a caravella commandada por um Abul, confirma, emquanto nós, a supposiçâo do sr. Anselmo Braamcamp, de que este Abul do processo é o mesmo da viagem, o que faz com que elle em 1510 fosse já próximo dos sessenta, concordando isso com o verso que Anrique da Motta lhe põe na bocca: 

pois que sei e vós sabeis 
que sei mais por ser mais velho...

É impossível trasladar aqui todo o processo embora curioso. E dos "embargos de Anrique da Motta pêra se non entregar o colar a Vasco Abul, ffeito a rraynha dona Lyanor", apenas transcrevemos o começo que diz:

Senhora, 
Bem posso eu com razão 
por ser dos órfãos juiz 
acceitar a tal acção: 
o direito assim o diz 
nas Sergas d'Espradiam 

Estes últimos dois versos sâo notáveis, porque determinam por assim dizer a data do processo, conforme nota o sr. Theophilo Braga, que primeiro o julgou passado em 1493, e que depois se convenceu de que o foi em 1510, pois é d'esse anno a primeira edição das conhecidas — "Sergas d'Esplandia". 

Segue-se o parecer de Gil Vicente, onde facilmente se reconhece la griffre du lion. Começa elle: 

Senhora, 
Vossa Alteza me perdoe 
eu acho muito danado este feito processado, 
em que manda que razoe, 
vae a cura tão errada, vae o feito tão perdido, 
vae tão fora da estrada, 
que a moça condenada 
Vasc'Abul fica vencido. 

Como quem diz que se a sentença obrigasse a moça bailadeira a restituir o collar, quem moralmente ficava vencido e condemnado era Vasco Abul. 

E de facto, na réplica, que depois do parecer de Gil Vicente, apresenta Anrique da Motta, acaba por dizer-se: 

E tanto que lhe foi dado 
não seja aqui mais ouvido, 
seja d' aqui degradado 
não se chame namorado, 
pois d' amor não foi vencido. 
Mas eu certo não duvido 
por isto que se cá fez, 
qu'elle não seja atrevido 
em praça nem escondido 
a emprestal-o outra vez. 

Assim, esse Vasco Abul, nobre e cavalleiro, que commandára uma caravella, e que navegara pelos mares d'Africa até á costa da Mina, é crivado de chufas e de motejos, troçado, alvo da ironia dos poetas, dos cantores, e de crystalleiras, e finalmente escorraçado d'Almada, só porque faltara ás lei da galanteria, tão presadas n'esses séculos de cavallaria, em que o culto da mulher era a lei suprema.

Portogallo, Lisbona dal promontorio.
Gravura executada por Terzaghi sobre desenho de Barbieri reproduzido de um original do século XVII.

E o pobre Vasco Abul, que merecia talvez pelos seus feitos ter o nome registado entre os dos nossos navegadores, fica apenas conhecido com o processo de Almada, por ter negado um collar de cincoenta cruzados a uma bailadeira d'Alemquer! (1)


(1) Sabugosa, Conde de, Embrechados, Lisboa, Portugal-Brasil Lda., 1911

Versão integral impressa:
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte I)
Almada pelo conde de Sabugosa, em 1905 (parte II)

Leitura relacionada:
Copilacam de todalas obras de Gil Vicente...

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