quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Postais fotográficos J. Lemos

A reportagem regional da coleção de postais J. Lemos descreve aspetos e transformações urbanas da então vila de Almada, durante as décadas de 1950 e 1960.

Almada, Miradouro (detalhe), J Lemos, 07, década de 1950
Imagem: Delcampe

Lamentavelmente não dispomos de qualquer referência relativa à pessoa de J. Lemos, pelo que nos limitaremos à análise da edição dos postais fotográficos. Como também não é do nosso conhecimento outras edições fora do contexto já referido, supomos que se trata de um fotógrafo independente, ou de um editor local, provavelmente com estúdio fotográfico, estabelecido em Almada à semelhança da Foto Cristo Rei, que fotografou para o folheto da inauguração das novas instalações dos Correios, da Administração Geral dos CTT,  em 1956).

Almada, Praça da Renovação, ed. J. Lemos, 29, década de 1950.
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna... Freguesia de Almada

Se nos determos nos motivos e apresentação, é possível que J. Lemos, no caso da edição de postais, tenha trabalhado com, e/ou para, outros editores nacionais, tais como os Fotoselos ROTEP ou a Postalfoto que produziu postais para as papelarias Jubal e Valverde, ou que simplesmente, do mesmo modo, tenha seguido tendências mais recentes.

Almada, Vista Parcial, J Lemos, 31, década de 1960.

A composição dos objetos representados respeita e destaca os motivos e o contexto, evidenciando a sua qualidade documental.

Almada, Mercado, ed. J. Lemos, 103, década de 1950.
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna... Freguesia de Almada

No aspeto técnico, nomeadamente quanto aos enquadramentos, a linha de horizonte, ou a perpendicular a esta no ponto de fuga, em algumas das imagens, não respeitam o alinhamento paralelo com as margens, o que as torna menos profissionais, dificultando a sua leitura.

Almada, Mercado, ed. J. Lemos, 103 (imagem corrigida), década de 1950.
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna... Freguesia de Almada

Foram distribuídas no mercado postais de diversas séries agrupadas por localidade, Almada e Cacilhas, numerados em arábico de forma crescente.

A numeração aparecia na margem inferior do postal, seguida da localidade e de uma pequena descrição, sendo que um mesmo tema, nas diversas edições poderia, não ser reeferido pelo mesmo número da edição precedente.

As reproduções apresentavam a assinatura J. Lemos no canto inferior esquerdo no corpo da fotografia. O tipo de letra usado, foi, na maioria dos casos, cursivo e no corpo da fotografia nas primeiras edições, normal em margem própria nas posteriores ou em etiqueta sobreposta no corpo da fotografia, ou ambos, respetivamente assinalados na lista abaixo: c, n ou a.

O bordo dos postais apresenta-se recortado nas primeiras edições e liso nas posteriores.

Almada, Rua Bernardo Francisco da Costa, J Lemos, 68, década de 1960.
Imagem: Delcampe

  • 001 n Almada Vista do miradouro
  • 002 c Almada Praça da Renovação
  • 003 n Almada Seminário
  • 004 n Almada Jardim Comandante Sá Linhares
  • 006 n Almada Avenida D João I xx
  • 006 n Almada Vista Parcial
  • 007 n Almada Miradouro
  • 007 n Almada Miradouro (edição de natal e Ano Novo)
  • 008 n Almada, Jardim do Castelo
  • 008 n Almada, Jardim do Castelo (edição de Natal e Ano Novo)
  • Almada, Jardim do Castelo, ed. J. Lemos, 08, década de 1960.
    Imagem: Delcampe
  • 009 n Almada, Jardim do Castelo
  • 010 c Almada Castelo
  • 011 i  Almada Jardim Sá Linhares
  • 012 i  Almada Durante as Festas de S joão
  • 013 n Almada Durante as Festas de S joão
  • 016 i  Almada Avenida D Afonso Henriques
  • 018 i  Almada Avenida D Afonso Henriques
  • 021 n Almada Jardim Comand. Sá Linhares
  • 021 n Almada Vista Parcial
  • 027 n Almada Câmara Municipal
  • 028 n Almada Mercado
  • 029 n Almada Praça da Renovação
  • 031 n Almada Vista Parcial
  • 057 n Cacilhas
  • 061 i  Almada Rua Francisco Andrade
  • 064 i  Almada Largo das Andorinhas
  • 068 i  Almada Rua Bernardo Francisco da Costa
  • 075 a Almada Largo Gil Vicente
  • 103 a Almada Mercado
  • 105 a Almada Praceta de Olivença
  •  
  • s/n  a Almada Avenida D Afonso Henriques
  • s/n  a Almada Av D Nuno Alvares Pereira década de 1950 02
  • s/n  a Almada Jardim Público
  • s/n  i  Almada Largo Fernão Lopes
  • s/n  a Almada Praça da Renovação
  • Almada, Praça da Renovação, ed. J. Lemos, s/n, década de 1960.
  •  
  • 016 n  Cacilhas Estaleiro
  • Cacilhas, Estaleiro, ed. J. Lemos, 16, década de 1960.
    Imagem: Delcampe
    017 n  Cacilhas Vista Geral do Cais
  • Cacilhas, Estaleiro, ed. J. Lemos, 17, década de 1960.
  •  
  • s/n  a Cacilhas Vista Parcial


terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Toponímias urbanas oitocentistas

Em princípios do século XIX Cacilhas estendia-se quase duas centenas de metros ao redor da pequena baía.

Praia de Cacilhas, The Harbour of Lisbon, Charles Henry Seaforth (1801 - c. 1854).
Imagem: reprodução em colecção particular

O traçado das ruas principais pouco diferia do atual:
rua das Terras (Carvalho Freirinha);
rua das Terras da Igreja (beco do Bom Sucesso);
rua Direita (Cândido dos Reis);

Rua Direita — Cacilhas, ed. desc., década de 1900
Imagem: Delcampe, Oliveira

rua da Oliveira (Comandante António Feio).

[...]

O caminho da Pedreira [azinhaga, e mais tarde calçada, que corresponde à atual rua Elias Garcia] tinha poucas casas e a vila começava praticamente junto à travessa da Pedreira que vai ao castelo;

Almada, Largo do Poço em Cacilhas (detalhe), Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 05, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

as casas mais a poente situavam-se onde é hoje a Academia Almadense. 

Nenhuma outra comunicação importante leste-oeste existia a sul desta estrada.

Almada, Vista Geral (tomada do Campo de S. Paulo), ed. desc., década de 1940.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Da cerca subsistem uma parte a norte, entre o Palácio da Cerca e a rua da Academia Almadense, junto ao sítio onde em 1843 se construira uma praça de touros; do lado sul apenas um troço limitando os quintais das casas da rua Direita.

Almada, Lado Sul, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 09, década de 1900.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Nos primeiros anos do século XIX as ruas principais eram:
rua Direita (D. José de Mascarenhas e Capitão Leitão);

Almada. Rua Direita e Egreja de S. Paulo Câmara Municipal, ed. Martins/Martins & Silva, 31, c. 1900
Imagem: Fundação Portimagem

rua da Judiaria (mantém o nome);

Almada, rua da Judiaria, Barata Moura, 1961.
Imagem: Câmara Municipal de Almada

rua que vai dar à Boca do Vento (Trigueiros Martel?);
rua que vai da Boca do Vento à Praça Velha (Bulhão Pato);
rua da Lage (Rodrigues de Freitas);
rua do Passa Rego (Latino Coelho);
rua do Açougue (Henriques Nogueira);
rua ou azinhaga das Courelas (José Fontana);
rua do Campo (travessa do Campo);
rua do Forno (Augusto Maria da Silveira);
rua da Padaria (mantém o nome);
praça Nova (praça Luís de Camões);

Almada, praça Nova e rua Direita, década de 1890.
Imagem: Hemeroteca Digital

praça Velha (Largo José Alaíz).

No último quartel do século XIX construiu-se a nova estrada Cacilhas - Trafaria que aproveitou parte das antigas azinhagas.

Planta do Rio Tejo e suas margens (detalhe), 1883.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A sul de Almada abriu-se um troço inteiramente novo desde onde é hoje a praça Gil Vicente [...] (1)


(1) PEREIRA DE SOUSA, R. H., Almada, Toponímia e História, Almada, Biblioteca Municipal, Câmara Municipal de Almada, 2003, 259 págs.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Mappa de Portugal antigo e moderno

Lisboa. Esta barra, onde desemboca o Tejo, está no meio de duas fortalezas, chamadas vulgarmente de S. Gião, ou Julião, e S. Lourenço, ou Torre do bogio, que outros dizem Cabeça seca, em distancia huma da outra de 980 passos geométricos de sete palmos e meyo cada passo.

Mappas das provincias de Portugal novamente abertos e estampados em Lisboa, João Silvério Carpinetti, 1769.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Em tempo do insigne Geógrafo Estrabo tinha a boca desta barra 2500 passos ; agora se tem estreitado muito mais, e por causa dos cachopos, que existem no meyo della, se faz difficil a entrada, a qual se divide em dous canaes: o que toma por entre os cachopos, e a fortaleza de S. Gião, chama-se canal da terra, e he perigoso:

Descrição e plantas da costa dos castelos e fortalezas..., Felippe Tersio, 1617.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

o que vay por entre os cachopos da Trafaria, e a Cabeça seca, ou fortaleza de S. Lourenço , chama-se carreira da alcaçova, e he a mais segura, porque tem 500 braças de largo, e 9 de alto com bom fundo.

Descrição e plantas da costa dos castelos e fortalezas..., Felippe Tersio, 1617.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Entrando pela barra dentro, a duas léguas se vê a formosa torre de Belém, obra delRey D. Manoel, fundada 200 passos sobre o Tejo; e continuando a pequena distancia de huma legua da parte do Norte, se vê a grande Cidade de Lisboa: 

Vista da parte oriental de Lisboa, Alexandre Jean Noel, início da década de 1790.
Imagem: FRESS

mas como o Tejo forma aqui o mais famoso porto do mundo, e hum grande seyo, fazendo-se navegável no espaço de vinte léguas, posto que não continue na mesma largura, daremos noticia de todos os portos, que ha desde a barra para dentro do Tejo de huma, e outra parte.

Portos do Tejo da parte do Sul:

Trafaria; Portinho de Costa; Torre velha; Porto brandão; Manatega; Alfansina; Arrábida;

Vista da parte ocidental de Lisboa, Alexandre Jean Noel, início da década de 1790.
Imagem: FRESS

Arialva; Fonte da pipa; Cacilhas; Caramujo; Motella; Oliveirinha; Corroyos; Santa Martha; Talaminho; Amora; Rio dos Judeos; Arrentella; Seixal; Rosario; Porto dos PP. Paulistas; Aldeya; Cabo da Linha; Coina; Fornos delRey; Palhaes; A Telha; A Verderena; Barreiro; Lavradio; Barra a barra; Alhos vedros; Moita; Esteiro furado; Sarilhos grandes; Sarilhos pequenos; Aldeya Galega; Lançada; Quinta de D. Maria; Samouco; Alcouxete; Barroca d'Alva; Pancas; C,amora Correa, Benavente; Salvaterra; Escaroupim; Mugem; Santa Martha; Almeirim; Chamusca; Pinheiro; Moita; Barca; Brito; Santa Margarida; Crucifixo; &c.

7
Bateis d'Agoa a'ssima
Bateaux du haut Tage, ils transportent des provisions à la
Ville et changent aussi de voile come dans la Fig. A
Imagem: Todos os barcos do Tejo

Portos do Tejo da parte do Norte:

S. Gião;

Uma chalupa armada emergindo da foz do Tejo passado o Bugio, Thomas Buttersworth (1768 – 1842).
Imagem: Bonhams

Oeiras; Caxias; Carcavelos; Paço d'Arcos; Cartuxa; Boa Viagem; Santa Catharina; Pedrouços; Belém;

Iate Emily de través para o seu proprietário, Lord Belfast, subir a bordo, ao largo da Torre de Belém,
John Christian Schetky (1778 - 1874).
Image: artnet

Junqueira; Santo Amaro; Alcântara; Pampulha; Santos velhos; Caes do Tojo; A Dizima; Remolares; Corpo Santo; Caes da Pedra; Alfama; Caes do Carvao; Bica do Sapato; Santa Apollonia; Cruz da Pedra; Madre de Deos; Xabregas; Grilo; Beato António; Poço do Bispo; A Martinha; Braço de prata; Cabo rubo; Unho de D. Garcia; Marvilla; Olivaes; Sacavém.

Aqui desagua este rio no Tejo por huma grande boca, fazendo huma protundissima foz; e ficando quasi ao Norte da Cidade, volta contra o Noroeste, onde fe encontrão os vistosos portos de Unhos, Frielas, Mealhada, Granja, Marnotas , Santo António do Tojal, &c.

Continuando pela marinha direita, segue-se:

Massaroca; Santa Iria; Povoa; Alverca; Alhandra; Villa-Franca; Povos; Castanheira; Villa-Nova; Azambuja; Casa branca; Valada; Porto de Mugem; Santarém; Azinhaga; Labruja; Cardiga; Barquinha; Tancos; Payo de pelles; Praya; Punhete; Redemoinhos; Abrantes.

Tornando agora a seguir o progresso da marinha do Oceano Lusitanico, prossegue a Costa da Roca de Cintra até o Cabo de Espichel na distancia de oito léguas ao Sudoeste.

Linha de costa da Torre do Bugio ao Cabo Espichel (fotomontagem).
Observam-se as elevações moinhos do Chibata, Monte Córdova (Serra de S. Luís) e Serra da Arrábida, conforme descrito no Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa, Francisco Maria Pereira da Silva, 1857.
Imagem: AVM

Em outro tempo se chamou Promontóio Barbarico, habitação dos povos Sarrios. No cimo desta terra está hum Templo dedicado à milagrosa Imagem de Nossa Senhora do Cabo.



(1) Castro, João Baptista de, Mappa de Portugal antigo e moderno, (in Archive org) Lisboa, officina de de Francisco Luiz Ameno, 1762, 3 vol.

Artigo relacionado:
Panorâmica de Lisboa em 1763

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O Rozegal

— Casou no ar! casou um bocado no ar! Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa: tinha cuidados muito simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como um passarinho amiga do ninho e das carícias do macho: e aquele serzinho louro e meigo veio dar à sua casa um encanto sério.

Rue de Paris, temps de pluie, Gustave Caillebotte, 1877.
Imagem: WikiArt

— É um anjinho cheio de dignidade! — dizia então Sebastião, o bom Sebastião, com a sua voz profunda de baço.

Estavam casados havia três anos. Que bom que tinha sido! Ele próprio melhorara; achava-se mais inteligente, mais alegre... E recordando aquela existência fácil e doce, soprava o fumo do charuto, a perna traçada, a alma dilatada, sentindo-se tão bem na vida como no seu jaquetão de flanela!

— Ah ! — fez Luísa de repente, toda admirada para o jornal, sorrindo.

— Que é?

— É o primo Basílio que chega!

[...]

Foi com duas lágrimas a tremer-lhe nas pálpebras que acabou as páginas da Dama das Camélias. E estendida na voltaire, com o livro caído no regaço, fazendo recuar a película das unhas, pôs-se a cantar baixinho, com ternura, a ária final da Traviata: Addio, dei passato...

Cena de La Traviatta de Giuseppe Verdi (1813 - 1901).
Imagem: Guernsey Arts Commission

Lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do Primo Basílio...

Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. — Fora o seu primeiro namoro, o primo Basílio! Tinha ela então 18 anos!

Ninguém o sabia, nem Jorge, nem Sebastião [...]

João de Brito, que fazia parte da firma Bastos & Brito, faliu. A casa de Almada, a quinta de Colares foram vendidas.

Basílio estava pobre, partiu para o Brasil. Que saudades! Passou os primeiros dias sentada no sofá querido, soluçando baixo, com a fotografia dele entre as mãos. Vieram então os sobressaltos das cartas esperadas, os recados impacientes ao escritório da Companhia, quando os paquetes tardavam...

Terrasse à Sainte-Adresse, Oscar-Claude Monet, 1867.
Imagem: Wikipedia

[...]

Fora sempre o seu desejo viajar — dizia — ir ao Oriente. Quereria andar em caravanas, balouçada no dorso dos camelos; e não teria medo, nem do deserto, nem das feras...

— Estás muito valente ! — disse Basílio. — Tu eras uma maricas, tinhas medo de tudo... Até da adega, na casa do papá, em Almada!

Ela corou. Lembrava-se bem da adega, com a sua frialdade subterrânea que dava arrepios! A candeia de azeite pendurada na parede alumiava com uma luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias de teias de aranha, e a fileira tenebrosa das pipas bojudas. Havia ali às vezes, pelos cantos, beijos furtados [...]

— Lembras-te da capela da nossa casa em Almada?

Tinham passado ali lindas tardes! Ao pé da velha capela morgada havia um adro todo cheio de altas ervas floridas, — e as papoulas, quando vinha a aragem, agitavam-se como asas vermelhas de borboletas pousadas...

Papaverveld, Vincent van Gogh, 1890.
Imagem: Wikimedia

— E a tília, lembras-te, onde eu fazia ginástica?

— Não falemos no que lá vai!

[...]

Luísa recebeu, na manhã seguinte, da parte de Sebastião, um ramo de rosas, magenta-escuro, magníficas. Cultivava-as ele na quinta de Almada, e chamavam-se rosas D. Sebastião. Mandou-as pôr nos vasos da sala, e como o dia estava encoberto, de um calor baixo e sufocante:

— Olhe — disse a Juliana — abra as janelas.

— Bem — pensou Juliana — temos cá o melro. O melro veio com efeito às três horas. Luísa estava na sala, ao piano.


Sebastião não conhecia Basílio pessoalmente, mas sabia a crónica da sua mocidade. Não havia nela certamente, nem escândalo excepcional, nem romance pungente.

Basílio tinha sido apenas um pândego e, como tal, passara metodicamente por todos os episódios clássicos da estroinice lisboeta: — partidas de monte até de madrugada com ricaços do Alentejo; uma tipóia despedaçada num sábado de touros; ceias repetidas com alguma velha Lola e uma antiga salada de lagosta; algumas pegas aplaudidas em Salvaterra ou na Alhandra; noitadas de bacalhau e Colares nas tabernas fadistas; muita guitarra; socos bem jogados à face atónita dum policia; e uma profusão de gemas de ovos nas glórias do entrudo.

Bal du moulin de la Galette, Pierre-Auguste Renoir, 1876
Imagem: Wikipédia

As únicas mulheres mesmo que apareciam na sua história, além das Lolas e das Carmens usuais, eram a Pistelli, uma dançarina alemã cujas pernas tinham uma musculatura de atleta, e a condessinha de Alvim, uma doida, grande cavaleira, que se separara de seu marido depois de o ter chicotado, e que se vestia de homem para bater ela mesmo em trem de praça do Rossio ao Dafundo.

Un bar aux Folies Bergère, Édouard Manet , c. 1881.
Imagem: Wikipédia

Mas isto bastava para que Sebastião o achasse um debochado, um perdido; ouvira que ele tinha ido para o Brasil para fugir aos credores; que enriquecera por acaso, numa especulação, no Paraguai ; que mesmo na Baía com a corda na garganta, nunca fora um trabalhador; e supunha que a posse da fortuna para ele, seria apenas um desenvolvimento dos vícios. E este homem agora vinha ver a Luisinha todos os dias, estava horas e horas, seguia-a ao Passeio...

Sebastião era só. Tinha uma fortuna pequena em inscrições, terras de lavoura para o lado do Seixal, e a quinta em Almada, — o Rozegal.

Cova da Piedade, zona rural, Francesco Rocchini, anterior a 1895.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

As duas criadas eram ruito antigas na casa. A Vicência, a cozinheira, era uma preta de S. Tomé já do tempo da mamã. A tia Joana, a governanta, servia-o havia trinta e cinco anos; chamava ainda a Sebastião o "menino"; tinha já as tontices duma criança, e recebia sempre os respeitos duma avó [...]

Sebastião tinha estado nos últimos três dias em Almada, na quinta do Rozegal, onde trazia obras.

Voltara na segunda-feira cedo, e, pelas dez horas, sentado no poial da janela de jantar que abria para o terraçozinho, esperava o seu almoço, brincando com o Rólim — o seu gato, amigo e confidente da ilustre Vicência, nédio como um prelado, ingrato como um tirano.

A manhã começava a aquecer ; o quintal estava já cheio de Sol ; na água do tanque, sob a parreira, claridades espelhadas e trémulas faiscavam. Nas duas gaiolas os canários cantavam estridentemente [...]

Sebastião, que tinha estado na quinta de Almada quase duas semanas, ficou aterrado quando, ao voltar, a Joana lhe deu as grandes "novidades": que a Luisinha agora saía todos os dias às duas horas, que o primo não voltara; a Gertrudes é que lho dissera; não se falava na rua noutra coisa...

[...]

Uma ideia amparava-a: era que apenas Sebastião viesse de Almada, estava salva; e apesar daquela agonia miúda de todos os momentos, quase receava saber que ele tivesse chegado, — tanto a confissão da verdade lhe parecia uma agonia maior! Foi por esse tempo, então, que lhe veio uma lembrança — escrever a Basílio.

O terror permanente amolecera-lhe o orgulho, como a lenta infiltração da água faz a uma parede; e todos os dias começou a achar uma razão, mais uma, para se dirigir "àquele infame": fora seu amante, já sabia todo o caso das cartas, era o seu único parente... E não teria de "dizer" a Sebastião ! Já às vezes pensara que não aceitar dinheiro de Basílio fora uma "fanfarronada bem tola"! Um dia dia enfim escreveu-lhe. Era uma carta longa, um pouco confusa, pedia-lhe seiscentos mil-réis. Foi ela mesmo levá-la ao correio, sobrecarregando-a de estampilhas.

Nessa tarde, por acaso, Sebastião, que chegara de Almada, veio vê-la. Recebeu-o com alegria, feliz por não ter de lhe contar... Falou da volta de Jorge; aludiu mesmo ao primo Basílio, à "pouca vergonha da vizinhança..."

Déjeuner sur l'herbe, Édouard Manet, 1863.
Imagem: WikiArt

[...]

E foram descendo a rua, de braço dado, até ao Aterro.

No cais do Tejo, Alfredo Keil, 1881.
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

O dia estava glorioso; um friozinho subtil errava; no ar luminoso, leve, traspassado de Sol, as casas, os galhos das árvores, os mastros das faluas, as mastreações dos navios tinham uma nitidez muito desenhada ; os sons sobressaíam com uma tonalidade cantada e alegre; o rio reluzia como um metal azul; o vapor de Cacilhas ia soltando rolos de fumo que tomavam a cor do leite; e ao fundo as colinas faziam na pulverização da luz uma sombra azulada, onde as casarias caiadas rebrilhavam. (1)

Vapor da carreira de Cacilhas, 1890, Óleo, Alfredo Keil
Imagem: Casario do Ginjal




(1) Queirós, Eça de, O primo Basílio: episódio doméstico, Porto, Lello e Irmão, 1900.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Bens em Caramujo e Pragal

Na tentativa de identificar e fazer corresponder aos personagens do romance histórico, O Caramujo, de António Avelino Amaro da Silva, pessoas do tempo da acção do mesmo, vim a encontrar no blogue abaixo mencionado alguns exertos que transcrevo:

Vista de Cacilhas e de S. Julião, Charles Landseer, 1825.
Imagem: Instituto Moreira Salles

Em 18 de Junho de 1790 [António Pereira Rangel (1749 - 1820)] fez um contrato de Emprazamento em três vidas, de um Prazo sito no local do Caramujo, na actual Cova da Piedade, pelo qual pagava anualmente "… de uma só vez em dias de natal…" a renda de 32.453 réis.

Em 27 de Janeiro de 1800, sendo referido ser homem de negócios, e morar no lugar do Caramujo, comprou um prazo composto por "… uma vinha com seu bocado de terra e uma terra de semear pão…" sito no lugar do Pragal, pela quantia de 200$000 réis.

A topographical chart of the entrance of the river Tagus (detalhe), W. Chapman, 1806.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Em 9 de Janeiro de 1801 comprou "… uma vinha com seu bocado de terra que tem suas oliveiras, sita defronte da quinta chamada Olho de Vidro…", pela quantia de 600$000 réis.

Almada, Largo do Pragal, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

Em 27 de Janeiro de 1801 comprou "… humas terras com suas Cazas térreas e hum moinho de vento arruinado no dito logar do Pragal…", pela quantia de 600$000 réis.

Em 16 de Junho de 1801 comprou "… huma terra no citio do Juncal distrito do lugar do Pragal…", pela quantia de 100$000 réis.

Almada, Pragal, Vista Parcial, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

Atente-se agora ao que era a paisagem rural e urbana de Almada no século XIX:

"… desde a Idade Média diversas culturas eram característica da paisagem rural, cereais, pinheiro, vinha, figueira... no litoral, as praias e os pequenos portos de pesca artesanal e intermediários na saída de produtos da região.

É sobretudo a via fluvial do Tejo (e afluentes) que se reveste de grande importância, pois por ela iriam ter a Lisboa diversos produtos, de princípio excedentes da produção local, depois até oriundos do Alentejo, Beira e parte da Estremadura, destinados à alimentação e exportação em função do grande mercado de Lisboa.

A View taken from LISBON of the Point of Cassilhas, the English Hospital, & the Convent of Almada * : On the opposite side of the Tagus _ the original drawing by Noel in the possession of Gerard de Visme Esq.r / Drawn by Noel ; Engraved by Wells.
* (n. do e.) Embaixo à esquerda, uma saloia em traje típico, vasquinha de lã e carapuço pontiagudo, numa embarcação de transporte fluvial.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal



No interior, lugarejos ou povoações, casais isolados e quintas senhoriais, courelas e azinhagas. A área rural era mais importante do que a urbana... a Mutela não passava de um pequeno grupo de casas;

Fountain at village outside Lisbon (Mutela?), 1906.
Imagem: Ecomuseu Municipal do Seixal

o Caramujo, uma restinga de areia; o lugarejo da Piedade algumas quantas casas junto à Igreja... A par do desenvolvimento do comércio de vinho com o Brasil e África assiste-se a uma notável azáfama de tanoeiros. Mas os armazéns de vinhos, vinagres e azeites mantinham-se ligados ao comércio e actividades agrícolas da região..."

Tanoaria Francisco da Cerca, corredor do Ginjal, 1900.
Imagem:   Correia, Romeu, O Tritão, Lisboa, Editorial Notícias, 1982, 174 págs.

[...] D. Luiza do Nascimento [esposa de António Pereira Rangel, em 1812,], vendeu pela quantia de 1.600$000 uma vinha e terra com árvores de fruta, com todos os seus pertences, entradas, saídas, serventias e logradouros, situada no sítio da Carvoeira, no limite da Vila de Almada.
Em 30 de Junho de 1654, o Padre António Soares de Albergaria vende a sua quinta da Alagoa, junto a Almada, a João Bornete (comerciante, morador na cidade de Lisboa), a qual constava então de:

"suas casas, e posso de água com sua nora, e mais com vinhas na dita quinta e outras fora da dita quinta, a saber a vinha do Regil e outra sita na Carvoeira, e outra que chamão as Figueiras e outra quando vai para Quebra Joelho".

A venda foi feita com licença dos Priores das Igrejas de Almada em Cabido dada em 8.7.1654, pois a quinta era em parte foreira às referidas Igrejas (Cfr. DGARQ-ADS, Cota 420: Livro do Tombo das Igrejas de Santa Maria do Castelo e São Tiago de Almada, f. 5V).(1)

in História de Almada

Romeira, Lavadeiras no Rio das Rãs, início do século XX
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade

"João de Almeida, cirurgião aprovado neste Reino e seus domínios, residente nesta Villa de Almada = Certifico que no lugar do Caramujo limite desta villa he morador o Sr. António Pereira Rangel, cavalleiro profeço na Ordem de Cristo o qual padece a muitos annos molestia de gota e presentemente se acha com dores excessivas nos ortos inferiores e para poder dar alguns paços lhe he preciso andar emcostado a hum pao, assim o considero incapaz de poder sahir da estremidade da sua casa e por ser verdade todo o referido e esta me ser pedida o passei que juro aos Santos Evangelhos.
Caramujo, 26 de Agosto de 1813"

[...] aos 22 dias do mês de Fevereiro de 1820 [António Pereira Rangel] faleceu na sua casa no Caramujo. (1)


(1) Família Escócia Sandoval

Artigo relacionado:
O Caramujo, romance histórico

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Fonte da Telha

Era a fonte de alegria sã, de saúde do corpo e da alma...

A Fonte da Telha (Costa da Caparica, Praia do Sol), Cruz Louro, 1937.
Imagem: Cruz Louro

A Costa do Sol fem sete léguas de extensão. Desde a Cova do Vapor ou Ponta da Areia onde pode ter comêço a sua exploração como praia, segue, entre o mar e pinhais, até à povoação actual.

A dois passos de Lisboa, êsse estranho, novo e intenso tom doirado das florestas de acácias, constituem um incentivo de digressão interessante: não é menos empolgante do que as amendoeiras em flôr.

As acácias em flõr formam um mar doirado ao lado do outro mar...

Daí para o sul, é uma cadeia de pontos pitorescos onde podem estabelecer-se novos núcleos de população ou onde quem queira pode isolar-se em maravilhosos recortes de paisagem.

Descida do Robalo, Foz do Rêgo, Descida dos Carrascalhinhos, Descida das Vacas. etc.. etc.. etc.. até ao paraíso — a Fonte da Telha — sem dúvida a praia ideal. o melhor que pode haver, — porque não pode haver melhor em parte alguma do mundo...

Fonte da Telha, Carta dos Arredores de Lisboa — 75 (detalhe), Corpo do Estado Maior, 1903.
Imagem: IGeoE

Dai para o sul, ainda poderia continuar a peregrinação: Blunete, Mina do Ouro, Balcões, a Malha Negra, Olhos de Água, a Lagôa...

Mas a Fonte da Telha é o paraiso. Na rocha, a 200 metros de altura, pinhal cerrado, secular, a tôda a extensão norte e sul; a rocha descai em declive suave a conduzir à praia, ali, pertinho a 100 ou 150 metros de distância.

Águas medicinais, férreas, bicarbonatadas e doutras mineralizações. Riqueza de peixe.

Fonte da Telha, Dois barcos, História pela imagem dos barcos na Costa de Caparica, Cruz Louro, 1971.
Imagem: Cruz Louro

Umas dezenas de barracas de pescadores subindo o declive.

A Fonfe da Telha é alguma coisa de extraordinàriamenie belo e salutar. Vive-se ali entre o mar e os pinheiros. São unânimes todas as opiniões: não há, não pode haver melhor.

Fonte da Telha, 2006.
Imagem: wikimapia

Estará, relativamenie a transportes e a comodidades, semelhante ao que a Praia do Sol era há uma dúzia de anos.

Quando a Praia do Sol fôr como Espinho, a Fonte da Telha será como a Granja. 

Entretanto, quem apreciava a rusticidade primiliva da Costa e lamenta agora a invasão do progresso, da concorrência tumultuária, tem ali e terá ainda durante muitos anos, vastissimo campo de isolamento.

Centro Turístico Internacional da Costa, separata do Jornal de Almada, 1968.
Imagem: Sesimbra identidade e memória

Ali, sim. Param as coisas da terra — é o paraíso. (1)


(1) Praia do Sol (Caparica): estância balnear de cura, repouso e turismo, Monografia de propaganda do Guia de Portugal Artístico, 1934, M. Costa Ramalho, Lisboa.