quarta-feira, 28 de abril de 2021

João Black (1872-1955)

Na terra natal está recordado numa modesta lápida, no restaurante Pancão, que, juntamente com o seu retrato, reza o seguinte:

Sala João Black
Poeta Almadense
Conterrâneos e Amigos
28/9/1950

Cabo da vila de Almada no extremo da antiga Rua Direita.
Casa de pasto e retiro, José Pancão (à direita na foto) e adega das Andorinhas localzada na antiga Ermida de S. Sebastião.
Museu da Cidade de Almada

De seu nome completo João Salustiano Monteiro, nasceu em Almada a 28 de setembro de 1872 e foi urna figura com muito talento, honradez ie popularidade, ao longo dos seus 83 anos de existência.

Ouvindo narrar a sua história, tão rica em acidentes e infortúnios, mas que jamais o vergaram no rumo traçado desde criança, sentimo--nos diante de uma pequena força da Natureza. o poeta, o trabalhador e o homem são talhados na mesma peça, fadados e cultivados para a luta do dia-a-dia.

Há na sua Musa cantos de alegria, hinos de esperança e de fraternidade e que belos na sua singeleza! —, mas assomam também vergastadas cruéis numa sociedade iníqua e mentirosa, a que ele nunca serviu. Quem coligir os seus versos e artigos, insertos em folhas e jornais de dezenas de anos, compreenderá este homem de Almada, de muitas e variadas profissões, sempre corajoso, leal e grato entre os seus contemporâneos [...]

Muito cedo ficou órfão de pai e de mãe, sendo recolhido por um tio. Parente de poucos escrúpulos e desumano, que logo o não quis sustentar. Num dia de temporal, esse pô-lo na rua, quase sem roupa e descalço, à mercê do acaso.

Foi, então, que um pobre operário de O Puritano o recolheu e 1he deu umas roupas nando-ihe pouco depois o Conhecimento edeu umas roupas, proporcionando-lhe pouco depois o conhecimento da bela arte gráfica e do jornalismo, como o próprio João Black nos confirma neste relato:

"O Puritano, semanário que se publicou em Almada aí por alturas de 1888 a 1898, sob a direcção política de José Carlos de Carvalho Pessoa, que sucedeu dois ános depois a Jaime Artur da Costa Pinto, deputado pelo círculo, foi o meu tirocínio para o culto das letras. De compositor passei a reudactor, a secretário, a ser tudo, enfim, que constitui a engrenagem dum jornal de província, incluindo a revisão, a impressão, a factura do correio e todo o demais expediente.

Fui um Faz-tudo, explorado até à última gota de suor, mas beneficiado por essa mesma exploração, pois me deu margem a desenvolver a minha mentalidade e a tornar-me apto a ingressar em jornais de grande envergadura, como "O Século", onde entrei em 1892, pela mão de Eugénio da Silveira e de que era director o saudoso democrata Dr. Magalhães Lima (1850-1928)."

Aluno da sociedade A Voz do Operário, entrou mais tarde para o seu quadro gráfico. Nesta benemérita instituição, quase um prolongamento do seu lar, desempenhou as mais variadas funções. Tipógrafo, repórter, bibliotecário, empregado de escritório, director por fim, aposentado. Mas anos antes, e durante a sua juventude, fora pescador e até artista de circo...

Cantador de fado dos mais populares do seu tempo, tudo quanto cantava era de sua lavra. De centenas de quadras, transcrevemos esta, ao ãcaso:

A Honra é virtude morta
Se a Fome for atrás dela.
Quando a Fome entrar a porta
Sai a Honra p'la janela.


O órgão noticioso do anarco-sindicalismo A Batalha, que se publicou entre 1919 e 1927, tem um hino revolucionário [v. artigo dedicado] cuja letra é da autoria de João Black.

Entre as amizades que contraiu, e foram imensas, destacam-se as dos poetas Guerra Junqueiro (1850-1923) e Angelina Vidal (1858-1917), que muito o estimaram e admiravam.

Nascido em 1872, tinha 19 anos quando do ultimatum inglês a D. Carics: trinta e oito, quando da proclamação da república; quarenta e sete, quando saiu o primeiro número de A Batalha; cinquenta anos, quando, em 1921, foi criado o Partido Comunista Português. João Black foi um anarquista, um poeta operário, que se sentia solidário com todas as misérias e injustiças do mundo.

João Black (1872-1955)
Romeu Correia, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada

E lutou sempre, como podia e sentia... Sobre, João Black, homem-político, diz-nos César Nogueira no elogio fúnebre já citado [A Voz do Operário, 1 de fevereiro 1956]:

"Não tinha laivos de revolucionário. Era ponderado e educador. Nas lides do seu sindicato deu às artes gráficas o seu melhor préstimo. Nos congressos operários, especialmente aquele em que se celebrou em Tomar, em 1914, prestou uma boa colaboração de harmonia e solidariedade, devido às diversas correntes associativas que se manifestavam.

No extinto Partido Socialista colaborou na sua Imprensa. fez a sua judiciosa propaganda, assistiu aos seus congressos e foi eleito membro do seu Conselho Central (1917). Foi seu candidato nas eleições municipais, que se celebraram em 1917, obtendo 1876 votos.

Também foi membro da Junta da Freguesia de Santa Engrácia, onde conquistou, pelo seu lídimo c pata dos seus colegas democráticos e arácter, a sim-de todos os paroquianos."

Na inauguração da cantina escolar d'A Voz do Operário recitou esta quedra, mais tarde fixada num artístico azulejo:


Esta cantina escolar
É mais um belo padrão
Em que a Voz faz realçar
A causa da instrução


Casado com D. Bernardina Adelaide Azevedo, faleceu em Lisboa, em 18 de dezembro de 1955. (1)


(1) Romeu Correia, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada... 1978

Informação diversa:
Canções libertárias

Fado republicano, João Black (1872-1955)

Foi na publicação A Voz do Operário que teve seu cargo urna secção de título Carteira do Operário que durou entre 1905 e 1920 e, na qual foram publicados inúmeros textos de poetas amadores com temáticas de cariz social, e naturalmente textos que o próprio João Black escreveu para essa coluna.

Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário.
Ephemera JPP

A ligação de João Black com o fado começa por volta do ano de 1883, quando na infância começa a cantar. Apenas cinto anos mais tarde já percorria as sociedades recreativas para ouvir e interpretar os seus fados. Posteriormeme começa a procurar utilizar os versos cantados para transmitir ideais de carácter político-ideológico.

João Black, A Cançäo de Portugal n° 19, agosto de 1916
Museu do Fado

Em entrevista ao jornal Guitarra de Portugal, ern 1923, o próprio João Black relata episódios da sua vivência fadista da viragem do século e revela a formação de um terceto, com dois outros grandes nomes do universo fadista, Avelino de Sousa e António Rosa, que se apresentava em clubes e associações.


Nas palavras do próprio identificamos um propósito bem definido desta vertente de abordagem ao fado que temos vindo a retratar:

"Conheciamos a índole do nosso povo e sabendo-o falho de educaplo, mas muito inclinado ao fado, resolvemos fazer pelo verso cantado uma intensa propaganda de sociologia."

João Black fez também uma "peregrinação" pelo Alentejo, acompanhado por Júlio Janota, ambos cantando as mensegens de justiça social e de ataque ao regime monárquico [...]

João Black, Reliquias do fado 1936.
Fadoteca

O seu envolvimento com as ternáficas fadistas manteve-se ao longo de toda a sua vida, fazendo parte de comissões de homenagem, como a realizada para o guitarrista Luís Carlos de Silve (Petrolino)., em 1931 ou em festas de beneficiência.


Poema comemorativo do 50.° aniversário de A Voz do Operário
Casa Comum

Em Julho de 1946 foi também ele objecto de uma sentida homenagem,. Avelino de Sousa o presenteou com estes versos:

Quando o Fado não era um "ganha pão",
Mas um terno motivo espiritval,
— Hóstia de Luz na doce comunhão,
Do Povo, com a Alma nacional...


De entre os nomes mais altos da Canção
Mais popular em todo o Portugal,
Um houve que, de firma mais real,
Se destacou e teve vibração.

Um nome de poeta consagrado
E trovador que soube honrar o Fado
Em verso de divino sentimento!


E ésse nome, que mer'ceu tal destaque
Foi o teu, camarada João Black,
Que o conquistaste a golpes de Talento. (1)



(1) Fado 1910, CML/EGEAC, Museu do Fado, Lisboa, 2010

Informação diversa:
Canções libertárias

sábado, 24 de abril de 2021

Fado anarquista, João Black (1872-1955)

Alexandre Black, avô do aviador civil Carlos Black, possuía uns aterros em Cacilhas, onde meu pai exercia as funções de guarda. Foi ele quem insistiu com o meu pai para me meter na escola, tendo eu já sete anos nessa altura, comprometendo-se ele a pagar as, propinas, dada a situação de pobreza em que vivíamos.

João Black (1872-1955)
Romeu Correia, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada

Graças à sua extrema bondade, cheguei a cursar o 2.° ano do Liceu do Carmo, findo o qual resolvi não continuar por ter sido vítima duma injustiça do júri. Enveredando depois pelo campo tipográfico e jornalístico e prestando fervoroso culto às Musas, resolvi adoptar o pseudónimo de João Black em homenagem à memória do ínclito cidadão a quem devia a minha instrução e a preparação para enfrentar os graves problemas da vida.

Cometendo um acto de justiça, julgo ter dado assim uma prova da minha gratidão. (1)



Ciência humanitária
Um símbolo de altruísmo
Tem como fim condenar
Deus, pátria e militarismo


O mundo há-de assitir
Aos pobres livres do jugo
Espezinhar é o futuro
Da burguesia a surgir


E depois quando existir,
O ideal...
Esplendor e bem-estar
Incitar o patriotismo
A miséria,
O anarquismo tem por base condenar

Mas o povo subjugado
Esfacela-se sob a tortura
Quando o seu mal tinha cura
O ideal desejado

Viver na prisão
Nas garras dos inimigos
Ai ela bem cai no abismo
A fanática humanidade
Pois fia-se nesta trindade
Deus, pátria e militarismo (2)


(1) César Nogueira, elogio necrológico de João Black, A Voz Operária, 1 de fevereiro 1956 cf.  Romeu Correia, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada... 1978
(2) Carlos Loures, A face anarquista do fado

Informação diversa:
Canções libertárias

A Batalha, João Black (1872-1955)

A Batalha. Hino revolucionário, música de Tomás del Negro, letra de João Black.

Arquivo Nacional Torre do Tombo

I

Surgindo vem ao longe a nova aurora
Que os povos há de unir e liberar
Desperta rude, escravo, sem demora,
Não leves toda a vida a meditar.

Destroi as cruas leis da sujeição
E quebra as vis algemas patronais!
O mundo cai ter nova rotação,
Os homens hão de ser todos iguais.


CÔRO

É justo aos parasitas dar batalha,
A terra só pertence a quem trabalha...

II

Arquivo Nacional Torre do Tombo
Labutas atrelado ao cruel jugo,
Em troca da miséria por desdouro
Enquanto o teu patrão, o teu verdugo,
Aumenta à tua custa o seu tesouro.

É tempo já de erguer bem alta a voz,
bradr ao causador do teu sofrer:
A terra foi legada a todos nós;
Trabalha tu também, é teu dever.


CÔRO

É justo aos parasitas dar batalha,
A terra só pertence a quem trabalha...


III

Terrível convulsão sacode a terra
Sedenta de Justiça e Liberdade.
À guerra de opressão sucede a guerra
Que tende a redimir a Humanidade.

Saudemos, pois, o facho de porvir,
Das hostes comunais suprema luz.
O lema do futuro é produzir;
Dos lucro só partilha quem produz.

CÔRO

É justo aos parasitas dar batalha,
A terra só pertence a quem trabalha... (1)


*
*    *

João Salustiano Monteiro (Black) nasceu em Almada, a 28 de Setembro de 1872 e faleceu em Lisboa, aos 83 anos de idade, no dia 18 de Dezembro de 1955.

Tendo completado o 2.° ano no Liceu do Carmo, resolveu ir ser tipógrafo e jornalista. Em 1892 entrou para O Século pela mão de Eugénio da Silveira e tempos depois fez-se aluno da Sociedade "A Voz do Operário" entrando depois para seu quadro gráfico.

Manteve amizade com vultos do socialismo, mas foi no campo sindical onde marcou a sua presença como educador ponderado e poeta revolucionário. Participou no Congresso de Tomar em 1914 e outros que lhe sucederam e escreveu o Hino revolucionário "A Batalha" que o Maestro Del Negro musicou. (2)


(1) Arquivo Nacional Torre do Tombo
(2) Projecto MOSCA cf. E. Rodrigues (1982). A oposição Libertária em Portugal. 1939-1974. Lisboa. Sementeira

Informação diversa:
Canções libertárias

sábado, 17 de abril de 2021

Gregório, do Cacilhense...

Gregório
Revista Stadium n° 345, 1949
Cacilhas, a vila da outra margem do Tejo, que amorosamente fita Lisboa. O alfacinha que por ela nutre particular admiração e estima, não se furta o grato prazer de a visitar da quando em vez, animando-lhe buliçosamente as ruas e retiros nos domingo e dias feriados.

No recuado ano de 1930, nas ruas menos concorridas, sobre o basalto, a miudagem que rondava pelos 13 anos, dava largaa à inontida fúria pela bola, disputando interminavelmente desafios que, geralmente, só findavam devido à intervenção dosprogenitores da policia ou da guarda republicana.

Entre os pequenitos Gregório Gonçalves dos Santos nascido em 26-1-1917, distinguia-se pela vivacidade endiabrada, pelo fôlego inexgostavel, pela indiferença com que sacrificava a biqueira das botas... até que o pai resolveu não as deixar ao alcance do azougado garoto... que jogava descalço, então, sacrificava os dedos dos pês à alegria de jogar com uma bola de borracha ou de trapo... embora, depois, ao chegar a casa, o pai jogasse com ele de maneire diferente...

O número de miúdos cresceu de tal forma que chegou um dia em que resolverem, multo simplesmente, fundar um clube. Apareceram vários nomes, mas só um deles mereceu aprovação unanime, pelo seu simbolismo: "Cacilhense".

Criado o clube, faltava uns bola de coiro, igual ou parecida com as dos jogadores de verdade. Qual a solução?

Todo o dinheiro obtido pelaa dádiva dos pais ou dos amigos era empregado na compra de rebuçaods,— daqueles que tinham concurso dos emblemas dos principais clubes. E, assim, foi resolvIdo tão magno problema!

Teve, porém, efémera duração o grupo. Na ano seguinte, já com os miúdos na idade de 14 a 15 anos, novo clube surgiu em substituicão do primeiro o "Bombense".

Os jogos passaram a realizar-se no Campo do Ginásio Clube do Sul, com bola de cautechu, pagando cada miúdo dez tostões para o aluguer. Claro que, os desafios não tinham hora certa de duração.

Aos 16 anos, Gregório, ingressava no Ginásio, proprietário do campo onde começara a revelar a sua intuição futebolística, participando em vários desafios... já a valer, mas com carácter particular. Alinhava também, visto que não assinara ficha, no Pedreirenee F. C. hoje fusionado com o Atlético Clube de Almada e no União Piedense, hoje Clube Desportivo da Cova Piedade, entre outros. (1)


(1) Stadium n.° 345, 13 de julho de 1949

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