quarta-feira, 20 de julho de 2016

O grupo do Dragão Vermelho

Se observarmos o panorama cultural almadense, de meados do séc. XX, partindo das transformações urbanísticas, ao invés dos orgãos institucionais e seus equipamentos, podemos detectar acções paralelas.

Almada, Jardim Sá Linhares, ed. Postalfoto, 11, década de 1950.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Figuram, nessa perspectiva, os cafés e as personagens locais, resultando da sua articulação um novo fragmento da iniciativa cultural: os eventos realizados no café Dragão Vermelho, entre 1959 a 1961.

Almada, Praça da Renovação, ed. J. Lemos, s/n, década de 1950.
Imagem: almaDalmada

Postos em cena por um grupo de artistas locais, com vista a introdução da arte moderna em Almada, esses eventos são aqui reconstruidos, através dos registos documentais da epoca e dos relatos de Alfredo Canana, Francisco Bronze e Louro Artur - três dos elementos que compõem o "grupo do Dragão Vermelho" [...]

Francisco Bronze.
Imagem: IMARGEM

No contexto local, e na segunda metade do séc. XX, com as implementações do Plano Parcial de Urbanização de Almada (1947), que surgem os primeiros indicadores do urbanismo moderno.

Plano Parcial de Urbanização de Almada (PPUA), Implantação do Cento Cívico, 1947.
Imagem: Ver Almada crescer: 10 anos do Museu da Cidade (catálogo)

Uma área emergente, que motiva um fluxo populacional, marca a fronteira com uma morfologia rural, descaracterizando a paisagem e destruindo parte das rotinas que se ligam ao lugar.

Romeu Correia e o Cais do Ginjal, Louro Artur.
Imagem: Programa Comemorações 25 de abril 2014

Também em consequência do processo de modernização, o centro da vila sofre um deslocamento da zona antiga para a zona moderna e o núcleo encontra-se agora na Praça da Renovação (actual Praça do M.F.A) [...]

Praça da Renovação, década de 1960.
Imagem: Delcampe

Inserindo-se numa paisagem que ainda tem muito de rural, marcada pela escassez de infraestruturas sociais, os cafés vão assumir um grande poder agregador; implicando a reformulação dos palcos das práticas quotidianas.

Jorge Norvick Pintura.
Imagem: IMARGEM

Nestes cafés, o convívio faz-se essencialmente entre as pessoas da terra e entre os vários tipos sociais encontram-se os jovens artistas que vão formar a grupo do Dragão Vermelho: Francisco Bronze, José Bronze, Jorge Norvick, José Zagallo, Louro Artur, Luiz Suarez, Peniche Galveias, e os colaboradores Alfredo Canana, Jaime Feio, P.e Antonio Leitão, e Sérgio Só [...] (1)


(1) Jani Maurício, O grupo do Dragão Vermelho, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Os aviadores suíços

Os aviadores suíços Kaeser e Lüscher sobrevoaram ontem a praia da Costa da Caparica e conseguiram fazer três aterragens.

Costa da Caparica, os aviadores suíços do Jung Schweizerland, Oskar Käser et Kurt Lüscher, 12 de agosto 1929.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Eles vão renovar esta tarde as mesmas tentativas, descolando desta vez com a carga máxima.

Costa da Caparica, o avião Jung Schweizerland na praia em 12 de agosto 1929.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

A data de partida para a travessia do Atlântico não está ainda fixada, mas terá lugar provavelmente daqui até ao fim de semana da praia da Costa da Caparica, mais extensa que a de Alverca. (1)

Costa da Caparica, diversos aviões na praia, 1929.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

Preparado para voar, o F.190 n°21 é registado na Suíça. Inteiramente pintado em cor de aluminio, recebe a matrícula CH-245 e é baptizado "Jung Schweizerland".

Segunda-feira 5 de agosto, Käser et Lüscher acompanhados por Tschopp, descolam de Dübendorf para Le Bourget. Após ter efectuado uma afinação do motor e acertado a bússula, a equipagem efectua ensaios de consumo e carga. Com os seus 2400 litros de gasolina, fundamentando os seus cálculos no voo de Bailly et Reginensi, Käser estima a autonomia do avião em 50 horas para uma média horária de 155 km/h. Isto deverá então permitir-lhe a duração do voo de Lisboa a Halifax que ele avalia em 40h. No entanto, para os especialistas, os homens são demasiado optimistas, subestimando fortemente os ventos contrários, que terão que afrontar perto das costas americanas.

Carta do Atlântico norte, Farman 190 CH-245, Lisboa - Halifax, 19 de agosto de 1929.
Imagem: AVM

O avião transporta igualmente equipamento de sobrevivência em caso de amaragem: entre outros uma canoa pneumática, máscaras com reservatórios de oxigénio, bombas de fumo, foguetes, canas de pesca, chocolate, água, um aparelho para destilar água e... champagne. Os aviadores vestirão sobre a indumentária normal fatos de macaco emborrachados. Por outro lado, eles não levam consigo equipamento de TSF.

Dia 8 de agosto às 14h20, o CH-245 levanta de Le Bourget para Lisboa apesar da meteorologia pouco favorável. Tomando sem prevenir um percurso de passeio, Käser visita a sua familia em férias, pousando em  La Baule Escoublac às 17h20. No dia seguinte às 10h00, reparte para pousar às 12h13 em Cazaux, que deixam dia 10 às 9h40 para Lisboa onde aterram às 15h40 por engano no terreno militar da Amadora, antes de aterrarem no terreno internacional de Alverca.

Os aviadores efectuam primeiramente uma revisão completa do aparelho com a ajuda dos mecânicos de Alverca. Este terreno, demasiado curto, não pode no entanto convir à sua descolagem com a carga plena. 

Dia 12 de agosto, Käser efectua por três vezes com sucesso tentativas de descolagem na praia da Costa da Caparica.

Costa da Caparica, o avião Jung Schweizerland na praia em 12 de agosto 1929.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

No entanto, no dia seguinte, o major Ribeiro da Fonseca indica-lhes um terreno mais propício em Juncal do Sul não longe de Alverca, numa vasta zona agrícola constituída por zonas alagadiças drenadas, as lezírias, situada na margem esquerda do Tejo, frente a Vila Franca de Xira (hoje Reserva Natural do Estuário do Tejo).

Após terem definitivamente optado por este terreno, os aviadores não esperam mais do que as condições meteorológicas favoraveis para efectuar a sua tentativa. Dia 18 de agosto, decidem partir no dia seguinte.


Ermida de Nossa Senhora de Alcamé na lezíria ribatejana.
Imagem: Concept Board

Dia 19 de agosto à 1h00 da manhã, enquanto Tschopp passou a noite a guardar o avião, Käser et Lüscher preparam as provisões: 6 termos de café com leite, 15 sanduiches, tabletes de chocolate e duas garrafas de Porto Velho. Às 3h15, deixam o hotel "Avenida Palace".

O seu carro é seguido por outros transportando António de Faria, o director da Radio Lisboa, algumas admiradoras suíças e portuguesas, jornalistas, fotógrafos e amadores da aviação. Chegados a Vila Franca, os automóveis e seus passageiros atravessam o Tejo por barco.


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Diário de Lisboa, 19 de agosto de 1929


Na obscuridade, algumas viaturas perdem-se. Às 6h20, o avião está rodeado de automóveis e de um grupo de campinos, guardas da criação de touros, a cavalo, com os seus coletes vermelhos e as suas lanças.

Entre as personalidades presentes, o major Luis da Cunha e Almeida, director do Parque de Material Aeronáutico, Antonio de Sousa, administrador da Companhia das Lezírias, journalistas, um operador da Paramount, representantes das agências Associated Press e United Press e João Santos Moreira, representante da sociedade Atlantic que fornece a gasolina. Os soldados da base enchem os pneus enquanto Tschopp, ajudado por Käser e Lüscher, empilha no posto de pilotagem 7 bidons de 20 litros de gasolina e 2 bidons de óleo.

Luis da Cunha informa os aviadores da situação meteorológica: bom tempo até aos Açores, depois nevoeiro, principalmente sobre Terra Nova. Notícias que não mudam nada para Käser que prevê tomar a direcção da Nova Escócia após a passagem dos Açores.

Os aviadores vestem então os seus fatos de macaco estanques de cor verde. Em modo de brincadeira, Tschopp oferece a Käser uma rolha de cortiça para os ajudar a flutuar, em caso de… utilizam o mesmos sextantes e corrector de rota que Gago Coutinho e Sacadura Cabral quando do seu voo transatlântico. Ribeiro da Fonseca e o engenheiro Salgado ensinaram a sua utilização a Lüscher.

Às 6h45, o Junkers "Monteiro Torres" pousa a algumas dezenas de metros do Farman. A bordo encontram-se o tenente-coronel Cifka Duarte, o major Ribeiro da Fonseca, o tenente Cardoso e o mecânico Oliveira que vieram desejar boa viagem aos aviadores suíços.

Junkers W34-L Monteiro Torres, documentário A Largada das Águias, 1935.
Imagem: Cinemateca Portuguesa

Às 7h12, o motor é posto em marcha. Às 7h15, está em pleno regime. às 7h17, Käser, satisfeito com o funcionamento do motor, chama Tschopp e abraça-o. Às 7h18, o Farman, segundo o Diario de Lisboa não levava mais do que 2100 litros de gasolina (o que poderia querer dizer que os reservatórios das asas não foram utilizados?) e 80 litros de óleo, o que lhe permitia 42 h de voo, começa a rolar e descola às 7h19 depois de uma corrida de 1200 m.

Oskar Käser e Kurt Lüscher, descolam para Halifax num campo das lezírias, 19 de agosto de 1929.
Imagem: Crezan Aviation

O Farman CH-245 é observado quando sobrevoava os Açores (Terceira) cerca das 18H00, tendo percorrido 1600 km aproximadamente em 10h40 de voo segundo um horário próximo das suas previsões. Mas falta-lhe ainda percorrer para chegar a Halifax os 3000 km mais difíceis com uma meteorologia desfavorável.

Oskar Käser et Kurt Lüscher junto ao Jung Schweizerland antes da descolagem para Halifax, 19 de agosto de 1929.
Imagem: Aargauer Zeitung

As luzes do Roosevelt Field ficariam acesas toda a noite, mas o punhado de apoiantes entre os quais figura o capitão Lewis A. Lancey, navegador do Bellanca "Pathfinder", esperariam em vão: o CH-245 e a sua equipagem desapareceram algures entre os Açores e Halifax; jamais seriam encontrados. (2)


(1) Le Petit Parisien O suiço Kaeser prepara-se em Lisboa para a sua travessia do Atlântico 14 de agosto de 1929
(2) Crezan Aviation

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Caldeirada à Pescador

Publicar de novo O Espreitador na Romaria do nosso, José Daniel Rodrigues da Costa, tem por objectivo celebrar o facto de termos ultrapassado as 100.000 visitas.

Recrutas portugueses da província da Estremadura, c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Com determinação, idêntica à dos recrutas da imagem, durante os ultimos 25 meses, nas 328 publicações que fizemos, referenciámos informação em milhares de documentos e imagens e estabelecemos ligações a essas fontes de conhecimento.

Nesse percurso, quantas vezes as imagens nos contavam uma história diferente do texto que acompanharam. Ou quantas vezes o nome dado aos excertos foi antagónico ao do documento completo. Todos esses documentos são histórias várias vezes contadas e, todos eles, com mais histórias por contar.

Um frade franciscano e um irmão laico antes da abolição da sua Ordem, c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Assim, enviamos o nosso reconhecimento aos autores e proprietários dos documentos e imagens aqui apresentados, e também a todos aqueles que a este projecto facilitam, colaboram, discutem ou simplesmente visitam.

Por ora, vamos dar lugar à ironia e comicidade de um autor, neoclássico, onde não se esperam as subtilidades e doçuras do romantismo ainda distante.

ooOoo

Vindo á notícia do nosso bom Espreitador as infelicidades de uma romaria, que se fez com certo rancho de senhoras ao sítio da Costa, a rogos de um dos concorrentes se propôs descrever a mesma função, e os seus acasos, que não deixam de merecer a atenção das gargalhadas.

Jozé Daniel Rodrigues da Costa, (1757-1832).
Imagem: Tertúlia Bibliófila

Foi a cinco deste mez [agosto de 1802], que cinco sujeitos da Fábrica Moderna convieram em fazer uma função de romaria ao sítio da Costa, por quererem tirar o ventre de miséria de peixe:

e onde se poderia pilhar mais fresco, do que ali ao tirar da rede? Oh gostosa caldeirada, ferve, e toma o gosto dos temperos, até que estas barrigas se vão cevar no teu portentoso molho! Esperem os pargos, detenham-se os robalos, não apareçam por ora os gorazes, nem os congros, em quanto estes cinco viajantes se não põem a caminho para os tirar do lanço!

A leiteira e o pescador [ou peixeiro], c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

No dia premeditado sairão estes cinco individuos com duas famílias de senhoras, umas assim, outras assado; porém todas de modernismo, á excepção de duas tias muito velhas, que serviam de preladas aquela comunidade.

Pelas seis horas da manhã embarcou o rancho no Cais da Pedra com excessivo contentamento, e de alforje somente um cruzado novo de pão. Cantaram-se modinhas pelo mar, houve muitas risadas; porém todos em jejum para poderem abranger a grandeza da caldeirada.

Lugar de atracagem em Belém, c. 1824.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Chegaram a Cacilhas, oh que lindeza de terra pelas providencias, que tem para o comodo das senhoras! Apenas o rancho saltou no cais, saltarão também no rancho vinte e dois garotos de grande marca, oferecendo burros às senhoras.

Um se esmerava em dizer que o seu era de albardinha; outro dando um murro no companheiro, se adiantava a inculcar o seu, porque tinha cadeirinha: acolá vinha um banazola meio bêbado, oferecendo um macho de albarda: aqui vinha uma mulher com muitos cumprimentos, manifestando ao rancho um machinho de sella, que apenas o apanhou justo, também logo pediu um bocadinho de tabaco para a sua caixa, porque estava sem elle; e o resto da rapaziada aos bofetões, e cambalhotas uns aos outros, com seu sanguinho nos queixos, pela emulação de "o meu burro é bom, o teu não presta".

Já todos tinham cavalgaduras, quando o círio da pescaria se organizou, e se pôz a caminho: forte festa, forte alegria, e forte jantar de peixe se espera. Tantas eram as senhoras, tantas foram as quedas, que se deram.

Senhoras que passeiam montadas sobre burricos, c. 1814.
Imagem: Google Books

Um dos Tafuis, que levava uma garrafinha de mostarda n'algibeira para despertar o apetite da caldeirada, infelizmente, quando uma senhora caiu, elle descendo-se com mais brevidade, para lhe acudir, tal jeito deu, que fez a garrafa em farinha, e aqui temos dentro d'algibeira nada menos que outra caldeirada, que consta de bocados de vidro, um lenço branco finíssimo ensopado em mostarda, ou forro da casaca perdido, e uma caixa de rapé quebrada, da qual o retrato não tinha custado pouco.

Cavalheiro de Lisboa, c. 1808.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Que grandeza d'alma não é precisa a um destes, para não fazer caso de semelhante desastre! O que lhe dava alguma consolação era saber que a senhora, sua apaixonada tudo lhe havia de levar em conta.

Dama da classe média de Lisboa, c. 1808.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Continuou tudo em sossego depois desta mixórdia, quando a poucos paços o machinho de sella, que era manhoso, se pôs aos couces de forma que sacudiu o cavalheiro, abrindo-lhe a cabeça na esquina de uma pedra.

Oh desgraça, que tiraste de inquietar esta paz de espíritos!

Chovem lenços a aperrar a cabeça do enfermo, elle branco como a cal da parede, esforça-se por não se mostrar maricas; uma das tais velhas limpa-lhe o rosto, a outra pergunta-lhe se doe no peito; mas elle de que mais se queixa é dos quadris, e de toda aquela parte: a apaixonada com as lagrimas nos olhos, maldiz a hora, em que lembrou a romaria.

Saindo de Cacilhas com oito rapazes pelo caminho, não tinham um só, que fosse buscar uma gota d'agua, porque é o costume desaparecerem, e só permitirem a graça da sua estimável companhia, quando a mesa se põe.

Aqui temos já um festeiro a pé, que nunca mais montou no macho, por lhe tomar medo e uma das velhas sacrificando-se a ir de penitência, com tanto que elle fosse a cavallo: o certo é que ele, e ela foram aos poucos.

Elegante do povo, Henri l'Evêque, c. 1814.
Imagem: Google Books

Chegou o rancho á Costa, e dado à costa com fome do tamanho de todo aquele areal.


Traje feminino nas cidades portuguesas, c. 1828.
Imagem: Internet Archive

Eis que negras, e condensadas nuvens enlutam a atmosfera; aparece um relâmpago, dizendo pela voz de um horroroso trovão: "não há peixe porque em quanto eu me demorar por este sítio, não tem licença os peixinhos, para virem fóra d'água".

Com efeito falou o trovãozinho pela boca de Júpiter; porque o mar encapelado, e negro, relâmpagos sucessivos, trovões amiudados, e água a cântaros, fazia tudo uma caldeirada, que se não podia tragar.

Pescador e sua familia [Pedrouços], Marianne Baillie, c. 1823.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Ofereciam-se grandes interesses aos pescadores, mas nem assim os brutos se moviam a ir botar a rede.

Bellas Artes, 16, Costa de Caparica, A. Roque Gameiro, Paulo Emílio Guedes & Saraiva.
Imagem: Delcampe

Desenganado pois o rancho, de que não havia com que matar a fome, já corria às barracas daquele sítio, onde não acharam mais que duas postas de bacalhau muito encortiçado, e quatro cebolas cozidas: parece que o diabo de propósito lhes tinha preparado aquele banquete.

Bellas Artes, 15, Costa de Caparica, A. Roque Gameiro, Paulo Emílio Guedes & Saraiva.
Imagem: Delcampe

As meninas lá se acomodaram com o pão do alforje, porém uma das velhinhas entrando com o bacalhau de volta, tanto rilhou, tanto rilhou nele, que dos únicos quatro dentes, que tinha na boca, um que estava já como badalo de sino, veio a terra.

Velha camponesa de Sintra, c. 1823.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Os rapazes dos burros, que lhes cheirou a função a pão seco, por não deixarem saudades, se despedirão em silêncio, e vieram para Cacilhas esperar o rancho.

Desconsoladamente votou o rancho das senhoras em marchar logo daquelas praias, e pondo-se tudo outra vez a caminho com caras de Monges d'Arrábida, se até ali as tinham de anjinhos de presépio, chegarão a Cacilhas pingando:

Traje feminino habitual em Portugal, c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

e naquele lugar, com carapaus fritos, que foi o que se achou, puseram uma rolha na boca á fome.

Houve suas descomposturas com a dona do machinho, e mais palavra, menos palavra, afretou-se uma falua para ser transportado o rancho para Lisboa. Vinham aquelas almas capazes de se pedir para ellas; porque vinham ensopadas, agoniadas, esfaimadas, enxovalhadas, zangadas, e tudo o mais, que aqui se lhes poder ajuntar, que acabe em adas.

Saltarão para dentro da falua: foi o arrais o braceiro das senhoras, que ainda com ser grosseiro, tem occasiões, em que o interesse lhe ensina a politica. Chamou a companha; porém mal sucedido, porque cada um vinha por sua vez: ora desviava a falua do cais, ora tornava ao cais, e afretando a embarcação a este rancho, por suas moças de pau, queria fazer carreira.

A View taken from LISBON of the Point of Cassilhas, the English Hospital, & the Convent of Almada * : On the opposite side of the Tagus _ the original drawing by Noel in the possession of Gerard de Visme Esq.r / Drawn by Noel ; Engraved by Wells.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal



Gritava o arrais: lá vem o senhor capitão; deem lá a mão ao senhor capitão, venha cá, senhor capitão, venha cá comigo.

E tal algazarra se fez, que duas horas e meia durou o embarque, e completou-se o chamado frete com algumas quarenta pessoas dentro.

Ora em quanto a embarcação veio terra terra, vinham as senhoras do rancho nas suas glórias; mas tanto que se levantarão os pauzinhos, e se lhes dependurarão os estandartes, eis a embarcação fazendo bordos, eis as balhadeiras a saltarem de crespas, e a botarem borrifos para dentro com cada sopapo, que era uma consolação.

As meninas carregando na falua pela parte oposta, para ver se a endireitavam: as duas tias velhas já com cara de icterícia, dizendo lá comsigo: negregada festa.

A cada balanço chamava-se por quantos santos tem a folhinha.

O que metia mais compaixão era a tia desdentada a vomitar os carapaus fritos de Cacilhas; mas consolavam-na dizendo-lhe que isto livrava de uma doença: ao que ela respondia que antes queria ver-se achacada toda a vida, do que achar-se naqueles lances.

E afinal, nesta confusão de misérias, chegou tudo a salvo ao Cais da Pedra.

A View of the PRAÇA DO COMMERCIO at LISBON, taken from the Tagus : the original Drawing by Noel in the possession of Gerard de Visme Esq.r / Drawn by Noel ; Engraved by Wells.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Foram para casa, quasi como a pau, e corda, e dois meses a fio se falou na função a todos, que as visitavam.

Mulher transportada ao hospital, Henri l'Evêque, c. 1814.
Imagem: Google Books

Quem quiser talhar outra festa semelhante, aqui lhe achará o risco. (1)


(1) José daniel Rodrigues da Costa,  O espreitador do mundo novo: obra critica, moral, e divertida, Lisboa, Officina de J. F. M. de Campos, 1819 [1.a edição, 1802]

Leitura relacionada:
Humor impresso: cultura e política em "O Espreitador do Mundo Novo"


Outros trabalhos do autor:
Internet Archive

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Pequeno canal ou golada do Tejo

Na foz, o acesso marítimo ao interior do estuário [do Tejo] processa-se através de 3 canais ladeados por bancos de areia denominados Cachopo Norte e Cachopo Sul: O Grande Canal ou Barra Grande, localizado ao centro, liga o Atlântico ao Terreiro do Paço, apresenta largura mínima de 200m, caracteriza-se por uma boa estabilidade de fundos que actualmente se encontram a 16m e são facilmente aprofundáveis através de simples dragagem de areias; O Canal Norte ou Barra Norte situado entre o Cachopo Norte e a praia de Carcavelos, permite a navegação a navios de calado inferior aos 11 metros;

O naufrágio do HMS Bombay Castle na foz do Tejo, Lisboa, em 21 de dezembro de 1796, Thomas Buttersworth.
Imagem: artnet

O Canal Sul, denominado Golada, localizado entre o Cachopo Sul e a praia da Caparica, apenas acessível a embarcações de pequeno calado [...] (1)

Na área de estudo as principais alterações na linha de costa abrangem sobretudo a embocadura do Tejo, nomeadamente a golada do Tejo ou restinga do Bugio, ou seja, um banco de areia que liga o Farol do Bugio e a Cova do Vapor.

Vista aérea do estuário do Tejo, 2008.
Imagem: Porto de Lisboa

Esta golada nem sempre esteve fechada, como é possível observar na figura [abaixo] e o seu fecho/abertura é responsável por importantes modificações no areal da Costa de Caparica e Cova do Vapor.

Boat Channel (a golada), The environs and harbour of Lisbon, Laurie & James Whittle 001
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Em 1845 assiste-se ao início de um recuo de cerca de 750 m da ponta livre da restinga da Cova do Vapor em direção ao farol do Bugio. Entre 1879 e 1893 o recuo acentua-se e a ponta da restinga avança 400m em direção ao farol.

Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa (detalhe), Francisco M. Pereira da Silva, 1857.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A restinga do Bugio ou golada do Tejo sofre um acentuado recuo na segunda metade do século XIX, o que provoca a sua abertura. 

Planta hydrographica da barra e porto de Lisboa (detalhe), Joäo Verissimo Mendes Guerreiro, 1878
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A partir do início do século XX começa a assistir-se ao avanço da restinga em direção ao Farol do Bugio, promovendo o seu fecho. 

Carta de Lisboa e seus arredores A. Filippe da Costa, 1909.
Imagem: Biblioteca Nacional Portugal

Entre 1929 e 1939 a extremidade livre da restinga (golada do Tejo) avança 750 m em direção à fortaleza do Bugio e recua cerca de 200 m na margem fluvial a oeste da Trafaria, sendo possível a travessia a pé em maré baixa da Cova do Vapor ao farol do Bugio.

Plano Hidrográfico da Barra do Porto de Lisboa (detalhe), 1929, actualizado em 1939.
Imagem: Biblioteca Nacional Portugal

A restinga do Bugio ou golada do Tejo tem uma importante influência no areal da Costa de Caparica e Cova do Vapor, considerando que se torna num importante esporão artificial, eficaz na retenção de sedimentos.

A partir de 1940 inicia-se um processo de erosão e uma redução acentuada da restinga que ligava a Cova do Vapor ao Bugio, sendo possível a passagem apenas em maré vazante. Esta redução é consequência de dragagens realizadas nesta área e em que o destino dos materiais dragados permanece desconhecido. 

Cova do Vapor, vista aérea (detalhe), 1953.
Imagem: Flickr

Segundo Abreu [V., O Porto de Lisboa e a Golada do Tejo, Síntese do Ciclo de Conferências O Porto de Lisboa e a Golada do Tejo apresentada na Academia de Marinha, 2010] nos anos 40 do século XX foram retirados da zona da Cova do Vapor cerca de 14,5 Mm3 de areia para aterros na margem direita do Tejo, no troço Belém-Algés. O projeto da construção e respetivos aterros da doca de pesca de Pedrouços datam de 1942, pelo que o destino dos materiais dragados seria provavelmente esse. 

Já em 1948 foi aprovada a retirada de areias da mesma zona para a "Regularização da Margem Esquerda do Tejo, entre Cacilhas e o Alfeite", sendo desconhecida a quantidade.

Vista aérea da variante à Estrada Nacional 10, zona da Mutela e da Margueira, 1958.
Imagem: IGeoE

Em 1959 é construída a primeira obra de defesa na Cova do Vapor, seguindo-se a construção de mais dois esporões e a obra longitudinal aderente.

Esporão da Cova do Vapor e vista do Forte ou Torre de S. Lourenço ou Bugio, Margarida Bico, 2015.
Imagem: Panoramio

Entre 1957 e 1963 assistiu-se a um recuo da linha de praia de 150m. 

Costa da Caparica, A praia 35 K de comprida, ed. Passaporte, 10, década de 1950.
Imagem: Fundação Portimagem

Entre 1968 e 1971 são construídos mais sete esporões na Costa de Caparica [...] Em 1971 é feita a primeira referência à alimentação artificial de praias na Costa de Caparica. 

Em 1979 já tinha sido dado início à construção do Terminal Cerealífero da Trafaria, atualmente a Silopor (Portaria nº 665/81, 5 de Agosto). Construído na margem sul do Tejo, entre a Trafaria e a Cova do Vapor, foi responsável por uma acentuada acumulação de areias. 

Trafaria, Cova do Vapor e Terminal Portuário, 2009.
Imagem: A Terceira Dimensão

O terminal funcionou como uma barreira que impedia a circulação natural de sedimentos, ficando então os sedimentos retidos a oeste do terminal, dando assim origem ao extenso areal que ser pode observar na zona dos Torrões da Trafaria [...]

Até ao ano de 1995 a situação esteve estabilizada, embora com perda progressiva da largura e volumetria da praia.

Costa da Caparica, Aspecto da praia, ed. Centro de Caridade N. Sr.a do Perpétuo Socorro, n.° 629, déc. 1980 1970.
Imagem: Delcampe

A partir do ano de 1996 a erosão acentua-se e assiste-se a danos preocupantes na praia e duna de S. João da Caparica. Os Invernos são a partir do ano de 1996 muito rigorosos, com registo de inúmeros galgamentos e destruições e progressivo emagrecimento do areal em S. João e Costa de Caparica. Entre 1999 e 2002 a linha de costa recuou em média cerca de 14,6 m.

Entre 2002 e 2007 recuou cerca de 12,2 m. Em 2007 inicia-se a alimentação artificial de praias com 0,5 Mm3, em 2008 com 1 Mm3 e em 2009 com igualmente 1 Mm3 de areias. Entre 2007 e 2010 foram gastos cerca de 2,5 Mm3 de areias provenientes de dragagens do porto de Lisboa e um ganho de cerca de 700.000 m3 de areias no sistema. 

Em 2014, devido a um Inverno (2013-2014) muito rigoroso e violento, que causou inúmeros galgamentos na zona da Costa de Caparica e o emagrecimento preocupante do areal, retomaram-se as obras de alimentação artificial de praias com 1 Mm3 de areias dragadas do canal de navegação do porto de Lisboa.

Vista do estuário do Tejo, tomada da Estação Espacial Internacional (detalhe), Samantha Cristoforetti, 2015.
Imagem: Samantha Cristoforetti no Facebook

Atualmente ocorre um período climático quente que se traduz numa desglaciação e consequentemente, num aumento do nível médio do mar (NMM). No litoral português o NNM subiu cerca de 15 cm durante o século XX e as projeções são de que suba entre os 0,75 e 1,90 m até ao final do século XXI, sendo o valor mais assertivo próximo de 1 m [...] (2)


(1) Cluster do Mar, O Porto de Lisboa
(2) Marta Oliveira, Evolução Natural e Antrópica Trafaria - Cova do Vapor - Costa de Caparica, Lisboa, UL, 2015

Artigos relacionados:
Os Cachopos
Mar da Calha

Ligações externas:
Valle de Trafaria e pantano do Juncal

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