domingo, 26 de junho de 2016

Panorâmicas do Pragal

Nesta viagem pelo Pragal vimos casas com uma história e ruas com nomes interessantes. Conhecemos coisas novas e reparámos em estátuas que no dia-a-dia esquecemos de lhes dar importância. Até viajámos no tempo.

Panorâmica do Pragal, Augusto de Jesus Fernandes, 1966.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O Pragal faz parte da cidade de Almada, mas antigamente era uma aldeia com quintas grandes [...]

Panorâmica do Pragal (foto montagem), Augusto de Jesus Fernandes, 1963.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Quando fomos à Peregrinação do Pragal passámos por muitas ruas e casas antigas. Nesta aventura ficámos a conhecer a história do Pragal contada pela arqueóloga Elisabete e alguns alunos da turma foram os pilotos dos percursos [...] (1)


(1) Turma Curiosa, Peregrinação no Pragal

terça-feira, 21 de junho de 2016

O abate das faluas

Representação contra a empresa das carreiras de Cacilhas.

Ill.mos Srs.

Á Companhia dos Barcos a vapor do Tejo e Sado, concedeu o Governo de Sua Magestade privilegio exclusivo para que ella, mediante as obrigações, a que se comprometteu, fosse a unica que podesse estabelecer carreiras de barcos a vapôr nos portos de norte e do sul do Tejo.

Lisboa, Ponte dos Vapores, estudo para leque, Veríssimos Amigos, c. 1850.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O porto de Cacilhas pertencente a este municipio, foi um dos escolhidos pela Companhia — tractou esta de associar aos seus interesses os donos de 17 excellentes faluas de transporte que faziam bom e regular serviço no transito de Cacilhas para a Capital — obteve a compra dessas faluas, afim de inutilisar estas vias de communicação — começou regularmente o serviço com os seus vapores, 

Falua atracada num pequeno cais da margem sul.
Imagem: The Tagus Estuary Traditional Boats

porém depois foi diminuindo progressivamente este serviço, a ponto de se achar hoje reduzido a duas viagens de manhã, e tres de tarde: e na estação mais perigosa (Inverno) nem estas mesmas completatam arruinado o caes, porque nunca construiu a ponte a que era obrigada — reduziu a navegação deste porto a pequenos botes, e lanchas, governados por catraeiros inexperientes, que pela ignorancia desta tracto e pequenez dos vasos, torna perigosissimo este transito que tão frequentado é pelos habitantes deste Concelho o pelos da Capital.

Place du Commerce prise du Tage, Celestine Brelaz (Lenoir), c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Depois de ter assim concorrido para a total ruína deste porto, e perigo de vida de seus habitantes é constante que a Companhia supplica ao Governo de Sua Magestade o acabar com esta carreira a vapor, afim de ficar gosando o privilegio somente para a do Riba Tejo, donde tira avultados lucros; e se chegar a obter seus fins, a nenhuma outra Companhia ou particular convirá deitar mão dos portos por ella abandonados, visto que lhes falta a compensação que póde dar a do Riba Tejo.

Panorama de Lisboa, Edward Gennys Fanshawe, 1856.
Imagem: Royal Museums Greenwich

É por isso que os abaixo assignados recorrem a esta Camara a quem compete velar pelos interesses do municipio, e bem estar de seus administrados, a fim de que leve ao conhecimento do Governo de Sua Magestade, todas estas circumstancias, e as mais de que deve estar ao facto, para que não seja attendida a supplica da actual Companhia de barcos a vapor do Tejo e Sado.

Almada 11 de Setembro de 1850. (Tem 165 assignaturas)

Barcos junto à torre do Bugio, Alfredo Keil (1850 - 1907).
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Senhora.

Se é facto ter a Companhia da Navegação do Téjo por barcos movidos a vapor, requerido a Vossa Magestade ser alliviada da carreira de Cacilhas, fundamentando o seu pedido em consideraveis prejuizos que de tal carreira lhe tem resultado; não póde a Camara Municipal do Concelho d'Almada deixar de supplicar a Vossa Magestade o prompto indeferimento de tal pertenção.

Vue de la rade et de la ville de Lisbonne
Imagem: Le Monde illustré, 1858, M. de Bérard.

Senhora! se os prejuízos allegados pela Companhia, não fossem devidos ás administrações que dia tem tido, talvez fosse conveniente conceder-se-lhe algum favor, mas contra factos não prevalecem argumentos, e parecem de bastante pezo os mencionados na inclusa representação dos moradores deste municipio.

Cabeçalho de uma acção da Companhia da Navegação do Téjo por barcos movidos a vapor
Imagem: Restos de Colecção

Outras muitas circumstancias existem que esta camara não teria duvida em manifesta-las a Vossa Magestade, se tivesse a certesa da existencia da representação de que se tracta, mas não a tendo, e estando bem convencida de que um tão importante objecto não hade ser decidido sem serem ouvidas as partes interessadas, por isso aguarda essa occasião para dar mais amplo desenvolvimento a este negocio.

Embarcações no Cais da Misericórdia (Cais do Sodré).
A embarcação em destaque é uma falua, repare-se nos mastros tirados a vante e à ré.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Almada em Camara aos 22 de Outubro de 1850 — Francisco Ignacio Lopes, presidente. (1)


(1) Revista Universal Lisbonense,  Representação contra a empresa das carreiras de Cacilhas, 2 de janeiro de 1851

Artigo relacionado:
Marinha do Tejo

domingo, 19 de junho de 2016

Crescimento do largo de Cacilhas

Durante a década de 1860, após várias tentativas desastrosas de estabelecimento de carreiras de vapores subsidiadas pelo Estado, a Empresa de Vapores Lisbonenses [empresa de Guilherme Burnay, depois Parceria de Vapores Lisbonenses] conseguiu assegurar o funcionamento de algumas carreiras em barcos a vapor para o transporte de passageiros e mercadorias de Lisboa para Paço de Arcos, Belém e Cacilhas.

Barco a vapor a atracar em Cacilhas.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A firma dominou os transportes fluviais a vapor no Tejo em toda a segunda metade do século, assegurando a exclusividade no transporte para Cacilhas.

A partir daqui as pessoas deslocavam-se para Almada e outras povoações em burros ou trens especialmente fretados para o efeito, os "chars-à-bancs" [charabans, pop.].


Cacilhas, Molhe e pharol, ed. Martins/Martins & Silva, 19, c. 1900.
Imagem: Delcampe, Oliveira

Nas primeiras décadas do século XX o aumento da população da margem esquerda e o estabelecimento das ligações rodoviárias com o Sul forçaram a um alargamento do cais de Cacilhas a partir de Novembro de 1928, o que permitiu uma atracagem mais frequente dos barcos de diversas empresas que faziam a travessia do Tejo.

A partir de 1925 começaram a estabelecer-se carreiras regulares entre Cacilhas e diversas localidades do Sul do país, o que levou as autoridades marítimas a iniciar o referido alargamento do cais, de forma a permitir o estacionamento dos veículos das empresas que iam tomando as concessões dessas carreiras.

Largo de Cacilhas, 1.a Volta a Portugal a Cavalo, 10 de outubro de 1925.
Imagem: Luís Bayó Veiga, Cacilhas - Imagens d' antigamente, 2011, Junta de Freguesia de Cacilhas, 55 págs.

A intensificação do trânsito rodoviário de ligação ao Sul começou, em meados dos anos 30 [...]

Autocarro da Seixalense no largo de Cacilhas em 1931. No letreiro: Cacilhas-Seixal e vice-versa.
Imagem: José Luis Covita, Memórias de um Século de Autocarros a Sul do Tejo, Scribe, 2013

As obras, no entanto, prolongaram-se até 1933, e durante este período os numerosos auto-cars foram forçados a utilizar apenas a parte antiga do largo, pois a falta de pavimentação do acrescento transformava-o num lodaçal. (1)

Cacilhas, chegada dos concorrentes da prova dos 10 mil quilómetros, organizada pelo Automóvel Clube da Alemanha, 1931.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Por esse tempo, Cacilhas parecia uma cobra a mudar de pele. A praia e a rampa onde os barcos de pequeno calado encontravam abrigo, a uma pequena parcela de muralha, o primeiro aterro. Os trens e as carroças foram rendidos pelas camionetes e os taxis, relegando as bestas de tracção para outras tarefas [...] (2)

Pontaleto de Cacilhas, década de 1940.
Imagem: Flores, A. M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia de Cacilhas

Em 1949 a Autocarros do Sul fundiu-se com a Transportadora Beira-Rio, do Seixal, e constituiu a Empresa de Transportes Beira-Rio, L.da.

A Autocarros do Sul, com sede em Cacilhas foi integrada na Transportes Beira-Rio, Lda. que havia sido constituída em 1943 em Paio Pires, por José Vicente Moreira e Joaquim Ferreira dos Santos.

No mesmo ano o dono da Autocarros do Sul (João Carneiro Zagalo e Melo) vai adquiri-la e mudar a sede para Cacilhas.

Essa empresa é que chegará pela mão da família Zagalo a 1968 e constituirá a Transul ( juntamente com a Piedense).

José Luis Covita
A partir de 1945 passaram a existir apenas duas empresas de transporte de passageiros entre as povoações do concelho de Almada: a Empresa de Camionagem Piedense, L.da, que assegurava as ligações de toda a zona norte do concelho, de Cacilhas à Costa da Caparica, e a Autocarros do Sul Empresa de Transportes Beira-Rio, L.da, com a concessão de todo o eixo de saída para o Sul, englobando a Cova da Piedade, Laranjeiro, Sobreda, Seixal e Paio Pires.

Cacilhas, largo do Costa Pinto, Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

A aceleração da urbanização da zona de Almada, a partir de 1947, e a intensificação do tráfego rodoviário para o Sul do país fizeram com que o Largo de Cacilhas se revelasse novamente insuficiente para a movimentação cada vez maior de autocarros.

Cacilhas, Lisboa vista de Cacilhas, ed. Postalfoto, 468, década de 1950.
Imagem: Delcampe

Em 1950 efectuou-se um novo e decisivo alargamento do largo para a sua dimensão actual [2000], transformando-se num dos maiores centros rodoviários do país [...] (3)


(1) Jorge de Sousa Rodrigues, Infra-estruturas e urbanização da margem sul: Almada, séculos XIX e XX, 2000, 35 págs.
(2) Romeu Correia, Cais do Ginjal, Lisboa, Editorial Notícias, 1989, 188 págs.
(3) Jorge de Sousa Rodrigues, idem


Referências;
José Luis Gonçalves Covita, História da Camionagem no Concelho de Almada, Câmara Municipal de Almada, 1995

Artigos relacionados:
Cacilhas vista do Tejo, em 1847
Na esplanada do forte de Cacilhas

Largo do Costa Pinto
A calheta de Cacilhas

quarta-feira, 15 de junho de 2016

A calheta de Cacilhas

Offerecemos uma vista da pequenina abra ou calheta do logar de Cacilhas, tomada do barco de vapor que para alli faz constante carreira diaria. (1)

Vista Geral de Cacilhas, ed. José Pinto Gonçalves, década de 1920.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

A referência mais antiga a Cacilhas de que dispomos data de 1348 onde a palavra Cacilhas se inscreve em assento notarial.

Sabemos que o porto, anteriormente a 1838, era uma baía protegida dos ventos de Norte por uma linha de rochas, o Pontaleto, e limitado a Sul por um promontório o Pontal. Entre estes limites dois outros alinhamentos rochosos também de sentido Leste-Oeste dividiam a baía em três partes: a do Norte era a praia de Cacilhas propriamente dita, a do Sul a praia das Conchinhas e entre ambas ficava a da Lapa.

À parte os alinhamentos rochosos as praias eram de areia, propicias ao encalhe de pequenos barcos e proporcionavas ás embarcações um bom abrigo dos ventos, excepto os de Leste e Nordeste. Estes mais desagradáveis que ofensivos.

Cacilhas, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 20, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Lugar de embarque privilegiado entre a "outra banda" e Lisboa é natural que tenha surgido ali, muito cedo (Século XII?) uma albergaria destinada a peregrinos e outros viajantes como se depreende do primitivo nome: Albergaria dos Palmeiros.

Pontal de Cacilhas, ed. Alberto Malva/Malva & Roque, 135, década de 1900
Imagem: Delcampe

Mais tarde, (Século XIV) aparece uma gafaria, tendo por Orago S. Lázaro. Gafaria e Albergaria são, no principio do Século XV, a mesma instituição designada por Casa dos Gafos de Cacilhas e, pouco depois, por Albergaria de S. Lázaro.

Dispunha de alojamentos separados, em diferentes casas, para peregrinos e para os gafos, como seria obrigatório; entre as duas casas havia um pãtio ou terreiro onde se erguia a ermida de S. Lázaro. A administração era municipal, parecendo ser, entre as instituições nacionais mais antigas congéneres, uma das raras que pode ter sido de iniciativa municipal.

O farol e a doca de Cacilhas, colecção Henrique Seixas, Museu da Marinha,
in Loureiro, Carlos Gomes de Amorim, Estaleiros Navais Portugueses...
Imagem: Livreiro Monasticon

Em 1569, por uma provisão de D. Sebastião, a administração foi confiada à Misericórdia de Almada que, no entanto, elegia anualmente para "mamposteiro", em representação do provedor da Misericórdia dos dois juízes ordinários de Almada que haviam exercido funções no ano anterior.

Foram "mamposteiros" de 5. Lázaro, no Século XVI, D. João de Portugal, que inspirou o famoso "romeiro" de Garrett, D. João de Abranches e Fernão Mendes Pinto, entre outros.

Segundo supomos a albergaria situava-se do lado Norte da Rua Carvalho Freirinha, perto das novas instalações do Ginásio Clube do Sul. Neste local foram encontradas ossadas (não estudadas) que deviam pertencer ao antigo cemitério do gafos.

As casas da albergaria estavam separadas da povoação por uma Quinta de lavoura. No mesmo sítio Esteve instalado no Século XVIII o "hospital dos ingleses" uma instituição que provia à assistência de passageiros e tripulantes de barcos ingleses, incluindo os obrigados às quarentenas.

Vista norte de Cacilhas. Em primeiro plano ao lado esquerdo, dois marinheiros carregam cestos a partir de uma barcaça, com a inscrição 'JWells Aqua', para o convés de um ferry-boat onde uma mulher e dois homens aguardam. Do lado direito um barco transporta um passageiro abrigado por um dossel e seis remadores. Vista da igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso, do porto e do lugar de Cacilhas. A bandeira inglesa sobre o hospital. Ao fundo, veleiros no rio Tejo.
in British Library    
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Ainda há poucos anos os terrenos neste sítio pertenciam a súbditos ingleses que os devem ter adquirido à antiga instituição; o hospital dos ingleses deixou de funcionar em meados do Século XIX.

Praia de Cacilhas, The Harbour of Lisbon, Charles Henry Seaforth (1801 - c. 1854).
Imagem: reprodução em colecção particular

No Século XVI a povoação é frequentemente citada com a designação de "porto de Cacilhas" e tanto quanto sabemos era uma pequeno aglomerado que não consta que dispusesse: sequer de igreja que não fosse a dos lázaros, a qual enquanto houve leprosos (até ao Século XV) servia apenas a estes.

No Século XVII já estava em funcionamento outra ermida, a de Santa Luzia, dependente da matriz da Freguesia de Santiago.

O terramoto de 1755 destruiu ambas as ermidas, que não foram reconstruidas. A ermida de Santa Luzia situada talvez no Beco do Bom Sucesso, logo à entrada, segundo cremos, pela existência de um painel de azulejos que se conservou até há pouco num pequeno prédio e pela antiga designação de "Rua das terras da igreja".

Cacilhas, Caes e Pharol, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Em meados do Século XVIII já ao antigo orago da ermida Santa Luzia se sobrepunha o novo a Senhora do Bom Sucesso que vem a ser a invocação da nova Igreja de Cacilhas, construída após o terramoto.

De S. Lázaro, protector dos leprosos, passa se a Santa Luzia, ainda protectora de doentes e depois à Senhora do Bom Sucesso orago de navegantes; uma evolução que exprime, de certo modo, a transformação social e económica: de sítio de passagem, relativamente pouco povoado (até ao Século XV) e albergue de doentes e viajantes passa a porto importante com grande movimento comercial e predomínio de população ligada às fainas marítimas.

Cacilhas, Caes e Pharol, ed.Tabacaria Havaneza, década de 1900.
Imagem: Delcampe

É pelos Séculos XVII e XVIII que aparecem os grandes armazéns de vinhos e de azeites em Cacilhas, principalmente ao longo do Ginjal, correspondendo ao apogeu da cultura da vinha na região de Almada.

Em 1838 o porto foi melhorado com a construção de um cais de alvenaria sobre o Pontaleto, formando esporão e com a construção ou reconstrução da muralha que ia desde o Pontaleto ao extremo Sul da praia, frente à actual Rua Cândido dos Reis. No extremo do esporão e escadaria que o rematava instalou se uma coluna de pedra com uma lanterna, servindo de farol.

Cacilhas, Charles Chusseau-Flaviens, c. 1900/1919
Imagem: George Eastman House

Em princípios do Século XIX Cacilhas estendia-se quase duas centenas de metros ao redor da pequena baía. (2)


(1) O Panorama, n° 18, vol. IX, Lisboa, Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, 1847
(2) R. H. Pereira de Sousa, Almada, Toponímia e História, Almada, Câmara Municipal de Almada, 2003, 259 págs.

Alguns artigos relacionados:
Na esplanada do forte de Cacilhas
Cacilhas vista do Tejo, em 1847

Tema:
Cacilhas

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A condessa d'Alfasina

Nos dias da regência de D. Fernando (1853-1855), F. C. era um rapaz alto, bem posto, moreno, ou antes azeitonado dos climas d'Africa, onde passara alguns annos. Olhos castanhos de boa luz, sobrancelhas espessas e moço sobretudo distincto. Quando, já velho, entrava na camara dos pares e cumprimentava o presidente, ninguém o fazia com mais senhoril e natural elegância.

Uma extensa vista de Lisboa no rio Tejo com a praça do Terreiro do Paço, a velha catedral e o castelo de S. Jorge, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: MAGNOLIA BOX

A condessa D... namorou-se perdidamente d'elle. A condessa D... era a tentação feita mulher. Ainda ha por ahi, senão muitos, pelo menos alguns velhos, como eu, que a conheceram. 

Estou a vêl-a!... Pupilla negra, nadando no crystal da esclerotica. Pestanas recurvas cerrando-se, ás vezes, com voluptuosidade de sonho sensual, para em seguida, entreabrindo-se, partir a seta faiscante, pérfida, mortal e divina!

Os arcos das sobrancelhas estreitos, porém pronunciados. Nariz delicado; as azas a palpitar, aurindo ás correntes vivas dos dias vernos dos vinte e cinco a vinte e seis annos.  Lábios carnudos, um pouco desunidos no meio, como o botão vermelho, e entremostrando apenas as preciosas pérolas. N'uma das faces, próximo ao canto da bôcca, um pequeno lunar. Colorido forte, supremo encanto das morenas, em ondas, se a commoção era violenta. 

Delgada e flexivel como o vime. Cingindo-se no amante appetecido teria a lubricidade venenosa da serpente e a ternura solicita das heras. Pagã e mystica. Aphrodite e Santa Philomena dos bosques. Invulnerável á dedicação constante e apaixonada, como se Cupido lhe houvesse inoculado o antídoto do amor ideal no sangue impetuoso. Hysterica; a hysterica na sensualidade é de tal modo ardente e requintada que não chega nunca a realisar as ambições desenfreadas dos seus nervos.

Nu feminino reclinado, Amélie, daguerreótipo, Félix-Jacques Moulin, c.1852-1853.
Imagem: Wikipedia

Ai do homem que lhe cae nos braços! F. C. foi, entre tantos, o único que a volúvel condessa D... amou longamente; mas não podendo, coitada, resistir ao seu temperamento, veiu a trahil-o com D. Fernando.

Uma noite, no Paço das Necessidades, pouco antes de romper a alvorada, despediu-se caridosamente do rei.

Á Pampulha metteu-se n'um bote, atravessou o Tejo, veiu aqui para Alfasina, que me fica a dois passos, e, n'uma casa situada n'um ponto de vista deslumbrador, consorciou-se com alguém, que não sei se ainda vive.

Caparica, miradouro de Alfazina, 2014.
Imagem: Coysas, Loysas, Tralhas Velhas...

F. C, ao tempo, era já casado, estava longe das verduras da mocidade, e, sabendo da ultima cartada que jogara a sua antiga amante, sorriu-se com motejador contentamento. D. Fernando acudiu a Shakespeare para definir, despeitado, o caracter da condessa:

D. Fernando II e sua segunda esposa, Elise Hensler, condessa d'Edla.
Imagem: Wikipédia

— "Pérfida como a onda!" (1)


(1) Bulhão Pato, Memórias Vol. III, Quadrinhos de outras éphocas, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1907

sexta-feira, 10 de junho de 2016

A Procissão

Tocam os sinos, da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia — que Deus a proteja!
Vai passar a procissão.

Costa da Caparica, procissão, 1929.
Imagem:
Delcampe - Bosspostcard

Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o sol-e-dó.
Quando o regente lhe acena co'o braço,
Logo o trombone faz pó-pó-pó-pó.

O regresso da filarmónica da extinta Sociedade Marítima do Porto Brandão, integrada no círio do Cabo Espichel.
Imagem: Correia, António, Divagando sobre Caparica..., Almada, edição do autor, 1973

Olha os bombeiros, tão bem alinhados
Que se houver fogo, vai tudo num fole!
Trazem ao ombro, luzentes machados
E os capacetes a rebrilhar ao sol.

Bombeiros Voluntários de Cacilhas, vista tomada do antigo quartel para o rio.
Imagem: Mário Feio

Tocam os sinos, da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Costa da Caparica, procissão, 1926.
Imagem:
Delcampe - Bosspostcard

Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes, nas opas vermelhas!
Ninguém supunha que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!

Costa da Caparica, procissão com a imagem do Menino Jesus do Sarrico ou da Praia, 1926.
Imagem:
Delcampe - Bosspostcard

Ai, que bonitos que vão os anjinhos!
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!

Costa da Caparica, procissão, 1926.
Imagem:
Delcampe - Bosspostcard

Tocam os sinos, na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Costa da Caparica, procissão, 1926.
Imagem:
Delcampe - Bosspostcard

Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que sobem ao Céu!

Costa da Caparica, procissão do Senhor dos Passos, década de 1940.
Imagem: Sandra Barros Simões

Com o calor, o Prior vai aflito
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!

O padre Baltasar pregando à multidão na praia da Costa da Caparica, 1937.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Tocam os sinos, na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia  que Deus a proteja!
Já passou a procissão. (1)



(1) Antóno lopes Ribeiro, A Procissão ou Festa na Aldeia

quinta-feira, 9 de junho de 2016

As Ondinas de Adriano Sousa Lopes

Na praia tranquilla murmuram sonoras
As ondas do mar.
E, ao dôce das aguas murmúrio palreiro,
Na areia dormita gentil cavalleiro
Á luz do luar.


Costa da Caparica, Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944).
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

As bellas ondinas emergem das grutas
De vivo coral,
Accórrem ligeiras, e apontam, sorrindo,
O moço que julgam devéras dormindo
No argênteo areal.


Vem esta, e perpassa do gorro nas plumas
As mãos de setim.
E aquella, com gesto divino, gracioso,
Nos ares levanta do joven formoso
O áureo telim.


Costa da Caparica.
Imagem: AVM

Ess'outra, que lavas, que fogo não vibram
Seus olhos de anil!
Debruça-se e arranca-lhe a rútila espada,
Nos copos brilhantes se apoia azougada,
Travessa e gentil.


A quarta, saltando, retouça, lasciva.
Do moço em redor;
Suspira mansinho, de manso murmúra:
"Podésse eu em vida gosar a ventura
Do teu fino amôr!"


Marguerite Gross Perroux, década de 1920.
Imagem: MNAC

A quinta rebeija-lhe as mãos, enlevada
Num sonho feliz,
E a sexta, com tremula e doce esquivança,
Perfuma-lhe a bòcca, formosa creança!
Com beijos subtis...


As Ondinas, Adriano Sousa Lopes, 1908.
Imagem: MNAC

E o moço, fingindo que dorme tranquillo,
Não quer acordar.
E deixa que o abracem as bellas Ondinas,
E languido gosa caricias divinas

A luz do luar... (1)

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Prova de pensionista do último ano em Paris, esta obra de Sousa Lopes inspira-se num poema com a mesma temática de Heinrich Heine (romântico alemão), traduzido por Gonçalves Crespo.

Auto-retrato, Adriano Sousa Lopes (1879-1944).
Imagem:

A sua criação plástica manifesta uma estética simbolista, via pompier, destacando a narrativa e a imagética fantástica de seres ou espíritos elementares da água num espaço imaginário [...] (2)


(1) Heinrich Heine trad. Gonçalves Crespo in Nocturnos, As Ondinas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1882
(2) Maria Aires Silveira, MNAC

domingo, 5 de junho de 2016

Villa Maria da Conceição

No Caramujo e Romeira, os edifícios de habitação mais antigos (para além das habitações existentes sobre os armazéns), estavam implantados entre os armazéns, nos espaços livres entre as fábricas ou eram antigos armazéns adaptados,

Villa Maria da Conceição, 2016.
Imagem: AVM

como é o caso da Vila Maria da Conceição, um antigo armazém de vinhos.


A carta de 1813 mostra que o ribeiro da Mutela desaguava no Tejo através de dois braços, um deles dirigindo-se para a Romeira.

Carta Topográfica Militar da Península de Setúbal (detalhe), José Maria das Neves Costa, 1813 — 1816.
Imagem: IGeoE

Em 1849, o ribeiro só estava canalizado para o lado da Romeira, já não desaguando nas valas, também conhecidas por "abertas".

Plano Hydrográfico do Porto de Lisboa (detalhe), 1847.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Aqui construiu-se uma comporta que impedia a entrada da água nas marés vivas; sem o controle da comporta, a água, ao penetrar pela vala, transpunha as suas margens, alagando a parte baixa da Cova da Piedade.

Almada, Romeira, Paulo Emílio Guedes & Saraiva,16, década de 1900.
Imagem: Delcampe

O sítio ficou conhecido por Sarilho, nome do engenho que fechava a comporta e que ficava situado no cruzamento entre o Largo da Romeira e a Rua Manuel José Gomes, junto ao início do quarteirão da Vila Maria da Conceição.

Panorâmica da fábrica William Rankin & Sons na quinta do Outeiro no Alfeite, 1885.
Imagem: Alexandre M. Flores, Almada na história da indústria corticeira e do movimento operário...

[...] que se localiza em frente de uma das antigas portas da [fábrica] Rankins [instalada numa quinta senhorial do século XVIII]. (1)


(1) Samuel Roda Fernandes, Fábrica de molienda António José Gomes, Lisboa, Universidade Lusíada, 2013