segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O casamento de Elvira e Bordallo

Apesar das determinações paternas, Raphael Bordallo continuou sempre desenhando tudo que lhe apparecia: e em 1857, pequenote ainda, estando em Cacilhas, fugido da febre amarella com sua familia, pintou um quadrito a oleo, que existe hoje no Alemtejo, em casa de uma tia sua, cópia — o quadro, não é a tia — de uma lithographia representando uma família de camponezes á espera de um filho ausente, todos sentados á beira-mar; composição em que se notou desde logo sentimento e gosto... (1)

Regata dos barcos da Channel Fleet em Lisboa, 1869.
amazon

Conhece-se o amor no muito que se sacrifica; é talvez uma das differenças mais intimas que ha entre elle e a amizade: a amizade faz sacrificio de muitas cousas, o amor sacrifica-se muito a si. Por isso na hora em que Raphael Bordallo se apaixonou pela senhora [Elvira Ferreira e Almeida] com quem veio a casar [no dia 15 de setembro de 1866], cortou logo por todo o genero de prazeres e de divertimentos que lhe tornavam a vida agradavel, e foi viver uns poucos de mezes na Outra-banda, onde essa menina estava a banhos.

Viria como um assassino, como um malfeitor, como um homem muito facinoroso, sempre escondido, sempre disfarçado, por causa da mãe da menina, que costumara reprehendel-a asperamente quando o avistava. O primeiro amor ó muilo cantado, mas não lhe fazem n'isso favor nenhum, porque realmente o merece; basta ser o unico tão isento de amor proprio quanto o amor póde chegar a sel-o! 

Raphael Bordallo Pinheiro, 1876.
Museu Bordalo Pinheiro

No fim de um anno d'aquella vida quasi melodramatica, pela fórma, resolveu casar-se, casar-se ou morrer. 

Pede-se a noiva; mas ha recusa; elle tira-a aos patrios poderes por meio de justiça; o casamento faz-se em 13 dias; a noiva, menina. gentilissima, é depositada em Cacilhas; o casamento tem logar em Almada. Se quasi toda a gente se casa moça, muito moça, é provavelmente por ser essa a idade da audacia, da coragem, estavam com medo que eu dissesse, das loucuras? nunca! 

Elvira Ferreira de Almeida.
Museu Bordalo Pinheiro

No dia do seu casamento fazia uma ventania que ia tudo pelos ares. Elle passeava no caes de Cacilhas, vestido como é proprio nas grandes occasiões, casaca, gravata branca, esperando pessoas de amisade que deviam ir de Lisboa...

O tempo a passar, o vento cada vez mais rijo, e elle passeando, passeando...

Antes que cases, olha o que fazes.
Raphael Bordallo Pinheiro, Album de caricaturas

Já se dizia que não queria casar. Perguntava-se por elle a quem se encontrava:
 
Que é do homem?
Qual homem?!
O noivo?
— O Bordallo?
Ainda não veiu?   
Não. Vossê viu-o?
— E vossê?
Quem o viu?
É celebre!...

Veiu o padrinho por alli abaixo procural-o, e queria que elle fosse n'um burro para chegar mais depressa:

— Monte no burro, avie-se!
— Não vou, não vou; no burro, não vou! retorquiu Raphael com dignidade.
— Estamos ha que tempos na egreja á sua espera!
— Pois agora vamos; mas vamos a pé; é só mais um instante...

O janota de chapeu alto, Raphael Bordallo Pinheiro.
Bordallo Pinheiro

Escapou do burro, mas não poude fugir ao chapeu de chuva, e marchou para Almada, "en grand tenue", de guarda-chuva aberto. 

Chega emfim a S. Thiago de Almada, tranquillisa pela sua presença os animos agitados dos circumstantes, fecha o chapeu de chuva; momentos depois, tudo está dito: casou. 

Roque Gameiro.org

Aquelle acontecimento tinha para elle todas as seducções da liberdade, tinha até certo encanto phantastico; realisar o seu ideal, alcançar a escolhida do seu coração, tudo isso longe de Lisboa e podendo dizer ao padrinho como nos melodramas;

Diante de nós o mar, ao nosso lado o mar, em redor de nós o mar! 

Porque Raphael Bordallo é uma imaginação para tirar partido de tudo, não brincando como se poderá julgar, mas a serio, extremamente a serio, com todo e, enthusiasmo de um temperamento em que as tristezas, as alegrias, e as exaltações são sempre subtis, imprevistas, ardentes, febris. 

Lisboa vista de Almada, J. Laurent (1816-1886), c. 1870.
Archivo Ruiz Vernacci


Diziam-lhe á volta para Cacilhas:

O mar está horrivel! Isto vai ser agora um pouco desagradavel!...
Qual desagradavel! É uma viajata. É tempo de que os portuguezcs comecem a ter estimação pelo movimento, pela novidade, pelo sair da toca!
Pois sim, mas póde a gente sair da toca n'um dia ameno. 
Nada; não senhor. Isso é desconhecer o gosto pelas viagens. As viagens exigem, para serem em termos habeis, commoções, surprezas, perigos. Entre nós ainda nem se percebe isto correntemente porque ha horror a separar-se um homem do Chiado, ou do Rocio. Os portuguezes, ainda teem medo de sair da sua rua. E querem dizer que já isto vae melhor. D'antes acham-se de alguma vez um ou outro, por casos políticos, na França ou na Inglaterra, emigrado. Agora nem isso! E não ê senão pela teima de se deleitarcm em viver quietos, contentando-se com o seu bairro [...]

O vento soprava rijo...

Rafael Bordalo Pinheiro e familia em 1879.
Museu Bordalo Pinheiro (Flickr)

Como elle assovia! diziam os circumstantes segurando os chapeus.
Deixe assoviar. É o modo d'elle de celebrar meus louvores!

Havia uma tempestade.
Os noivos deviam partir para Belem, onde ficariam residindo.
O mar estava medonho.

Retrato de Elvira Bordalo Pinheiro, Columbano, 1883.
MNAC

Ninguem se atrevia a embarcar; quando se consultava os barqueiros, os honestos homens respondiam torcendo o barrete:

Está picadito, o mar está picadito!
—  E se formos a remos?
Vamos metter muita agua!
O melhor é esperar pelo vapor.
O vapor virá só de tarde, e não atraca, provavelmente.
Vamos embora!

Não houve remedio.
Embarcaram [...]

—  Não está mau torrão! dizia o padrinho, embrulhando-se no toldo, em quanto a noiva ria, ria [...]

Ih! Cuidado! O bote vai a metter a quilha na agua...
Não ha novidade! dizia o homem do leme.
Então posso continuar? perguntava Raphael ao padrinho.
Tomára-me eu em terra!

E o noivo, olhando para a noiva, e meigamente:

Tambem eu! 

Zé Povinho e Maria Paciência.
Museu Bordalo Pinheiro (Flickr)

Depois, n'outro tom para o padrinho: 

—  Mas, como eu dizia, deixemo-nos de historias, nada d'isso é tão digno de estimação como passar as aguas, separar-se da cidade, da Lisboa querida, nossa patria e nosso enlevo, e ir de viagem casar a Almada! É ou não é? (2)


(1) Raphael Bordallo Pinheiro, Album de caricaturas, Lisboa, 1876, cf. prefácio de Julio Cezar Machado
(2) Idem

Artigos relacionados:
Egreja de S. Thiago em Almada
Quarentena

Informação relacionada:
Centro Virtual Camoões: Rafael Bordalo Pinheiro
O amor italiano de Bordalo Pinheiro
Bordalo na Gare Rodoviária do Oeste
Museu Rafael Bordalo Pinheiro (Flickr)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O Theatro d'Almada

Em 16 de Julho de 1849, o famoso Actor Isidoro, Isidoro Sabino Ferreira de sua graça completa (1828-1876), estreou-se neste palco como artista profissional. Mais tarde, em 1868, este comediante, de sociedade com o popularissimo actor Taborda (1824-1909) assinaram a escritura para a compra do referido teatro,que restauraram e exploraram por uns tempos.

Entrada do pátio do Prior do Crato em Almada, espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

A título de curiosidade se transcreve parte da escritura notarial:

"...Cenifico que em 19 de Agosto de 1868 se verificou a apresentação n.° 5 no diário de três escrituras com data de 14 do presente mês celebradas a 1.a a folhas 97 a 2.a a folhas 99 e a 3.a a folhas 99 verso do livro 325 das Notas do Tabelião de Lisboa João Baptista Pereira, sendo apresentante Isidoro Sabino Ferreira, casado, actor dramático, morador na Rua das Escolas Gerais, n.° 9, freguesia de S. Vicente, Bairro de Alfama. 

Isidoro Sabino Ferreira por Joaquim Pedro de Souza, 1859.
FBAUL

E por virtude destes títulos se inscreve em seu nome e no seu com-possuidor Francisco Alves da Silva Taborda, também actor dramático, casado, morador na Rua dos Calafates n.° 76, freguesia da Encarnação, Bairro Alto, o domínio pleno sobre o prédio n.° 278 descritos a linhas 143 verso do livro terceiro."

Actor Taborda, 1880.
Album de Glorias, Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Para localização do dito teatro nos dias de hoje se transcreve outra e elucidativa passagem da mencionada escritura:

"Prédio urbano (teatro) que consta de sala de espectadores com seu pátio e duas galerias, sotão e corpos contiguos de loja e primeiro andar, dependências do mesmo edifício, tendo na sala de espectáculos uma janela, outra no salão do teatro, outra no 1.° andar da casa contígua do lado do Pátio do Prior e  mais duas janelas para o lado da Rua da Boca do Vento.

É situado na freguesia de São Tiago de Almada, e tem os números de policia quatro a sete para o lado do dito Pátio do Prior e números um e dois para a referida Rua da Boca de Vento.

Confronta pelo norte com o prédio de António José Alves de Bastos e com o Pátio do Prior, pelo lado sul com prédio de António Ferreirade Pinho e Rua da Boca de Vento, pelo nascente pelo dito António Ferreirade Pinho e com o dito Pátio, e pelo poente com Domingos Caetano Rodrigues. 

Calçada da Barroquinha, espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

Calcula-se o valor venal deste prédio com duzentos e oitenta mil réis e o seu rendimento líquido (...) em trinta mil réis. 

Esta descrição foi feita à vista de três escrituras públicas, datadas de 14 do presente mês lavradas, a 1.a a folhas 97, a 2.a e a 3.a a folhas 99 verso do livro 325 das Notas do Público da Cidade de Lisboa João Baptista Pereira e da declaração suplementar assinada por Isidoro Sabino Ferreira e apresentada pelo mesmo nesta Conservatória sob o número 5 do diário em dia 19 de Agosto de 1868. As escrituras foramentregues ao apresentante e a declaração ficou retirada num maço n.° 3 do corrente ano. Fica o prédio lançado no índice supra."

Perspetiva da rua da Judiaria em Almada,
espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

Também a título de curíosídade se transcrevem duas passagens das Memórias do Actor Isidoro, rublicadas em 1878, em que faz referência ao celebrado Teatro de Almada:

"Caprichos da natureza!... Aínda não há dois anos, estava eu tão gordo!... Tinha uma apparencia a tal ponto clerical, que dei motivo ao seguinte caso:

Trazendo obras no theatro d'Almada, fui d'aqui (de Lisboa) n'um domingo de manhã levar a féria aos operários. 

Chegado a Cacilhas,montei n'um jumento, e elle ahi marcha para Almada vergando com o meu peso!

Ao fim da calçada, apenas dobro o cotovello, d'onde se descobre a porta da egreja da Misericordia, vejo um immenso grupo de gente, que apenas me avista, se põe em movimento entrando atropeladamente para a egreja!... O sino toca apressado, dando o signal de ultima vez!...

Aproximo-me, e oiço uma estrepitosa gargalhada solta pelas pessoas que ainda estavam na rua, por não terem achado logar na egreja!... 

Perspectiva da rua Direita de Almada,
espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

Era eu o motor de tal gargalhada... porque vendo-me tão gordo, de chapéo de sol debaixo do braço e o chapéo da cabeça inclinado para traz, segundo o meu uso ordinario, marchando a cavallo tão pachorrentamente, como eu dizia n'um couplet da Loteria do Diabo:

E n'aquelle passo lento
Em que tanto me fiava,
Era ás costas do jumento
Que melhor eu ressonava... 


Por todas estas apparencias tinham-me tomado pelo padre que se esperava para a missa, e aqui está
o motivo de todo o movimento operado á minha apparição!..." (págs. 69 e 70 da citada obra.) 

Outra passagem:

"O melhor expediente que a sociedade achou foi, dar de prompto um espectaculo no theatro d'Almada, em seu benefício, composto de peças que já tinham sido dadas no seu theatro particular.

Fez a direcção os maiores sacrificios para arranjar os meios indispensáveis para preparar a partida da sociedade para o theatro d'Almada. 

Realisou-se o projectado beneficio em 16 de Julho de 1848, com a comedia em tres actos, O Rachador escocez. e a comedia em um acto, A Sociedade dos 3, sendo os papeis de primeira dama desempenhados por um dos directores da sociedade o sr. José Maria da Cruz Moreira, vulgo, José Maria Alfaiate, que apesar da differença do sexo, e da falta de formosura indispensavel nas damas amorosas, no mais preenchia perfeitamente o seu lugar!...

Fazia os primeiros papeis de baixo comico, o sr. José Maria Rodrigues, conhecido nos theatros particulares d'aquella época por José Maria Carpinteiro, era tal o seu merecimento no alludido genero, que por mais de uma vez foi chamado a represenlar em theatros publicos... mas o seu acanhamento ou excessiva modestia, o deixaram ficar até hoje, amarrado ao banco...de carpinteiro!

Eu representei n'esta recita o papel de galan sério... e lá me escapei como pude...

Do resto a sociedade não houve nada de maior a notar.

Acabada a representação, foi-se a contas, e verificou-se que a receita mal tinha chegado para as luzes!... 

Novos embaraços para a direcção!... 

N'estas occasiões, nunca faltam amigos officiosos dando os seus pareceres sobre os acontecimentos da noite!... Os d'esta vez disseram que a falta de concorrencia, era devida ao estar o espectaculo mal annunciado... portanto que annunciassemos melhor para o dia seguinte, e teriamos uma enchente!...

A promessa era tentadora, vista as precarias circumstancias da sociedade!... 

Depois de seria conferencia da sociedade, decidiu-se dar a segunda recita no dia seguinte, e para evitar a falta de que fomos accusados, mandou-se vestir com fatos apropriados, dois rapazes que tinham ido para tocar clarim na peça, e montados em jumentos correr as ruas d'Almada tocando clarim em ar de bando!... 

Chegou a noite, e nem um camarote alugado!... 

A direcção na esperança ainda de avisar o anuncio que o bando tinha feito de dia, mandou tocar os clarins á porta do theatro... e... nada!... Tornou a mandar tocar... e... nada!...  Mandou ainda tocar, e ainda nada!

Entrada do pátio do Prior do Crato em Almada, espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

Finalmente, apparece meia dusia de pessoas, que nos explicam, que a falta de espectadores que ainda n'aquella noite se notava, era devida a ter-se espalhado pela villa, quando se ouviu toques de clarim, que tinha chegado uma força a Almada, e que estava tocando a unir, para depois fazer a distribuição dos aboletados [soldados aquartelados em casas particulares] por toda a povoação!... tratou toda a gente de se fechar em casa, em vez de sair para o theatro! Imagine-se que novos embaraços, este ultimo revez acarretou sobre a pobre sociedade!...

Voltei ainda a represenlar, n'este anno de 1848, e no seguinte, sempre em beneficio d'outros, e sem mais responsabilidade, a não ser o desempenho dos meus papeis... mas sem que se desse caso algum digno de menção.

Finalmente tornei ali em 13 d'outubro de 1849, a representar A vingança, drama em cinco actos, e Os politicos do seculo XIX, comedia em um acto, originaes do sr. Adjuto Manuel da Conceição dos Reis, homem de talento, grave e sisudo, que andaria a este tempo, pelos seus quarenta e cinco annos, digno, em tudo de respeito e admiração, mas que tinha a fraquesa de querer representar os papeis de primeira dama, em todas as sociedades particulares, que organisou, sustentou e ensaiou por espaço de muitos annos! 

N'esta noite, representou no drama o papel de Margarida de Santi, um papel entre tragico e o ultra-romantico... e apesar de um sem numero de circumstancias que tinha contra si, fez-se agradar n'esta noite do publico pagante d'Almada!" (págs. 142, 143, 144 e 145 da citada obra) (1)

Isidoro Sabino Ferreira (1828-1876).
HathiTrust

Realisa-se, no dia 15 do corrente [fevereiro de 1879], no theatro de Almada, uma recita extraordinaria, em beneficio,como espectáculo seguinte: o drama em 3 actos "Scenas do Brazil", As comedias: "Um noticiarista" e o "Criado politko", a poesia: "Um artística invalido," e umas cena cómica. 

Tomam parte, por obsequio o sr. Liberato da Silva e os distinctos amadores da sociedade União Dramatica. No salão do theatro toca, também por obsequio, a philarmonica União d'Artistas Cacilhense. 

O espectáculo não pôde ser mais attrahente. (2)


(1) Romeu Correia, Um pátio de comédias em Almada, Movimento Cultural, ano II n.° 3, 1986
(2) Diário Illustrado, sabbado 15 de fevereiro de 1879

Leitura relacionada:
Memorias do actor Izidoro [i.e. Isidoro Sabino Ferreira] / ... Ferreira, Isidoro Sabino, 1828-1876.

Mais informação:
As Bandas de Música no distrito de Lisboa entre a Regeneração e a República (1850-1910)



Este Pátio do Prior, à Boca de Vento, tem uma história de primeiro plano na memória de Almada. Chamava-se assim por as suas casas terem pertencido a D. António. Prior do Crato, que as herdara de seu pai, D.Luís, duque de Beja e irmão do rei D. João III. Este fidalgo fora donatário de Almada e, segundo a tradição, ordenara a sua construção. Após o desastre de 1580, a perda da nossa independência e o exílio de D. Amónio, as casas passaram para a posse dos Abranches, que, em vésperas da revolução de 1640, aí conspiraram e receberam o duque de Bragança, futuro D. João IV.

ASPECTO DA ENTRADA DO PÁTIO PRIOR DO CRATO NO LUGAR DA BOCA DO VENTO - ALMADA
AMRS

No fim da primeira metade do século XIX teve aqui lugar o Teatro de Almada, muito frequentado, na época estival, pelos veraneantes que ocorriam às praias desta margem. Utilizando a sala de espeçtáculos, a Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, fundada em 1 de Outubrode 1848, teve neste teatro a sua primeira sede.

cf. Romeu Correia, Movimento Cultural, ano II n.° 3, Dezembro 1986

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Brigue Pedro Nunes

O cahimento de hum navio no mar, hé o acto mais solemne que tem a marinha, e sem entrarmos agora nessa demonstração, conhece-se desde logo a sua importância e belleza, pelo afan com que o publico em todos os paizes do mundo civilisado concorre a presencia-lo attrahido por quantas maravilhas o mesmo acto, e o navio comprehendem. 

Brigue Pedro Nunes, João Pedroso Gomes da Silva, 1857.
Palácio Nacional da Ajuda

Com effeito a scena da fuga, ou ausência daquelle volume inerte e pesadíssimo, que se move como animado de força própria, ou impellido por mãos de fadas, hé tão singular, e produz na alma sensações tão gratas e novas, apesar de esperadas, que nos extasiam. 

Por pequeno que hum navio seja, hé sempre grandíssimo em relação ao individuo (homem) que o ha de tripular, e fazer mover pelo mechanismo da roda do leme que o ajuda a dar-lhe direcção: duzentas toneladas, por exemplo que hé só a parte que hum pequeno navio immerge, corresponde ao volume e peso de dois mil e seiscentos homens; e hé hum homem só, nesse acto do lançamento ao mar, que parece dar-lhe o primeiro impulso, para a carreira que o leva a fender o fluido que o ha de sustentar na posição conveniente ao seu arriscadíssimo e aventuroso serviço.

Na sua carreira fumegante, como que se despede para sempre da terra que o vio levantar-sc pouco a pouco d'entre hum montão de madeiros dispersos a destacados, sem figura alguma regular, até ao admiravel aggregamento delles, que, á primeira vista nada tem de commiim entre si, e donde resulta a final aquelle composto das mais bellas formas, das mais graciosas linhas curvas em tão diversos planos, dos contornos mais elegantes e variados, que apresenta o lindo casco de hum navio bem construído; onde só ha de rectilinea a quilha, na construcção moderna, pois na antiga era esta também curva: 

"Que a morte intimam com fragor horrendo, 
De longe ás curvas quilhas." 

como descreve o nosso Diniz [Ode a Vasco da Gama].

Que esmero no calafeto do fundo, que segurança no cavilhame das cavernas e braços, na pregadura do costado, e do forro impermeável ao filtramento de qualquer gola d'agua; que união nas taboas do convés e cobertas, que meio engenhoso e solido de fixar os váus, dormentes, e trincanizes?!

Como de tantos milhares de partes disparatadas e heterogeneas, se compoz hum todo movel em todos os sentidos, invariavel na sua forma, qualquer que seja a posição que occupe, e resistindo ao choque poderosíssimo das ondas encapelladas sem se desconjunctar?! 

Admirável cousa na verdade, e tanto mais admirável, quanto mais se medita na perfeição e complexo desta machina chamada navio, onde todas as artes, e sciencias que a industria e intelligencia humanas imaginaram, são necessárias para o acabamento e desempenho a que se destina.

Navio de guerra disse o imaginativo creador da Revolução de Setembro, era em si "idéa, espada e caminho"! Sim, hé "idéa, espada e caminho"; e só a sua idéa podia compor esta definição que resume quanto o mesmo navio significa, tripulado e conimandado por quem entenda e falle correctamente a lingua do militar marítimo.

Brigue Pedro Nunes (detalhe), João Pedroso Gomes da Silva, 1857.
Palácio Nacional da Ajuda

Dois navios de guerra, pois, ainda que pequenos, cahiram no dia 21 de junho de 1850 ao mar, dos estaleiros do arsenal da marinha de Lisboa, em presença de milhares e milhares de espectadores!

O menor delles que hé a escuna Angra riscada pelo sr. Moraes, parece-nos poder desde já affirmar que ha de servir bem e nobremente ao seu fim; quanto ao de maior lote, o brigue Pedro Nunes aguardaremos as provas que a experiência der, para fazermos juizo do seu mérito como navio de guerra. 

No entre tanto, mais doas flâmulas portuguezas tremularão nos seus topes por esses mares, e talvez vão ainda a remotas plagas mostrar de novo a intrepidez e sabedoria que n'outras eras tanto distinguiram os Vascos da Gama, os Joões de Castro, os Antonios Galvões, os Farias, e os Magalhães. 

Talvez, dizemos nós, porque não hé só nos grandes navios que se realisam navegações arriscadas, nem tão pouco só nas batalhas de muitas náos e fragatas que se mostra a valentia e audácia dos. homens de guerra, como bem o demonstrou o capitão Pevrieux na noite de 16 de agosto de 1801 a bordo da canhoneira Volcan contra Nelson no ataque de Boulonha, e o nosso destemido Quintella na curveta Andorinha contra a fragata franceza Chiffonne perto da Bahia no dia 19 de maio de 1801.

Cabimento do Pedro Nunes e da escuna Angra.

— Relatando porém o facto de hoje, diremos que ás duas e três quartos da tarde, que era a hora do preamar, deviam estes dois navios cahir na agua, mas como se esperasse por El-Rei até ás quatro, e a maré começasse a baixar, sem que o mesmo senhor apparecesse, permittio Sua Alteza o sr. Infante D. Luiz que o brigue Pedro Nunes partisse em quanto podia nadar; e com effeito elle escorregou admiravelmente pela carreira, deixando os milhares de espectadores maravilhados do modo por que fez aquelle trajecto, e fluctuou sobre as aguas do Tejo que tão fagueiras lhe lambiam o costado. 

Pouco depois chegaram Suas Magestades, El-Rei e seu augusto pai com toda a real familia que assistiram ao cahimento da escuna Angra, a qual ainda mais veloz que o Pedro Nunes levantou pelo attricto dos cachorros na carreira, hum fumo immenso, efendeo as aguas do mesmo Tejo, com huma velocidade de 10 a 12 milhas, cercando-se de cachões de espuma alvíssima que a rapidez do sulco produzio. 

O corpo de marinheiros da armada com a sua musica, achava-se postado entre os dois estaleiros com a frente para o mar, a companhia de guardas marinhas com correias, armas e bandeira fazia a guarda de honra a Suas Magestades, como em tão solemne acto sempre se praticou; o arsenal estava apinhado de curiosos de ambos os sexos e de todas as classes e jerarchias; o reducto da inspecção, era occupado pela corte e ministros estrangeiros com suas famílias; no cáes da mesma inspecção havia hum toldo e cadeiras para os altos funccionarios e membros das camaras legislativas; as janellas da sala do risco e da escola naval foram offerecidas e franqueadas a muitas senhoras que as adornaram com a sua presença e beldade, terminando a funcção ao aprazimento de todos, e sem o menor transtorno ou desgosto, o que hé de bom agouro para os navios que lhe deram causa, e aos quaes desejámos o melhor e mais patriótico futuro. (1)

Brigue Pedro Nunes (detalhe), João Pedroso Gomes da Silva, 1857.
Palácio Nacional da Ajuda

Nascido em 31 de outubro de 1838 [o infante D. Luiz], um anno depois do senhor D. Pedro V, e obedecendo á vocação precoce, assentou praça na armada aos oito annos de idade, e foi nomeado guarda marinha em 9 de outubro de 1846.

Promovido ao posto de segundo tenente em 19 de maio de 1851, ao de capitão tenente em 29 de outubro de 1854, e ao de capitão de fragata em 24 de março de 1858, encetou com menos de vinte annos a vida do mar, assumindo em 12 de setembro de 1857 o commando de brigue Pedro Nunes, e cruzando na costa de Portugal desde o dia 18 de janeiro do seguinte anno, sujeito em tudo como simples official ás obrigações e á responsabilidade do serviço naval. (2)


(1) Joaquim Pedro Celestino Soares, Quadros navaes, 1861
(2) Coroa poética no consorcio de suas magestades fidelissimas... 1862

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Alfredo Keil e o vapor da carreira de Cacilhas

A boa fada que presidiu ao seu nascimento votara-o á Arte. Nasceu artista. Nas suas phantasias de creança, nos seus devaneios d’adolescente, apparecia-lhe sempre uma figura divina, que o chamava, sorrindo, mostrando-lhe coroas de louros.

Vapor no Tejo (detalhe), Alfredo Keil 1890.
Casario do Ginjal

Foram as artes plasticas que primeiro o attrahiram; a seducção da fórma, o deslumbramento da côr, levaram-n'o para a pintura. Consagrou-lhe com ardor Alfredo Keil os primeiros annos da sua juventude, e entre os moços pintores que, a esse tempo, procuravam uma vereda segura d'arte, elle era dos que seguiam impulsionados por mais orgulhoso enthusiasmo.

Natural de Lisboa, onde seu pae, Christiano Keil, era muito conhecido e estimado, partiu, em 1868, para a Baviera, com desasete annos, a encetar os seus estudos artisticos, e foi na patria d’Alberto Dürer, na velha e pittoresca Nuremberg, que começou a cultivar a arte.

O vapor da carreira de Cacilhas, Alfredo Keil.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

A residência n'essa cidade, tão impregnada da attrahente poesia do passado, tão cheia de velhos monumentos, nao podia deixar d'influir no espirito juvenil d'Alfredo Keil e lançar n’elle a semente d’essa poética melancolia que o faz procurar asylo, para as suas horas de trabalho, junto ás penedias do oceano, que parecem desmoronamentos de velhas cathedraes, e em que as ondas vem quebrar-se entoando psalmos d’uma liturgia grandiosa. 

De Nuremberg, Keil passou a Munich, mas a sua delicada saude obrigou-o a deixar a Allemanha, e foi em Lisboa, com Joaquim Prieto, que continuou a estudar pintura.

Barcos no Tejo, Alfredo Keil.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Em 1876 expoz, pela primeira vez, trabalhos seus na Sociedade Promotora de Bellas-Artes. Em 1878 concorreu á Exposição Lniversal de Paris com o seu bello quadro "Melancolia".

Em 1886 á Exposição de Pintura de Madrid com o "Pateo do Prior" e "Boa lamina" que lhe obtiveram o ser condecorado com a ordem de Carlos III. Já em 1885 o governo portuguez o agraciara, pelo seu mérito artistico, com o habito de Christo.

Em 1890 abriu no seu atelier, na Avenida da Liberdade, uma exposição onde apresentava umas trezentas telas, na sua maior parte estudos de marinhas e de paysagem, que quasi todas foram adquiridas por diversos amadores, muitos d’elles estrangeiros.

Cacilhas, Alfredo Keil.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Este artista, que, sem ser impulsionado pela rigorosa exigencia d'attender ás necessidades da vida, se dedicava com tal ardor ao trabalho, era um espirito complexo e inquieto, a quem a pintura não bastava, e, ao mesmo tempo que lançava na tela, n’uma pâte delicada e fina com escrúpulos singulares de nitidez, as suas impressões visuaes de paysagista, ia coordenando a harmonia dos sons, as vozes do mar a que estudava os cambiantes da vaga, a variedade de cantos, que em maravilhosos accordes animam o campo e os bosques, as alvoradas festivaes da natureza, os hymnos religiosos da noite, para os traduzir também pela arte sublime de Palestrina e de Mozart. (1)


(1)  Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos (II), 1898

Artigos relacionados:
Invocação
Palette de Alfredo Cristiano Keil (1850-1907)

Exposições:
Exposição de quadros de Alfredo Keil, O Occidente n.° 415, 1 de julho de 1890
Catalogo da exposição de pintura de quadros..., Lisboa, A Editora, 1910
Catalogo da exposição de pintura e desenhos de Alfredo Keil no salao da Ilustração Portuguesa . Abril 1912, Lisboa, Tip. A Editora Limitada, 1912 [IllustracaoPort n.° 322, 22 de abril de 1912]
Evocação da obra olisiponense do pintor Alfredo Keil [1953]
Exposição evocativa de Alfredo Keil, músico, pintor e poeta. Palácio Galveias de 3 a 18 de Julho de 1957

Leitura relacionada:
Alfredo Keil, Collecções e Museus de Arte em Lisboa, Lisboa, Livraria Ferreira e Oliveira, 1905
Alfredo Keil, Um independente, 1950
Olisipo n.° 63, julho de 1953
Rui Ramos, O Cidadão Keil, Publicações D. Quixote, 2010

Mais informação:
Delcampe
Alexandre Pomar, ALFREDO KEIL 1850-1907, Viagens artísticas, in EXPRESSO/Cartaz de 2/3/2002

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Henri l`Évêque, Cacilhas no início da década de 1800 (II de II)

O registro dos tipos sociais se tornará efetivamente um tema para artistas portugueses somente a partir de inícios do século XIX, difundindo-se pelo viés "pitoresco" da literatura de viagem. E, nesse sentido, mostra-se semelhante ao caso brasileiro. 

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 por Henri l`Évêque.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Admite-se que a primeira publicação a trazer estampas de tipos portugueses seja Travels in Portugal, do irlandês James Murphy, publicado em Londres em 1795

A portuguese merchant and his wife and maid servant, Travels in Portugal... 1789, 1790, James Cavanagh Murphy.
Biblioteca Nacional de Portugal

Segue-se a esta publicação o surgimento de uma coletânea de gravuras de fatura portuguesa em 1806, atribuída a Manuel Godinho, abridor de registros de santos e “estampinhas” devotas. Era aluno de Joaquim Carneiro da Silva (1727-1818), gravador especializado na Itália e criador da Aula de Gravura da Imprensa Régia.

Quer bote?
O barqueiro, Manuel Godinho, 1809.
O Mundo do Livro

As coleções de costumes de Lisboa  de Godinho totalizavam 70 estampas gravadas a buril que seriam republicadas com acréscimos em 1809, 1819 e 1826 com títulos como Ruas de Lisboa ou Povo de Lisboa.

Os demais exemplos relativos ao século XIX surgidos durante a pesquisa são prioritariamente estrangeiros.

De 1809, por exemplo, datam as têmperas do francês Félix Zacharie Doumet (1761-1818), atualmente no acervo do Museu da Cidade, que bem estariam por merecer um estudo comparativo com as aquarelas de Debret. 

La conversation portugaise ou le temps perdu, Zacharie Félix Doumet.
ComJeitoeArte

Do mesmo ano, data a publicação de Sketches of  the country, character and costume in Portugal and Spain de William Bradford, editado em Londres, que comporta quinze gravuras de tipos portugueses.

Aqueduct of Alcantara.
Sketches of the Country, character, and Costume, William Bradford, 1808/1809.
Biblioteca Nacional de Portugal

O mais famoso desses conjuntos seria o de autoria do francês Henri L’Evêque (1769-1832), intitulado Costume  of   Portugal (Londres, 1814), publicação dedicada a Antonio de Araújo e Azevedo, o conde da Barca (1754-1817).

L’Evêque era um típico viajante, que fazia render seu talento aplicando-o a novos assuntos destinados ao mercado internacional.

Embarque do principe regente de Portugal com toda a Familia Real em 27 de novembro às 11 horas da manhã [1807],
des. Henri L' Évêque (1769-1832), grav. Francesco Bartolozzi (1728-1815).
Biblioteca Nacional de Portugal

Foi responsável pelo desenho que deu origem à famosa gravura de Francesco Bartolozzi (1725-1815) que representa a partida do príncipe regente d.João para o Brasil. (1) 


(1) Valéria Piccoli, O tipo popular e o pitoresco

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Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800, apontamentos gráficos e notas descritivas comparadas com a publicação de Henri l`Évêque, Costume of Portugal, London, 1814

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 por Henri l`Évêque.
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Momento de cenário amplo do Tejo e Lisboa distante. Figuras, apresentação de tipos e costumes num mesmo espaço.

Distinguem-se parte da muralha e do parapeito da esplanada do forte de Santa Luzia. As construções estão sitas sobre um alfaque rochoso, o Pontaleto. Sentado junto à parede do armazém um mariola, espera um frete ou um recado.

À esquerda, um personagem de manto e sobrecapa, cobre a cabeça com um bicorne. Sentado num pequeno muro, está ligeiramente reclinado. Escreve ou desenha, talvez, num pequeno caderno que não mostra. Será um observador conhecido, um passante distinto, nós mesmos, ou L`Évêque, o autor.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe).
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Perto deste, os burriqueiros. O garoto e o asno teimoso que não se levanta. O outro, mais velho, acena aos clientes garantindo a albarda mais macia, a manta mais limpa, a cadeirinha para as senhoras... "Quer bote?! Quer bote?!" Ouvem-se os barqueiros. "Merca a laranja da china!" Apregoa a vendedeira, que negoceia com o homem vestido à moda, inglês, talvez, que não desmonta o burro para não se sujar no areal que crê imundo.

Em Lisboa e nos arredores usam-se muito os burros...

Ladies riding on asses, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

... à voz sagrada da religião, o coração do rico abre-se sem cessar à piedade, e o do pobre ao reconhecimento.

A poor woman, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

A baía espaçosa que forma o Tejo junto a Lisboa, e as costas vizinhas à foz deste belo rio, são tão ricas em peixe...

The fishwoman, La marchande de poisson, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

... os condutores destes barcos são, na maioria, originários da pequena província do Algarve, que é renomeada pelos excelentes homens de mar que fornece.

The waterman, Le batelier, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

Cães, sempre muitos destes animais, por toda a parte. A mulher, com a trouxa, ou cesta, debaixo do braço, recebe as ultimas recomendações da religiosa, sua ama. O tanoeiro sentado junto aos barris que o cliente há-de vir buscar, interrompe uma das jovens mulheres, talvez sua familiar. A outra conversa com o marido, ou irmão. Ao pedinte cego, o garoto que o acompanha desparasita-lhe os cabelos. Dois moços de fretes, galegos, aguardam. O barqueiro da pequena muleta impacienta-se.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe).
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

... a grande afluência de estrangeiros que o comércio trouxe a Lisboa, desde há uma vintena de anos, produziu uma mudança muito sensível no vestuário das damas.

A young woman wrapped-up in her great coat, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

Um elegante da classe do povo. Enverga um chapéu de três pontas, para se dar um ar de militar, tem um cigarro na boca, e embrulha-se num grande capote com mangas ["josésinho"], que traz durante todas as estações.

A petty beau, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

... outros percorrem a cidade, conduzidos por uma criança, ou guiados por um cão inteligente e fiel.

The blind man, L'aveugle, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

... são, na sua maior parte, naturais da Galiza (galegos) que vêm para Lisboa para fazer o trabalho de carregadores e de moços de recados, aproximadamente do mesmo modo que fazem os irlandeses em Londres e os saboianos em Paris.

The street-porter, Le porte-faix, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

O moço de estribaria segura as rédeas dos equídeos que, talvez, virão a acasalar. Dois cavalheiros, um com botas de montar, burgueses, talvez nobres, estão junto ao cavalo malhado. Atrás deste, um soldado de cavalaria da recém creada, por decreto do príncipe regente de 10 de dezembro de 1801, Guarda Real de Polícia sob o comando do exilado francês Conde de Novion. À direita os calafates, impermeabilizam os botes com estopa e bréu que fervilha no caldeirão da imagem seguinte.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe).
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Duas mulheres na praia, uma delas com uma criança, se forem lavadeiras, interromperam o trabalho na charca próxima à passagem do frade mendicante. Um bote é arrastado pelo areal, vai sair para Lisboa com o comerciante à proa e o soldado de pé. Mais ao lado está uma falua, com o seu mastro frontal tirado a vante e a quilha reforçada por quebra-mar.

Vista da praia de Cacilhas e panorâmica de Lisboa na década de 1800 (detalhe).
Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

... elas entregam-vos a roupa com uma brancura resplandecente, absolutamente desembaraçada de toda a espécie de nódoas, e perfumada com este odor suave que só a boa lavagem pode dar.

The washerwoman, La lavandière, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal

Os portugueses, sobretudo esses das últimas classes, têm uma veneração muito particular por Santo António, que nasceu em Lisboa, e que é conhecido pelo resto da catolicidade sob o nome de Santo António de Pádua.

The mendicant friar, Le frère queteur, Henri l'Évêque.
Costume of Portugal


Leitura relacionada:
Irisalva Moita, O povo de Lisboa, tipos, modos de vida, ambiente, mercados e feiras, divertimentos, mentalidade, Câmara Municipal de Lisboa, Direcção dos Serviços Centrais e Culturais, 1979
Agostinho Araújo, Foteini Vlachou, Miguel Figueira de Faria, Henri L’Évêque: artista viajante (1769-1832), Lisboa Scribe, 2018

Bibliografia:
Agostinho Araújo, Experiência da natureza e sensibilidade pré-romântica em Portugal : temas de pintura e seu consumo : 1780-1825, 1991
Agostinho Araújo, Foteini Vlachou, Miguel Figueira de Faria, Henri L’Évêque: artista viajante (1769-1832), Lisboa, Scribe, 2018

Edições impressas de Henri l`Évêque:
Henri L`Évêque, Campaigns of the British Army in Portugal, under the command of general the Earl of Wellington, K. B... dedicated by permission to his lordship, London, 1812
Henri l`Évêque, Costume of Portugal, London, 1814

Ligações adicionais:
Campaigns of the British Army
Costume of Portugal
Henri l'Evêque, c. 1814
Henri l'Evêque, c. 1814

Artigos relacionados:
Henri l’Évêque, artista viajante, primeiras impressões
Henri l'Évêque (1769-1832)
Nicolas Delerive (1755-1818)
Alexandre-Jean Noël (1752-1834), no Museu de Artes Decorativas de Lisboa
O Tejo de Jean-Baptiste Pillement
etc.