Regata dos barcos da Channel Fleet em Lisboa, 1869. amazon |
Conhece-se o amor no muito que se sacrifica; é talvez uma das differenças mais intimas que ha entre elle e a amizade: a amizade faz sacrificio de muitas cousas, o amor sacrifica-se muito a si. Por isso na hora em que Raphael Bordallo se apaixonou pela senhora [Elvira Ferreira e Almeida] com quem veio a casar [no dia 15 de setembro de 1866], cortou logo por todo o genero de prazeres e de divertimentos que lhe tornavam a vida agradavel, e foi viver uns poucos de mezes na Outra-banda, onde essa menina estava a banhos.
Viria como um assassino, como um malfeitor, como um homem muito facinoroso, sempre escondido, sempre disfarçado, por causa da mãe da menina, que costumara reprehendel-a asperamente quando o avistava. O primeiro amor ó muilo cantado, mas não lhe fazem n'isso favor nenhum, porque realmente o merece; basta ser o unico tão isento de amor proprio quanto o amor póde chegar a sel-o!
Raphael Bordallo Pinheiro, 1876. Museu Bordalo Pinheiro |
No fim de um anno d'aquella vida quasi melodramatica, pela fórma, resolveu casar-se, casar-se ou morrer.
Pede-se a noiva; mas ha recusa; elle tira-a aos patrios poderes por meio de justiça; o casamento faz-se em 13 dias; a noiva, menina. gentilissima, é depositada em Cacilhas; o casamento tem logar em Almada. Se quasi toda a gente se casa moça, muito moça, é provavelmente por ser essa a idade da audacia, da coragem, estavam com medo que eu dissesse, das loucuras? nunca!
Elvira Ferreira de Almeida. Museu Bordalo Pinheiro |
No dia do seu casamento fazia uma ventania que ia tudo pelos ares. Elle passeava no caes de Cacilhas, vestido como é proprio nas grandes occasiões, casaca, gravata branca, esperando pessoas de amisade que deviam ir de Lisboa...
O tempo a passar, o vento cada vez mais rijo, e elle passeando, passeando...
Antes que cases, olha o que fazes. Raphael Bordallo Pinheiro, Album de caricaturas |
Já se dizia que não queria casar. Perguntava-se por elle a quem se encontrava:
— Que é do homem?
— Qual homem?!
— O noivo?
— O Bordallo?
— Ainda não veiu?
— Não. Vossê viu-o?
— E vossê?
— Quem o viu?
— É celebre!...
Veiu o padrinho por alli abaixo procural-o, e queria que elle fosse n'um burro para chegar mais depressa:
— Monte no burro, avie-se!
— Não vou, não vou; no burro, não vou! retorquiu Raphael com dignidade.
— Estamos ha que tempos na egreja á sua espera!
— Pois agora vamos; mas vamos a pé; é só mais um instante...
O janota de chapeu alto, Raphael Bordallo Pinheiro. Bordallo Pinheiro |
Escapou do burro, mas não poude fugir ao chapeu de chuva, e marchou para Almada, "en grand tenue", de guarda-chuva aberto.
Chega emfim a S. Thiago de Almada, tranquillisa pela sua presença os animos agitados dos circumstantes, fecha o chapeu de chuva; momentos depois, tudo está dito: casou.
Roque Gameiro.org |
Aquelle acontecimento tinha para elle todas as seducções da liberdade, tinha até certo encanto phantastico; realisar o seu ideal, alcançar a escolhida do seu coração, tudo isso longe de Lisboa e podendo dizer ao padrinho como nos melodramas;
— Diante de nós o mar, ao nosso lado o mar, em redor de nós o mar!
Porque Raphael Bordallo é uma imaginação para tirar partido de tudo, não brincando como se poderá julgar, mas a serio, extremamente a serio, com todo e, enthusiasmo de um temperamento em que as tristezas, as alegrias, e as exaltações são sempre subtis, imprevistas, ardentes, febris.
Lisboa vista de Almada, J. Laurent (1816-1886), c. 1870. Archivo Ruiz Vernacci |
Diziam-lhe á volta para Cacilhas:
— O mar está horrivel! Isto vai ser agora um pouco desagradavel!...
— Qual desagradavel! É uma viajata. É tempo de que os portuguezcs comecem a ter estimação pelo movimento, pela novidade, pelo sair da toca!
— Pois sim, mas póde a gente sair da toca n'um dia ameno.
— Nada; não senhor. Isso é desconhecer o gosto pelas viagens. As viagens exigem, para serem em termos habeis, commoções, surprezas, perigos. Entre nós ainda nem se percebe isto correntemente porque ha horror a separar-se um homem do Chiado, ou do Rocio. Os portuguezes, ainda teem medo de sair da sua rua. E querem dizer que já isto vae melhor. D'antes acham-se de alguma vez um ou outro, por casos políticos, na França ou na Inglaterra, emigrado. Agora nem isso! E não ê senão pela teima de se deleitarcm em viver quietos, contentando-se com o seu bairro [...]
O vento soprava rijo...
Rafael Bordalo Pinheiro e familia em 1879. Museu Bordalo Pinheiro (Flickr) |
— Como elle assovia! diziam os circumstantes segurando os chapeus.
— Deixe assoviar. É o modo d'elle de celebrar meus louvores!
Havia uma tempestade.
Os noivos deviam partir para Belem, onde ficariam residindo.
O mar estava medonho.
Retrato de Elvira Bordalo Pinheiro, Columbano, 1883. MNAC |
Ninguem se atrevia a embarcar; quando se consultava os barqueiros, os honestos homens respondiam torcendo o barrete:
— Está picadito, o mar está picadito!
— E se formos a remos?
— Vamos metter muita agua!
— O melhor é esperar pelo vapor.
— O vapor virá só de tarde, e não atraca, provavelmente.
— Vamos embora!
Não houve remedio.
Embarcaram [...]
— Não está mau torrão! dizia o padrinho, embrulhando-se no toldo, em quanto a noiva ria, ria [...]
— Ih! Cuidado! O bote vai a metter a quilha na agua...
— Não ha novidade! dizia o homem do leme.
— Então posso continuar? perguntava Raphael ao padrinho.
— Tomára-me eu em terra!
E o noivo, olhando para a noiva, e meigamente:
— Tambem eu!
Zé Povinho e Maria Paciência. Museu Bordalo Pinheiro (Flickr) |
Depois, n'outro tom para o padrinho:
— Mas, como eu dizia, deixemo-nos de historias, nada d'isso é tão digno de estimação como passar as aguas, separar-se da cidade, da Lisboa querida, nossa patria e nosso enlevo, e ir de viagem casar a Almada! É ou não é? (2)
(1) Raphael Bordallo Pinheiro, Album de caricaturas, Lisboa, 1876, cf. prefácio de Julio Cezar Machado
(2) Idem
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Bordalo na Gare Rodoviária do Oeste
Museu Rafael Bordalo Pinheiro (Flickr)