segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Fábrica moderna para produção de óleo de fígado de bacalhau

A Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau [SNAB] completou a construção de uma nova fábrica para produção de óleo de fígado de bacalhau no Ginjal, Cacilhas, no município de Almada.

Ginjal, vista aérea c. 1960.
OBSERVADOR

A fábrica consiste em três edifícios: (1) o laboratório, escritórios e edifícios administrativos; (2) a própria fábrica; e (3) abrigo para tanques de armazenamento.

Vista da entrada da fábrica. À direita, o edifício administrativo; à esquerda, a fábrica, vista leste.
Commercial Fisheries Review nr. 65, November 1955

A capacidade de produção é de cerca de 30 toneladas de matéria-prima por oito horas diárias, variando de acordo com o número de tratamentos efectuados.

Vista do armazém. Abriga tanques metálicos para armazenamento.
Commercial Fisheries Review nr. 65, November 1955

A capacidade de armazenamento é de aproximadamente 1.100 toneladas, de acordo com um despacho de 30 de agosto da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa.

Interior da fábrica mostrando os tanques de operação.
Commercial Fisheries Review nr. 65, November 1955

A fábrica está equipada para neutralizar ácidos gordos livres; limpeza e secagem; desodorização parcial; filtragem; e extração de estearinas e outros resíduos. Tratamentos ainda mais especializados podem ser realizados no futuro.

Interior dos armazéns que abrigam os tanques de armazenamento.
Commercial Fisheries Review nr. 65, November 1955

A fábrica está ainda equipada com uma grande secção para encher, rotular e embalar as garrafas com um nível elevado de produção e pode processar o óleo de fígado de bacalhau para qualquer uso conhecido, seja para nutrição humana ou animal. (1)

Outra vista do interior da fábrica.
Commercial Fisheries Review nr. 65, November 1955

Um importante documento que, possivelmente, marca o início da distribuição do óleo de fígado de bacalhau nas escolas, sobretudo para os alunos mais carenciados, constitui a Circular nº 2628 de 4 de Janeiro de 1956. Como consta nessa circular que chegou às escolas naquele ano:

"Os serviços da Direção Geral do Ensino Primário, estão a distribuir pelas cantinas escolares do Distrito, elevado número de frascos de óleo de fígado de bacalhau, destinado a completar a alimentação das crianças pobres que são beneficiadas por aquelas instituições. Em cumprimento de despacho superior determina-se aos senhores diretores das cantinas citadas: 

1º.) - que promovam seja efectuada pelos agentes de ensino a conveniente propaganda no sentido de se ensinar aos estudantes a utilidade do uso do óleo de fígado de bacalhau; 

Rótulo para frasco.

2º.) - sejam conservados, cuidadosamente lavados, os frascos do óleo, depois de vazios, tendo em conta a futura utilização; as embalagens devem ser cuidadosamente conservadas; 

3º.) - que informem diretamente a Direção sobre a data do recebimento, número de frascos e despesa que, porventura, tenham efectuado com o transporte."

Crianças de Bradford Inglaterra tomam dose de medicamento.
PostcardEddie

Segundo as fontes consultadas, distribuía-se o óleo de fígado de bacalhau “DÓRI”. Este óleo era dado diariamente na sala de aula aos alunos com vista ao melhoramento da sua condição nutricional e de saúde. (2)

Embalagem.


(1) Commercial Fisheries Review nr. 65, November 1955
(2) Monica Truninger, A evolução do sistema de refeições escolares... 2012

Artigo relacionado:
O Grémio

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Almada em 1760

Lançando hontem á noite os olhos, por acaso, sobre um livro portuguez, e vendo o frontispicio que fora impresso em Lisboa occidental, perguntei o que significava aquelle "occidental", e responderam-me que esta Lisboa aqui, situada na margem direita do Tejo, é assim chamada, para se distinguir de outra Lisboa, que está do outro lado do rio, à qual as escripiores portuguezes dão a denominação de oriental 

Vue de l’entrée d’un port animé, Alexandre Jean Noel (1752-1834).
Cappriccio Lisbonne, la tour de Belem.
De Baecque

[o erro em que, de certo, involuntariamente cahiu aqui o estimavel auctor das Cartas Familiares encontra facil correcção nas breves palavras que da Mappa de Portugal 5.ª parte, cap II, pag. 247 de João Baptista de Castro, transcrevemos em seguida: "Querendo o fidelissimo rei D. João V promover e exaltar com ardentissimo zelo o maior culto de Deus e o esplendor da sua egreja, impetrou do summo pontifice Clemente XI a bulla aurea, que começa: In supremo apostolatas solio, expedida nos 7 de novembro de 1716, pela qual fiz erigir na conllegial insigne da real capella uma cathedral metropolitana e patriarchal, dividindo para este effeito a cidade de Lisboa, e seu arcebispado em duas metropeles, com territorios distinctos, ficando os que pertencem à linha devisoria da parte do nascente sujeitos ao prelado de Lisboa Oriental, e os que olhavam para o poente ao patriarcha de Lisboa Occidental..."]

Mappas das provincias de Portugal novamente abertos e estampados em Lisboa, João Silvério Carpinetti, 1769.
Biblioteca Nacional de Portugal

e accrescentaram que "in dirbus illis" a cidade era toda para além do Tejo; mas que, com o decorrer dos annos, se descobriu ser mais commodo habitar da parte de cá, de sorte que a pouco e pouco se fez esta grande Lisboa, que antes de destruida pelo terremoto devia ser uma cousa estupenda, e a antiga Lisboa do lado de lá a pouco e pouco se reduziu a quasi nada.

Este "quasi" quiz eu ver logo; por isso esta manhã aluguei ás horas um bote de dois remos, e em menos de uma hora lá me achei. Ambas as margens deste rio são, pela maior parte, altas e penhascosas, mas a oriental ou esquerda especialmente, é toda ella uma collina mais alta que a nossa dos Capuchinos [colina próximo de Turim, assim chamada por causa de um convento de frades d'aquella ordem, que tem no cimo]; e a subida é tão difficil e aspera que faz suar a medulla dos ossos, quando o sol queima, como fez todo o dia de hoje.

Almada, brasão de armas no anno de 1760.

Mas, meus irmãos, bem sabeis que a curiosidade me faria andar descalço sobre espinhos, quanto mais ao sol. O certo é que, desta vez, a curiosidade teve pouco pasto, porque aquella Lisboasinha não contem senão dois logaritos de nenhuma importancia, um chamado Almada, outro Cacilhas [no texto vem "Castiglio"].

Em Cacilhas nada vi de notavel, a não serem os pouquissimos restos de um pequeno forte situado sobre urna eminencia bastante alta, e que de certo, não custou muito ao terremoto demolir.

Em Almada visitei um pequeno convento de dominicos, chamado de S. Pauto, cujas paredes interiores são forradas de azulejos muito luzentes, que só de os ver refrescam a gente. Este convento já não tem egreja, porque abateu de uma vez com o terremoto, ficando esmagado um frade que estava celebrando missa, e bem assim todas as pessoas que se achavam na egreja, sem escapar uma só.

E o padre que me acompanhava nesta visita disse me que debaixo das ruias foram depois tirados os cadaveres de mais de cincoenta mulheres, todos aos pedaços, sem contar os homens, que não chegavam a vinte, cousa digna de todo o credito. porque em toda a parte os homens são muito menos inclinados ã devoção, e cuidam muito menos da salvação da sua alma do que as mulheres. 

Nós, os homens, podemos dizer o que quizermos; mas, por bondade de animo e por virtude, reunidas, as mulheres approximam-se tanto do caracter dos anjos, quanto os homens se avisinham ao de certos senhores de pontas, de garras e de cauda, que por delicadeza, não quero aqui nomear.

Vista de Lisboa tomada de Almada, século XVIII (detalhe).
Museu de Lisboa

Não é porque eu ignore que no mundo existem mulheres de caracter iniquissimo, as quaes por soberba, avareza ou luxuria poriam fogo por assim dizer a um sanctuario, e muitas hei conhecido que, para enganarem o proximo, ainda que sem grande proveito proprio, teriam deitado a barra adeante d'aquelle que entrou na serpente para enganar a mãe de genero humano; mas, pelo amor de Deus não me obrigueis, meus senhores, a entrar a dizer a verdade, e a pôr a calva á mostra aos homens, pois que, por um bom ou mediocre que me deis, eu vos apresentarei logo dez mulheres.

E notae que, por uma que corrompa a mente de um homem, cem mulheres são corrompidas por um só destes traidores, o qual, tingindo atfficção e desesperação mortal por amor invencivel, faz emfim tanto com o auxilio do diabo, que desperta immensa piedade no coração credulo e compassivo de uma innocente e digna creatura feminina, e d'ella se torna senhor absoluto primeiro que a misera e mesquinha caia em si de ter sido vencida pela sua natural bondade e ternura mais que pelo seu appetite e concupiscencia.

Por isso, minhas senhoras, podeis estar certas, e recordae-vos sempre de que o maior inimigo que tendes é a vossa mesma bondade, que vos faz obrar a maior parte dos despropositos que fazeis, os quaes despropositos, para vosso maior pesar, e para vossa maior vergonha, são quasi sempre praticados a favor de um ingratíssimo patife, que, quando de vós houve o que desejava, vos despreza, vitupera e aborrece, ou vos trata deshumana e cruelmente, apenas vos entregastes a elle sem nenhuma reserva.

Vista de Lisboa tomada de Almada, século XVIII.
Museu de Lisboa

— Mas, volte-mos a Lisboa oriental. O desmoronamento da egreja de Almada tornou aquelle logar pobrissimo de habitantes. O convento não fez companhia á egreja, pois ficou de pé, de maneira que nenhum dos frades morreu, excepto o que referi, e um leigo.

Das janellas desse pequeno convento se desfructam as mais bellas vistas do mundo, porque de uma parte se avista toda Lisboa, e Belem, o rio, o mar, infinitas embarcações, differentes castellos e fortalezas, que defendem a foz do Tejo, e da outra lindissimas collinas verdejantes e bem cultivadas; por maneira que este, quanto a mim. e um panorama muito superior ao famoso promontorioo, em que já vos fallei, o monte Edgecumbe, perto de Plymouth, em Inglaterra.

Satisfeita a minha curiosidade pelo que respeita a Lisboa oriental, desci a collina, voltei ao bote, e mandei aproar ao hospital dos inglezes, que tira do mesmo lado do rio, para baixo, para a banda do mar; mas não vi lá cousa nenhuma que parecesse extraordinario, excepto um medico já velho do hospital, um urso, que, tendo recebido aos setenta annos uma rapariga de dezoito, tornou-se, apesar de inglez, tão bestialmente ciumento, que se poz a olhar muito para mim de soslaio, quando viu que me dirigia para o jardim do hospital, porque sua mulher alli estava n'aquelle momento colhendo figos e uvas para o jantar.

Vista de Lisboa (tomada da margem sul), Alexandre-Jean Noël.
Cabral Moncada Leilões

Contudo, mesmo nas suas bochechas, fui entrando, sem lazer reparo na sua mulhersinha, porque não tenho prazer nenhum em causar aborrecimento a outra pessoa; e antes tenho dó dos velhos, que estão no caso d'aquelle senhor doutor, reflectindo que talvez haveria mister da compaixão dos outros n'aquella edade, se lá chegar, e se então perder o juizo, como succedeu ao pobre homem.

Não creio que a ternura do coração e o amor ao sexo feminino se apartem jámais dos homens educados, se Deus os não ajudar com uma graça especial, e lhes não apagar da fantasia a esperança do supremo contentamento que é produzida pela idéa incessante da posse completa da belleza feminil.

E é por isso que os homens de educação devem, especialmente quando são solteiros ou viuvos, arreceiar-se sempre de cair na rede em que o referido doutor cahiu; porque um quarto de hora de violenta agitação do pensamento é muitas vezes bastante para vencer toda a prudencia humana e todas as resoluções mais fortes de um homem considerado circumspecto, e leva-o a praticar um erro grande que precisa de ser sustentado depois com outros muitos erros; e talvez fosse este exactamente o caso do meu pobre velho doutor do hospital inglez donde voltei, rio acima, para casa de um irlandez que negoceia em vinhos por grosso, esperando induzil-o, com dinheiro ou com boas palavras, a dar-me algum por miudo, tendo com effeito tanta necessidade d'elle como os meus catraeiros.

E foi uma felicidade que aquele senhor negociante de vinhos que se chama O'Neal, usasse para commigo de tanta cortezia quanta vilania tinha praticado o velho doutor da tal mulher nova, o qual apenas quiz consentir que eu depenicasse um cacho das suas vinhas, que todavia estavam carregadíssimas d'elles.

Retrato de Giuseppe Baretti (1719-1789) por Joshua Reynolds.
Wikipedia

Deu-me com liberalidade o sr. O'Neal a beber quanto eu quiz, e fez-me provar mais qualidades de vinhos muito estimados, e aos meus suados barqueiros deu tambem um garrafão, pondo ainda dificuldade em deixar metter algum dinheiro no bolso de um seu pequeno.

Aquelle cavalheiro tem a sua casa protegida do rio por uma espécie de molhe construido de grossos penedos, e, tendo eu subido a esse molhe, recreei-me de ver dois escravos da Guiné, mais pretos do que pez nadarem no rio, e darem viravoltas e saltos na agua, e mergulhos, que era um regalo vel-os; e, a troco de alguns cobres que lhes dei, armaram uma dança sobre as ondas, cantando á sua moda, ora mergulhando, ora pulando de todo no ar. de modo tão assombroso, que seria mais facil agarrar uma enguia pelo rabo. 

Da canção do baile, que me cantaram em lingoa africana só comprehendi que era uma rima, nem mais nem menos do que a de Lourenço de Medicis e do Policiano.

Alguns modernos inimigos da rima teem dito e continuam a dizer que essa futilidade foi inventada pelos frades nos seculos barbaros, e em apoio da sua opinião citam os versos leoninos; mas eu achei que os americanos do Mexico e de outras partes do novo mundo usavam das rimas antes do nascimento de Christovam Colombo, e é claro que faziam uso d'ellas por serem proprias da poesia, fosse esta o que fosse, boa ou má.

Vista da parte ocidental de Lisboa, Alexandre Jean Noel, início da década de 1790
FRESS

E pela mesma razão os mouros da Guiné, e provavelmente de toda a Africa. empregam a rima em todas as suas poesias, sem haverem tido por mestres os inventores do verso leonino. Custa-me bastante não saber musica para apanhar as poucas e solemnes notas d'aquella canção africana; e quando figuei satisfeito, voltei a prôa para Belem, e fui visitar o convento dos Jeronvmos. (1)

Lisboa, 5 de setembro de 1760

Cartas Familiares de José [Giuseppe] Baretti, traduzidas do italiano [por Alberto Telles], VII


(1) Occidente n.° 625, 5 de maio de 1896.

Artigos relacionados:
Mappa de Portugal antigo e moderno
Panorâmica de Lisboa em 1763

Leitura relacionada:
Francisco de Almeida Mascarenhas, Codex titulorum S. patriarchalis ecclesiae Lisbonensis... 1746
Pe. João Baptista de Castro, Mappa de Portugal antigo e moderno, Lisboa, Off. de Francisco Luiz Ameno, 1762-1763

Informação relacionada:
Lugares de Almada: Da Fonte da Pipa à Arialva, passando pelo Olho de Boi

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Barca Isabel

Impedidos por negocios de momento, não podemos corresponder ao obsequioso convite do Sr. José Antonio Pereira Serzedello, distincto e mui estimado negociante desta praça, proprietario da barca Isabel, que da praia de Porto-Brandão, onde acabava de ser construido, devia correr para as aguas do Téjo no Domingo passado, 8 deste mez.

Barca Isabel, 1851.
"Janêllos" da História: Os Serzedello

Não presenceámos, portanto, o luzido espectaculo, a numerosa concorrencia, que appresentou nesse dia aquella parte da margem do sul do rio , e de que fizeram individuada relação alguns jornaes da capital, como a Lei e a Nação.

Constou-nos que não faltára coisa alguma ao esplendido da funcção, realçada pela afabilidade do proprietario do navio, que fez servir uma copiosa e variada collação aos seus amigos e convidados , não obstante o desgosto causado pela suspensão da barca na carreira, contra toda a expectativa.

Lisboa vista do Porto Brandão, James Holland, 1837, 1838 ou 1847.
Museu de Lisboa

Oxalá que fosse este o unico dissabor! Porém, somos informados de que no dia immediato, tentando-se dar impulso ao navio por meio da força braçal, rebentou o aparelho, ficando tão maltratados quatro homens, que ainda se acham em perigo de vida.

Porto Brandão, à esquerda do Tejo.
Ateneu Livros

O Sr. Serzedello sentiu-se tão commovido, que perdeu os sentidos, mas, tanto elle, como pessoas de sua familia, desveladamente se empenharam em prestar os auxilios ao seu alcance neste desastroso successo.

Barca [Brigue] Viajante (João Pedroso, atrib.).
Invaluable

Por conta do Sr. Serzedello se está construindo, no mesmo local de Porto-Brandão, um brigue, que será denominado Viajante. (1)


(1) Revista Universal Lisbonense, 12 de setembro de 1850

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Indústria química

Mais informação:
"Janêllos" da História: Os Serzedello