1873
Logo ao nascer do sol embandeiraram quasi todas as cazas, e subiram ao ar muitos foguetes em signal de regosijo pelo anniversario da entrada das tropas liberaes. (1)
As casas da villa estavam illuminadas. No largo da Piedade tocavam, antes da chegada da commissão, tres philarmonicas.
Divisava-se em todos os semblantes o maior regosijo. Correu tudo com o maior enthusiasmo, o que se deve ao muito amor dos portuguezes á liberdade, e sem o mais pequeno incidente desagradavel, o que se deve á muita cordura dos cidadãos. (2)
A direcção dos festejos por tão fausto acontecimento tinha sido
confiada a uma grande commissão composta dos seguintes cavalheiros: —
Presidente, Eduardo Tavares — Wenceslau Francisco da Silva — Jose Maria
do Valle — Augusto Cesar de Lima — A. L. J. Quintella Emauz — João
Antonio Xavier Carvalho Freirinha — Julio Cesar Coelho — Antonio Faria
G. Zagallo — S. Duarte Ferreira — Rafael Fortunato Alves Cunha — Antonio
Francisco Silva Junior — Manuel Francisco da Silva — Christovam de
Mattos— Antonio Candido Lopes — João Alegro Pereira Ernesto — Alvaro
Seabra — Barreiros (Delegado) e Guilherme Maria de Nogueira.
Esta commissão veiu de Almada para o largo da Piedade, ás 7 horas da
tarde, acompanhada da philarmonica da villa, e de muitas senhoras que
todas vestiam de azul e branco.
Ahi, collocando-se na frente da egreja, o sr. Eduardo Tavares, presidente da mesma commissão e deputado por aquelle circulo, fez um brilhante improviso, commemorando os factos da batalha dada n'aquelle sitio; disse que os que o acompanhavam n'aquella occasião não estavam ali como vencedores, nem tão pouco revestidos de odios de partidos; e appellou para o patriotismo de todos os portuguezes para conservarem a independencia e a liberdade que ha quarenta annos desfrutámos.
Concluído o discurso, o sr. Tavares levantou vivas á liberdade, sendo correspondido pela grande multidão que o cercava. Então deram-se também vivas aos veteranos da liberdade e ao sr Eduardo Tavares.
Em seguida foi distribuído a 50 pobres um bodo que se compunha de 230
grammas de carne, um pão, meio kilo de arroz e 100 réis em dinheiro.
Este bodo foi oflerecido por uma commissão especial composta dos srs. Eduardo Tavares — João Allegro Pereira — Padre João Netto — A. L. J. Quintella Emauz — Manuel Joaquim Motta e Lourenço Anastacio Ferreira de Aguiar.
Durante o bodo tocou uma philarmonica difíerentes peças de musica. Acabado o bodo, dirigiram-se todos ao largo onde se achava collocado o busto do duque da Terceira; e ahi foram levantados novos vivas á liberdade e entusiasticamente correspondidos.
Todas as senhoras, como dissemos, trajavam de azul e branco; e todos os cavalheiros traziam ao peito um ramo de perpetuas preso com fitilhos também azues e brancos. (3)
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1874
Damos hoje á estampa a fachada do elegante hotel que ha de inaugurar-se amanhã na Cova da Piedade.
O sitio é realmente lindissimo. Não podia o seu proprietário escolher melhor local. Defronta com o jardim publico que servirá de recreio aos visitantes.
O hotel tem excellentes accommodações para hospedes. Conhecemos o proprietario e podemos assegurar que o tratamento será excellente.
Deve ser muito concorrido no tempo dos banhos, principalmente porque está proximo de Lisboa e offerece grandes commodidades. (4)
HOTEL CLUB
NA PIEDADE, OUTRA BANDA
DOMINGO, 31 do corrente se
imaugurará o novo Hotel Club, casa de café e bilhar, estabelecido em
casa apropriada e acabada de construir; reunindo ao mais esmerado aceio
todas as commodidades a desejar.
Serviço de almoço, lunch e jantar por lista, e nos domingos e dias santificados jantar de meza redonda. (5)
HOTEL CLUB
NA PIEDADE, OUTRA BANDA
CONTINUA servindo todos os dias por lista.
Aos domingos e dias santificados, ha tambem jantares de meza redonda. (6)
[...] propriedade de Pompeu Dias Torres, dono do "Hotel Club" e da maior parte dos terrenos da comunidade piedense. [...] (7)
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Entrada do Jardim, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900 |
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Fez-se um jardim, que está povoado de arbustos ainda tenros. Ao meio
d'elle, um coreto onde ás tardes dos domingos uma orchestra entretem os
passeantes.
Á roda do jardim edificações novas, alegres, e a poucos
passos d'ali o hotel Club, que respira limpeza e aceio.
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Cova da Piedade, Arnaldo Fonseca, 1890
Boletim do Grémio Portuguez d’Amadores Photographicos |
Á beira da estrada o Salão Veneziano, com os seus gelados e sorvetes e
o seu champagne democrático, porque se serve aos copos, e cada copo a
troco de um tostão [...]
Os ranchos cruzam-se com vivacidade meridional; no hotel nota-se
continuo fluxo o refluxo de hospedes; de toda a paisagem allumiada pelas
scintillaçòes e pelos raios do nosso bello sol exhala-se um aroma de
contentamento, e de bem estar; n'uma palavra, respira-se na margem de
além Tejo o ar saudavel da civilisação, ar perfumado de um certo
conforto, que até agora não era o distinctivo dos areiaes ardentes e das
povoações tristonhas da outra banda.
N'um paiz, em que o gosto pelas diversões marítimas fosse um
sentimento popular, profundamente gravado na imaginação e nos hábitos
communs, que admiravel theatro lhes estava aberto na vasta enseada do
Tejo, a qual encurvando-se largamente diante da cidade, e bordando-se em
suas margens ora de vinhedos, ora de praias arenosas, ora de pinhaes,
ora de logares e de villas, que na brancura do seu cáio parecem lavradas
de alabastro, aproxima-se de Lisboa pelo pontal de Cacilhas, que,
n'este ponto, dá á margem fronteira, entalada entre a enseada e o rio, a
apparencia de um isthmo [...]
Com o "fora da terra" paralysou-se de todo o movimento da sociedade elegante [...]
Do Commercio do Porto
Cartas Lisbonenses, Visconde de Benalcanfor [Ricardo Augusto Pereira Guimarães] (8)
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Cacilhas está se tornando um dos passeios mais lindos para a gente de Lisboa.
A chamada Cova da Piedade acaba de ser elegantemente ajardinada com um coreto de música no centro.
No último domingo abriu-se ali um Hotel Club magnífico.
O local é encantador. Todos os domingos há música no jardim e é grande a concorrência do povo.
Perto da Cova da Piedade há a magnífica quinta real do Alfeite, cujas portas el-rei deu ordem para estarem abertas para os visitantes passearem. (9)
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1886
Escrevo-lhes estas linhas de uma pequena, mas bem interessante povoação, aonde vim passar o verão.
A Cova da Piedade fica ao sul do Tejo, a vinte minutos da ponte dos
vapores, na estrada de Cacilhas a Cezimbra.
Da bacia da Piedade faz
parte a praia do Caramujo para léste, e para oeste o lindo e fértil
valle de Mourellos, todo elle um pomar, em que a bella uva trincadeira,
de bagos grossos e duros como cerejas, amadurece em enormes cachos, por
entre as romanzeiras, as figueiras moscatel, as macieiras e os
medronheiros cobertos de fructo.
É uma terra abençoada para a producção.
N'uma estreita nesga de quinta, uma familia habilidosa e diligente vive
n'um confortável commodo burguez sem outra renda além da que resulta do
cuidadoso amanho da sua vinha e da sua horta [...]
Durante a mocidade de nossos paes, a Cova da Piedade foi celebre pela
casa de pasto do antigo Escoveiro, theatro de memoráveis noitadas de
amor e de batota.
O pretexto da concurrencia ao Escoveiro era a sua afamada sopa de
camarões e os salmonetes, que elle preparava do
um modo especial, mettendo-os no forno envoltos n'um papel com manteiga,
e servindo-os em sumo de limão, polvilhados de pimenta.
Uma belleza!
Comidos os salmonetes, armava-se a mesa do monte e muitos dos estroinas
celebres da terrível Lisboa de ha trinta annos abancavam ao jogo até o
outro dia pela manhã [...]
Ainda
hoje, depois de tantos annos, o prédio respectivo, á entrada da estrada
de Cezimbra, sempre fechado, de frontaria apalaçada, mas ennegrecida,
tem como um ar de desgraça.
Extinto o Escoveiro, veio o José [Joaquim?] dos Melões, e as merendas
populares suecederam-se aos jantares e ás ceias da burguezia romântica.
Hoje, o logar é um considerável centro industrial, com uma grande
officina da moagem a vapor e quatro fabricas de rolhas, no sitio do
Caramujo.
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Tejo junto à Praia do Alfeite, António Ramalho, 1880.
Alexandra Reis Gomes Markl, António Ramalho, Pintores Portugueses, Lisboa, Edições Inapa, 2004 |
Ha abastados agricultores, intelligentes e instruidos, tomando
a terra a serio como Pompeu Dias Torres, que amanhece a anoitece a
cavallo, e percorre quotidianamente a área de toda a sua lavoura,
dirigindo em pessoa as cavas, as mondas, os varejps, as podas, as
vindimas, as lagaradas, as cortimentas, todos os serviços emflm da
grande lavra;
e como Paulo Plantier, que na sua quinta do Pombal fabrica
o mais especial vinho branco da região e as mais bellas rosas de todo o
paiz, em rosaes de dez mil pés, cingidos de sementeiras preciosas de
morangos e de melões da mais fina e delicada selecção horticola.
|
Paisagem com casa, Bertha Ortigão.
Cat. Palácio do Correio Velho, 17 de dezembro de 2008. Arcadja |
Além d'estes elementos de actividado o de riqueza local, quasi todas
as pequenas casas da população indígena da Piedade são, mais ou menos,
restaurantes campestres, com a taberninha á frente, o retiro bucólico ao
fundo, com a mesa de jardim debaixo do parreiral ou do aboboreiro, e o
terreno para o jogo da malha ou do chinquilho, a um lado da horta.
Porque não ha dia lindo, com céu azul, quer de verão, quer de inverno,
em que uma alegre burricada ou uma cavalgada impetuosa não passe com os
respectivos cavalleiros aguçados de appetite pelo ar vivo do campo, uns
ávidos de coelho guizado, de fritura d'ovos e chouriço, e de salada de
pimentas, outros sequiosos da frescura de um melão maduro e da espuma
vermelha do vinho palhete de Santa Martha ou do S. Simão, sugado pela
chupéta ao batoque do casco e decilitrado ao pé da mãi.
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Almada [Cova da Piedade], Uma Burricada, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 14, década de 1900.Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade, Almada, Câmara Municipal de Almada, 1990, 318 págs. |
Os estudantes e os caíxeiros preferem nas excursões equestres os
esgalgados o escancellados cavallos de Cacilhas, aos quaes elles se
impõem o dever sagrado de tirar em duas horas de gineta as manhas de uma
vida intoira de mortificação e de jejum.
Os mestres d'officios com suas mulheres, os pequenos logistas com as
suas famílias, as coristas do theatro do Recreio ou da Trindade com os
músicos ou com os poetas seus amigos, as costureiras e as cocottes com
os seus companheiros, optam pelos burrinhos, em cujos albardôes o
guarda-pó do cavalleiro, enfunado ao sopro, da brisa, e as bamboloantes
botinas da dama, descobertas até o ultimo botão, são logo dopois de
montar um começo auspicioso de festança.
E na minha qualidade de
paizagista eu bemdigo os que continuam a ser pela velha tradição da
burricada cacilheira, porque não ha cousa que mais avivente e alegre o
macadam poeirento, faiscante de sol, entre os aloés e as oliveiras
alvacentas da beira das estradas, do que essas luminosas manchas
movediças de guardas-sol brancos, azues e vermelhos, trespassados de
sol, por baixo das quaes tremeluz em leves e fugidias pulverisações de
prata, a terra solta, ferida pelo choto miudinho dos jericos. (10)
(1)
Diario Illustrado, 24 de julho de 1873
(2)
Idem
(3)
Idem, ibidem
(4)
Diario Illustrado, 30 de maio de 1874
(5)
Diario Illustrado, 30 e 31 de maio de 1874
(6)
Diario Illustrado, 7 de junho de 1874
(7) Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial (1847 - 1909), Cova da Piedade, Junta da Freguesia, 1992, 175 págs.
(8)
Diário Illustrado, 31 de julho de 1874
(9) Diário do Maranhão, sexta-feira, 26 de Junho de 1874
(10)
Gazeta de Noticias, 7 de dezembro de 1886
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Cova da Piedade elegante e encantadora em 1874
Hotel Club da Piedade