sábado, 13 de junho de 2020

Colóquio/Letras: Romeu Correia, A palmatória

A Palmatória é a biografia teatralizada de Nicolau Tolentino, poeta que viveu em Lisboa entre 1740 e 1810, deixando sinais de uma vida complicada e de uma obra praticamente esquecida nos nossos dias, a não ser em estudos académicos.

Retrato de Nicolau Tolentino, Giuseppe Trono.
Agostinho Araújo, Tipologia votiva e lição literária: o caso Tolentino

O dramaturgo Romeu Correia, já falecido, escreveu uma farsa, como o próprio Autor lhe chama, em tomo da figura do escritor e com algumas reminiscências da sua poesia. Para isso, criou duas personagens através das quais traçou o retrato de Tolentino e da sua «inquieta consciência», nas palavras do criador nosso contemporâneo.

Este procura pôr em confronto o poeta e o que resta da familia, no contexto histórico e social da época, sendo o marquês de Pombal uma sombra poderosa até à morte. Viciado no jogo, Nicolau Tolentino acaba por ser vitima irremediável do seu vício.

No entanto, em A Palmatória a figura dupla do poeta sai diminuída naquilo a que podemos chamar o valor dramático em relação à conflitualidade que surge, por um lado, entre as suas duas irmãs e, por outro, entre estas e outras personagens (as criadas, o pretendente à mão de uma das irmãs que não se decide a casar).


O que parece haver de mais interessante na peça de Romeu Correia tem a ver com o tratamento cómico que confere às personagens das duas irmãs de Tolentino, satirizadas com grande convicção, graças à inveja que as marca (ambas a sofrer pelo mesmo pretendente e pela mãe deste, que parece eterna).

A estas cenas junta-se o conflito provocado pela guerra de que é vítima o soldado que namora a criada Eutásquia, acabando por morrer de fome porque «na guerra tam-bém se morre de fome». Aliás, o cadáver do soldado é devorado pelos cães, numa Lisboa pejada de cães raivosos e de ratazanas.



Na esquerda mão um livro me pintaste,
Na outra a palmatória,
Com carregado, ríspido focinho,
Dictando leis em tribunal de pinho.



A peça de Romeu Correia possui, na linha da obra dramática do Autor, potencialidades que, devidamente exploradas, podem constituir material cénico capaz de proporcionar um espectáculo teatral digno da carreira do dramaturgo.

C. P.  [Carlos Porto ]


(1) Colóquio/Letras, Nicolau Tolentino em farsa

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Colóquio/Letras, Romeu Correia, Cais do Ginjal
Colóquio/Letras, Romeu Correia, Nicolau Tolentino em farsa

Tema:
Romeu Correia


quinta-feira, 11 de junho de 2020

Colóquio/Letras: Romeu Correia, Cais do Ginjal

Neste romance de formação e aprendizagem, Romeu Correia propõe-nos, entre o real e o onírico, o percurso de um adolescente que caminha para a vida adulta através das pequenas tragédias do quotidiano e das grandes alegrias ligadas à capacidade de viver em estado de exaltação exclamativa. Reconhecemos, desde o título, o espaço predilecto do Autor — o cais do Ginjal e a jubilação do Tejo, num tempo de golfinhos, sereias, mas também de luta política a desafiar a repressão do regime. Logo nos primeiros parágrafos, o narrador situa precisamente o desenrolar da acção. «Lembro-me de que esta história começou em Junho dc 1934, deveriam ser onze horas da noite.» 

Cacilhas, Ginjal, Abel Manta (1886-1982), c. 1950.
Museu Municipal de Abel Manta

A notação temporal, o cunho biografista e rememorativo apontam, de imediato, para uma narrativa cronologicamente indiciada por etapas que funcionam como obstáculos a transpor pelo jovem de dezassete anos que em poucos meses vai descobrir, através de múltiplas peripécias, as contradições do seu sentir mais secreto, bem como o lento desabrochar de uma consciência social. No romance anterior, intitulado O Tritão e publicado em 1983 (ver nossa recensão in Colóquio/Letras n.° 81), Romeu Correia evocava já a realidade que encontramos na presente obra, mas a partir de uma óptica da infância. 

O cais do Ginjal, lugar de origem, encantatório e rude, continua a ser o espaço dc construção da identidade, mas agora marcado por conflitos em que o individual se confunde com o colectivo. O eixo efabulativo constituído pelo romance familiar encontra aqui o seu pleno desenvolvimento, e embora deparemos com uma constante oposição entre lugares fechados (a casa, dominada pela avó e pelas tias solteiras, onde quase nunca se passa nada) e lugares abertos (o cais e o rio, onde se acumulam os eventos), a verdade é que, por vezes, estes espaços, tal como o sonho e a realidade, se confundem, para traduzir um entrelaçar de vidas a que o adolescente assiste com perplexidade toldada às vezes de breve inquietação. 

O deslumbrante encontro com a Sereia, que o confunde com o defunto tio Raul, marca o ponto de partida da narração e aponta para a descoberta do desejo que vai atravessar todo o percurso do personagem. 

Romeu Correia retratado por Fernando Lemos em 1949.
Casario do Ginjal

A tonalidade erótica deste acontecimento fundador («Ao mencionar os atractivos do meu corpo, acariciava com as mãos ásperas toda a minha pele. Tremia, tal a emoção que me inundava os sentidos», p. 14) acompanhará os sucessivos encontros com a ousada Ermelinda, operária de La Paloma, que lhe grita, despudoradamente: «Eu quero ficar prenha de ti, meu amor!» (p. 98) e a perturbante descoberta da sensualidade da criada do Costa, a Albertina «que punha os homens aos pulos» (p. 102) e o deixa «a ferver de desejo» (p. 103). 

O alvoroço sexual conduz a uma forma de fusão com a mulher e com o Tejo, o qual funciona como cenário envolvente onde se inscrevem as lamentações da Sereia e os gritos de prazer do personagem («Em re-dor de nós havia o rio Tejo que, de súbito, começou a ficar iluminado de luar. Uma luz de prata envolvia-nos cada vez com maior intensidade. E logo um canto de dor e angústia chega aos meus sentidos, confundindo as palavrinhas meigas da Ermelinda. Todo o meu corpo arde de prazer, perco a noção exacta de onde me encontro, eu e a minha amante somos uma só pessoa, temos o mesmo sangue que nos percorre o espaço das nossas vidas. Sinto ganas de gritar, de gritar... até morrer por instantes», p. 136). 

No entanto, esta experiência dc quase morte revela-se pujante de vida, pois é através de Ermelinda, inspiradora erótica, que se fará a passagem para o mundo adulto, quer através da implicação política, quer através do nascimento do filho que anuncia o futuro. A operária procede tacticamente a uma denúncia das condições sociais dos trabalhadores, alertando a incipiente consciência do adolescente para a realidade da exploração de que foi vítima o avô José Correia c, sobretudo, para as injustiças que o cercam: «Os operários trabalham toda a vida e quando morrem nem dinheiro existe, muitas vezes, para o enterro. E contra este estado de coisas, con-tra esta miserável exploração, que os meus lutam e sofrem» (p. 75). 

Embora, no início, o medo o avassale, como à maioria dos habitantes de Cacilhas, que receiam «a pevide», muito rapidamente o seu ponto de vista se modifica e acaba por consentir a missão de correio clandestino.

A Sereia, elemento fantástico ligado aos sonhos da infanda, funciona, por vezes, como a consciência que o alerta para os perigos que o espreitam. Ela acaba por suicidar-se, no fim do romance, em frente da sua janela, revelando um tempo de ilusões que se dissipa. («Ela estava ali para me alertar da minha transformação, do meu crescimento», p. 188). 

Romeu Correia retratado por Fernando Lemos em 1949.
Museu Calouste Gulbenkian

Assim, a obra começa e acaba com uma referência à Sereia. Entre estes dois tempos inscreve-se todo o percurso de uma aprendizagem cuja arquitectura desenha evolução individual e o desenrolar de pequenas peripécias que enchem de colorido a modorra do cais: a aventura desastrosa da saudação ao navio inglês, organizada por um almirante de pacotilha, as proezas do Armando Arrobas que mede forças com os rufias de Lisboa, a misteriosa sedução do Toninho da Arealva, o confronto desolador com o abandono dos pais, a evidência de que também o espaço mudava de pele («Por este tempo, Cacilhas parecia uma cobra a mudar a pele», p. 59). 

A arte de contar de Romeu Correia faz assim desfilar, diante dos nossos olhos, com vivacidade e poesia, um tempo dilatado de metamorfoses e rumores que al-ternam com o silêncio do Tejo, sempre definido pelo fascínio. 

Entre palpitações de medo e formas diversas de coragem, assistimos em Cais do Ginjal ao desenrolar de um percurso iniciático onde se inscreve a grande aventura de uma vida, mas onde lemos também as formas de pequenos destinos que se entrecruzam para dar um sentido à epígrafe inicial, embaladora e nostálgica: «Os seios da mãe são lembrados no peito da primeira mulher amada...» 

Maria Graciete Besse


(1) Colóquio/Letras, Romeu Correia, Cais do Ginjal, Editorial Notícias, 1989

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Tema:
Romeu Correia

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Colóquio/Letras: Romeu Correia, O Tritão

A longa citação com que abre o romance instala-nos já num clima de dimensões fantásticas: Damião de Góis afirma a existência de homens marinhos no Tejo e dá conta de um «Tributo das sereias», promulgado por D. Afonso III. A partir daqui, o real e o imaginário entretecem um espaço de projecções, com o desenrolar da memória do narrador em que o OLHAR assume importância fundamental, reflectindo a ambientação humana do cais do Ginjal, tão perto e tão longe de Lisboa, num tempo au que o rio era «habitado por peixes e mistérios sem fim». 

Familia de Romeu Correia no corredor do Ginjal, c. 1900.
O Tritão, Editorial Notícias, 1982

Espaço da origem, o cais é ponto de chegada e de partida para considerações de carácter histórico e social. Romeu Correia parte da infância como lugar dum lirismo encantatório, e percorre, com grande espontaneidade e limpidez, os domínios problemáticos de uma identidade a construir-se.

A história familiar é o eixo efabulativo que coordena o discurso numa dupla vectorização. como relação de parentesco (a rispidez do pai/a ternura do avô), como memória de um espaço exterior atravessado por encantos e ameaças.

Assim, o lugar fechado da casa familiar, domínio da autoridade, alterna com o espaço fantástico do cais, aberto para a descoberta de um mundo outro, onde as ruas da gandaia, calcorreadas na proximidade secreta das coisas, conduzem ao espaço da aventura na quinta e ao lugar mítico da gruta, espaço de iniciação onde o velho Tomás, «sabichão dos sete mares e contador de histórias maravilhosas», revela às crianças pobres do Ginjal as fronteiras de uma cosmogonia fascinante.

Vistas Stereoscopicas de Lisboa, Panorama das Margens do Tejo.
Delcampe

Situado no centro do romance, o episódio eufórico da revelação do tritão ao menino deslumbrado, frente à enorme pedra do Tramocciro, surge como clímax de um percurso pontuado em seguida pela acumulação de situações disfóricas: a entrada na escola e a descoberta das estratégias de sobrevivência num espaço de opressão; o roubo das garrafas (passa-porte para o fantástico) como motivo de humilhação pública; a redução às dimensões do limitado de um avô explorado por patrões que lhe oferecem, simbolicamente, pelo Natal, restos de trajes de cerimónia; a desmistificação progressiva do espaço de liberdade e fantasia, em que o herói revelador de magias se transforma em títere medíocre e a casa da quinta é devorada pelo fogo, restando dela apenas uma valsa tocada pelas chamas, num momento fulgurante que enche de pânico o olhar, «o sangue dos presentes».

O núcleo dramático do romance, constituído a partir de tensões afectivas, morais e sociais, surge como uma encruzilhada de vidas, um entrelaçar de tempos sobre o tempo da personagem central e articula-se com o que poderíamos chamar uma estética da veracidade, um impulso para o verídico vivencial, corroborado pela presença da fotografia de família no fim da obra e a ilustração efectiva do espaço em que decorre a acção.

Organizando-se através de uma série de experiências e de uma relação triangular (menino-avô-Tomás), o romance cria uma dinamica narrativa que oscila entre a ho-rizontalidade do drama colectivo (a vida pobre, sempre igual, da gente do cais) e a verticalidade (ascensão e queda) de um imaginário decidido a não se deixar vencer pela brutalidade da vida.

Apesar de o Ginjal ser hoje um «lugar-fantasma», definido por atributos negativos, a «romagem sentimental» que o narrador aí efectua, nas últimas páginas da obra, levando o neto pela mão, é simultaneamente amargo balanço de uma vida (Hoje tenho sessenta e tal anos e sou o que os outros me obrigaram a ser... Um homem ajuizado, útil, domesticado») e afirmação de uma exigência de tempo habitado por essa prodigiosa capacidade de acreditar em sereias e tritões, de lavar os olhos nas fontes mais puras da criação humana.

A pedra do Tramoceiro.
O Tritão, Editorial Notícias, 1982

A «identidade de raciocínio» que o liga à criança que foi e ao rapazinho que o acompanha numa «noite ventosa de Outono» traduz bem a dimensão do futuro, que é decerto o lugar onde se inscreve a esperança. 

Maria Graciete Besse (1)


(1) Colóquio/Letras, Romeu Correia, O Tritão, Editorial Notícias, 1983

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Romeu Correia