segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A ponte monumental

A architetura exterior dos edificios públicos, das egrejas, dos grandes palacios, é lamentável de banalidade e insulsez: e os modernos quazi todos peores do que os antigos; fóra do manuelino, de que o terremoto deixou poucos bocados, fóra do D. João V, que é um entre Luiz XIV e Luiz XV luxurioso e freiratico, Lisboa não tem nada que vêr-se possa, a não ser o Terreiro do Paço e a jesuitica egreja da Estrela, feita com o dinheiro que o marquez destinava á ponte monumental entre Almada e Lisboa, e o estafermo beato de D. Maria I derreteu em honra dos seus terrores supersticiosos. (1)

Bellisle looking down the Tagus, John Cleveley Jnr, 1775.
Bonhams

A ideia inadiavel da prolongação das linhas do Barreiro até Cacilhas ou Almada, trazendo os comboios á parte mais estreita do Tejo, frente a Lisboa, a 10 ou 12 minutos de travessia maritima da capital, necessariamente desperta na poderosa Companhia Real (dos Caminhos de Ferro Portugueses) os antigos rancores, pois, realisada a obra, os sonhos do Cetil carriando a Lisboa a mór parte das mercadorias do Alemtejo Medio e Baixo, em fumo vão-se, e visto o desenvolvimento espantoso que este acrescente trará ao Sul e Sueste, não haverá mais meio de pensar em o arruinar e adquirir por tuta e meia (...)

Lisboa — Vista de Lisboa e Tejo, ed. desc., década de 1900.
Delcampe

Mas se é certo que a teimosia dos comerciancites, por bronca, faz suspeitar que por traz d’ela alguma tramoia a Companhia Real fomenta e móve, não menos descabida parece a ancia que teem os engenheiros do Sul e Sueste em querer já construir a estação terminal nos aterros do caes jacente á Alfandega, sem primeiro trazerem a linha a Cacilhas ou Almada, sem prolongamento logico e natural (...) (2)

Lisboa monumental, ilustração, Alonso (Joaquim Guilherme Santos Silva, 1871 — 1948).
Hemeroteca Digital

É do folheto "Ainda a estação fluvial das linhas do sul e sueste" do sr. engenheiro A. Santos Viegas que extracto a enumeração desses projectos:

Em 1888, projecto do americano Lye: vinha a ponte d'Almada ao Thesouro Velho, e ahi ficava a estação de mercadorias do sul e sueste, com entrada pelo Largo das Duas Igrejas [Praça do Chiado]. "A este plano, acrescenta o sr. Santos Viegas, alvitra-se agora acrescentar elevadores que nas alturas do Caes do Sodré transportariam vagões entre a linha superior e a estação da companhia". Custaria de 8 a 10:000 contos.

Em 1889: projecto de Bartissol e Seyring [sic, Seyrig], fazendo da estação do Rocio a testa das linhas sul e sueste, quando ainda a companhia Real pensava d'açambarcar os caminhos de ferro do estado. Custava 9:000 contos, a que opinões meticulosas ajuntam mais 1:000 para expropriações.

Ponte sobre o Tejo, E. Bartissol e T. Seyrig, O Occidente n.° 380, ilustração L. Freire, 1889.
Hemeroteca Digital

Em 1890: projecto do engenheiro Proença Vieira, que iria de'Almada a um ponto ao norte da rocha do Conde de Óbidos, seguindo a linha ferrea até cêrca de Campolide. Custava 7:500 contos mas é possível que chegasse a muito mais, visto haver sítios do rio onde as fundações dos pilares iriam até 60 metros de fundo, e no projecto não se faziam calculos explicitamente rigorosos ácêrca d'essas fundações.

Depois de 1891 houve mais dois projectos. Um, do fallecido Miguel Paes, de todos os expostos o mais sensato sob o ponto de vista de ligação ferroviaria, vinha do Pinhal Novo onde toda a rede do sul se acha reunida n'um tronco unico, o espigão do Montijo, e d'ahi por uma immensa ponte, aos Grillos, fóra da zona de grande navegação do Tejo. N'este sitio, teria a ponte muito menor importancia para a viação ordinária.

A construcção seria mais facil, mas a extensão muito maior, devendo o custo exceder pouco mais de 4:000 contos.


Ponte sobre o Tejo, estudo do engenheiro Miguel Pais, 1872.
Arquivo Municipal de Lisboa

Finalmente o ultimo projecto de travessia do Tejo era a concessão a uma empreza americana, d'uma ponte ara peões, carros, "tramways" electricos e caminhos de ferro, entre Almada e o bairro da Lapa, sem bases porem que permittissem avaliar da sua exiquibilidade.

Elegante projecto da ponte Lisboa Cacilhas,
propaganda republicana, década de 1910.
O Mundo do Livro

O sr. Santos Viegas opina (e nós tambem) que a ideia Julio Vernesca da ponte sobre o Tejo deve deixar-se ás futuras gerações. Não que ella não represente um arrojado e utilissimo melhoramento, mas por ser devorante o custo, e não se devem adiar outras obras mais urgentes, como a da trazida do caminho dez ferro do sul a Cacilhas ou Almada, e fundação da nova cidade da margem esquerda, em que urge desdobrar, o mais rapidamente possivel, a nossa actual Lisboa fabril e commercial. (3)


(1) Fialho de Almeida, "Barbear, Pentear" (jornal d'um vagabundo), 1910
(2) Fialho de Almeida, Idem
(3) Fialho de Almeida, Illustração Portugueza, Lisboa Monumental II, Lisboa, 19 novembro 1906

Artigos relacionados:
Lisboa monumental em 1906
Projecto de travessia do Tejo em 1889
A ponte

sábado, 7 de janeiro de 2023

Taludes do Almaraz

Observaram-se em diversos levantamentos alguns desmornamentos mas estes apenas ocorreram a partir da face rochosa do trecho escarpado superior, não afectando a respectiva crista. Evitaram-se os locais que se sabia terem sido alterados por interferência directa do Homem (escavações para adoçamento da crista, sobre o Olho de Boi, ou para alargamento de plataformas, sobre o Ginjal).

Olho de Boi, João Vaz, 1887.
Museu Nacional Soares dos Reis

O único caso de recuo efectivo de um trecho de escarpa ocorreu a meia encosta entre Boca do Vento e Fonte da Pipa, em 1992 e, por ser do conhecimento prévio do autor, foi facilmente detectado no levantamento de fotografias aéreas de 1994.

No mesmo local, ocorreram em datas posteriores àquele levantamento outras ocorrências (a partir de Janeiro de 1996) e, como aquele, associadas a uma mesma camada rochosa que formava uma consola de grande balanço.

Derrocada parcial do talude fronteiro à Fonte da Pipa
Cristo Rei, ed. Bazar Mumi n° 218.
Delcampe Bosspostcard


Em relação ao trecho de escarpa contínua entre Cacilhas e Arialva, o tipo dominante de movimento de terrenos consiste em quedas de blocos a partir das paredes verticais ou sub-verticais, onde as camadas mais rijas formam consolas postas em destaque pela erosão diferencial dos estratos confinantes mais brandos, inferiores e superiores (...)

A ocorrência em 1992, 1996 e 1997, de quedas de blocos de grande volume (várias dezenas de metros cúbicos) concentrando-se no trecho entre Boca do Vento e Fonte da Pipa, justifica-se pela presença, nesse local, de um espesso banco calcário a calcarenítico formando consolas com cerca de 3 m de balanço. Muito próximo deste trecho, um pouco a oeste, registe-se a queda, em 1968, de um bloco de cerca de 150 toneladas sobre as instalações da antiga Companhia Portuguesa de Pescas.

Perfil geológico simplificado do trecho de taludes entre Castelo de Almada e o Seminário de São Paulo, sobre Olho de Boi, desenhado sobre fotografia tomada a partir da margem oposta
cf. Pedro Lamas, Os taludes da margem sul do Tejo, 1998

A maior parte destas ocorrências tem a sua origem, quase sempre, a meia altura da escarpa, não sendo visíveis os seus efeitos no total deste sector. Da escarpa, destacam-se blocos aproximadamente prismáticos ou em diedro, no caso do maciço se encontrar compartimentado por diaclases oblíquas à sua parede.

Registe-se, ainda, um talude sobranceiro ao cais do Ginjal, coberto por depósitos de vertente espessos, onde ocorreu um escorregamento que obrigou à realização de obras de estabilização importantes (...) (1)


(1) Pedro Lamas, Os taludes da margem sul do Tejo, 1998

Artigos relacionados:
Fonte da Pipa e sua água
Fonte da Pipa e seu caminho
Sítio de Olho-de-Boi

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

A igreja nova

Enquadramento

Urbano, destacado, isolado. A Igreja Nova de Almada (Igreja de Nossa Senhora da Assunção) localiza-se entre a fronteira do antigo núcleo da vila e a parte nova , encontrando-se implantada no terreno (público alienado em 1962) do Jardim Comandante Sá Linhares; implantada a meia-encosta, dominando o largo fronteiro, é separada dos arruamento por adro e escadaria, encontra-se rodeada por edifícios de interesse arquitectónico.

Almada, Jardim Comand. Sá Linhares, ed. J. Lemos n° 21, década de 1950.
Delcampe, Bosspostcard

Na área envolvente destacam-se algumas escadas e patamares do domínio público, integradas no jardim, mas necessárias para acesso ao templo.

Almada, avenida D. João I, Augusto de Jesus Fernandes, 1962.
Arquivo Municipal de Lisboa

Do lado da Fachada principal o Lar de São Tiago, e na continuação da Av. D. João I algumas casas marcadamente pertencentes à tipologia "Casa Portuguesa"; em cota inferior ergue-se o Tribunal do Trabalho (...)

Almada, Jardim Sá Linhares, ed. Postalfoto n° 11, década de 1950.
Delcampe, Bosspostcard

A construção da 2ª fase do Centro Paroquial de Almada, de 4 pisos, é composto por um edifício afastado da igreja com ligação através de um canal de separação. O piso 0, situado ao nível da R. Cândido Capilé tem acesso principal através de um canal a céu aberto que desemboca num terraço sobramceiro ao jardim com ligação ao adro da igreja, tendo este piso 2 salas do jardim de infância e recepção; tem acesso alternativo ao terraço através de escadas (...)

Cronologia

1962, Janeiro - celebração da escritura de alienação do terreno destinado ao centro paroquial com a área de 3.000 m2; elaboração do programa e adjudicação do projecto;


Plano Parcial de Urbanização de Almada (PPUA), Implantação do Cento Cívico, 1947.
Ver Almada crescer: 10 anos do Museu da Cidade (catálogo)

1962 / 1963 - entrega do ante-projecto executado pelos arquitectos Nuno Portas, Nuno Teotónio Pereira e Luís Moreira, tendo sido apreciado pela Câmara Municipal e pelo Secretariado para as Novas Igrejas do Patriarcado;
1964 / 1965 - suspensão dos estudos;
1965, 22 de Julho - a CMA aprovou o ante projecto;
1966 - entrega do projecto geral da responsabilidade do arquitecto Nuno Teotónio Pereira;
1967 - adjudicação da empreitada da 1ª. fase;
1969 - oferta de um sino pelo Sr. Vasconcelos, no valor de 10 contos;
1970 - inauguração da igreja; 1971 / 1972 - prosseguimento dos trabalhos de acabamento;
1986 - parecer sobre a localização da 2ª. fase - construção do Jardim de Infância; 1988 - proposta para a elaboração do projecto de construção do Centro de Assistência Paroquial de Almada;


Vista satélite do Jardim Dr. Alberto Araújo, ex dito Cmdt. Sá Linhares,
com o edifício da Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Assunção integrado à esquerda.
Google maps (2003)

2002 - execução da 2ª fase do Centro Paroquial de Almada, projecto dos arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Duarte Nuno Simões. (1)


(1) SIPA

Artigo relacionado:
O centro cívico

domingo, 1 de janeiro de 2023

Os O'Neill e a Quinta da Arealva

Foi o local escolhido por João O’Neill para sua residência, no que foi ajudado pelo Reitor do Colégio Irlandês em Lisboa. A quinta estremava a Nascente com a Quinta do Olho de Boi pertencente a primos da sua mulher D. Valentina Ferreira uma proprietária na Merceana perto de Alenquer.

Vista de Lisboa (tomada da margem sul), Alexandre-Jean Noël.
Cabral Moncada Leilões

Nessa época quase todos os chefes das grandes famílias Irlandesas que não aderiram ao protestantismo e à Coroa Inglesa, foram proscritos e para manter os seus direitos de linhagem viram-se obrigados a sair da Irlanda na esperança de poderem voltar. A ancestral tendência em associar a natureza humana ao resto da natureza levou o povo a apelidar esse movimento de Flight of the Wild Geese — voo dos gansos bravos — pela semelhança com o regresso das aves migratórias ao seu ponto de partida.

A dúvida quanto à probabilidade da criação de condições que tornassem o regresso útil levou muitos destes lideres emigrados, a procurar soluções mais duradouras que, tirando partido da sua experiencia, dos seus hábitos e da sua visão especial da vida, se lançassem em actividades em que tivessem um fac- tor diferenciador positivo em relação aos seus concorrentes.

A produção e distribuição de vinho e de bebidas alcoólicas em cuja avaliação eram peritos, foi naturalmente uma das principais escolhas. O afinado sentido de humor dos irlandeses levou-os a apelidar estes líderes emigrados “Wine Geese” os gansos do vinho.

A nossa família obteve as duas qualificações: Wild Geese pela saída de Felim O’Neill para França à frente do regimento O’Neill da Brigada Irlandesa e Wine Geese devido à montagem pelo seu neto Shane ou João na Quinta da Arealva de uma adega e um negócio de compra e venda de vinhos, que mais tarde evoluiu para a exportação de vinhos para os Estados Unidos em colaboração com Charles, seu irmão, que veio mais tarde para Portugal armando um navio “João e Carlos” especialmente destinado a este transporte e que usava o ainda existente cais da Quinta para a carga e descarga dos vinhos.

Os vinhos foram ganhando fama tendo João recebido a visita de Giuseppe Baretti, um homem de letras e um desfrutador da vida, que o visitou em 1760 assinalando a sua visita numa das suas obras, onde descreve o cais, a qualidade dos vinhos e a elegância da adega e da quinta. (1)

E foi uma felicidade que aquele senhor negociante de vinhos que se chama O'Neal, usasse para commigo de tanta cortezia quanta vilania tinha praticado o velho doutor da tal mulher nova, o qual apenas quiz consentir que eu depenicasse um cacho das suas vinhas, que todavia estavam carregadíssimas d'elles.

Retrato de Giuseppe Baretti (1719-1789) por Joshua Reynolds.
Wikipedia

Deu-me com liberalidade o sr. O'Neal a beber quanto eu quiz, e fez-me provar mais qualidades de vinhos muito estimados, e aos meus suados barqueiros deu tambem um garrafão, pondo ainda dificuldade em deixar metter algum dinheiro no bolso de um seu pequeno.

Aquelle cavalheiro tem a sua casa protegida do rio por uma espécie de molhe construido de grossos penedos, e, tendo eu subido a esse molhe, recreei-me de ver dois escravos da Guiné, mais pretos do que pez nadarem no rio, e darem viravoltas e saltos na agua, e mergulhos, que era um regalo vel-os; e, a troco de alguns cobres que lhes dei, armaram uma dança sobre as ondas, cantando á sua moda, ora mergulhando, ora pulando de todo no ar. de modo tão assombroso, que seria mais facil agarrar uma enguia pelo rabo. (2)

Quinta da Arealva (detalhe)
Margarida Bico

Valentina Ferreira morre em 1766 e João O’Neill resolveu construir em sua memória uma ermida a que deu o nome de S. João Baptista, padroeiro de Almada. Aí casou a sua filha Maria com Brian Lynch em 1774. Em 1786 dois dos seus filhos puseram-lhe uma acção de partilhas e obtiveram do tribunal a posse provisória da Quinta.

João O’Neill morreu em 1788 e após a sua morte a casa e quinta passaram para a sua filha Maria que a vendeu em 1813 a João Luis Lourenço (...) (3)


(1) António Cunha Bento, Inês Gato de Pinho, Maria João Pereira Coutinho, Património arquitectónico civil de Setúbal e Azeitão, 2019
Occidente n.° 625, 5 de maio de 1896
António Cunha Bento, Inês Gato de Pinho, Maria João Pereira Coutinho, Idem

Artigo relacionado:
Almada em 1760

Informação relacionada:
Lugares de Almada: Da Fonte da Pipa à Arialva, passando pelo Olho de Boi
Andrew Shepherd, The O’Neills of Portugal, 2020