quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Associação de Socorros Mútuos Primeiro de Dezembro

Este livro [Livro do Centenário da Associação de Socorros Mútuos Primeiro de Dezembro, 1883-1983] escrito e ilustrado por António Henriques [v. Centenário de António Henriques (1915-2015)] em 1983, data da comemoração do centenário da Associação, debruça-se sobre a sua fundação e história; contém a lista dos sócios fundadores e principais beneméritos, exposição do processo da construção da sede da coletividade, descrição das comemorações e solenidades registadas por ocasião das festividades do dito centenário; listagem dos médicos que prestaram serviços para a associação, bem como as representações feitas por esta nos funerais dos sócios; relações dos corpos sociais no decorrer daquele século de história e uma sucinta narrativa da história do mutualismo em Portugal, com o registo dos montepios existentes no país. (1)

Associação de Socorros Mútuos 1.° de Dezembro
Imagem: InfoGestNet

Nos anos de 1861 a 1889 a Pátria Portuguesa esteve sob o reinado de. D. Luís, cognominado "O Popular", época assinalada por grandes melhoramentos e importantes reformas que muito contribuiram para o progresso material e moral da Nação, principalmente em 1883 que se distinguiu pelas explorações científicas que se efectuaram através do continente africano, em terras sertanejas de Moçamedes e Quelimane, num percurso de alguns milhares de quilómetros, que causaram, ao tempo, a admiração da Europa e glorificaram o nome de Portugal. 

António Henriques, notável associativista almadense.
Imagem: Centenário de António Henriques (1915-2015)

Ao mencionarmos aquele longínquo ano, Almada foi também palco do que pode-10 querer decisivo dos homens, na ideia concebidas em consistentes princípios de relevância social e humanitária, de protecção aos trabalhadores que esteve na origem da criação, a 22 de Novembro, da Associação dos Operários de Cortiça "1.° de Dezembro", acontecimento de muito orgulho para os almadenses, denominação que em Novembro de 1884, se transformou em Associação dos Operários de Cortiça e Artes Correlativas "1.° de Dezembro", até Fevereiro de 1885, passando a partir desta data, e até hoje, a chamar-se Associação de Socorros Mútuos Primeiro de Dezembro.

Os notáveis fundadores todos operários da classe corticeira, em Margueira foram, com a concordância de todos os cidadãos: Francisco Borja de Almeida Ferreira, José Tavares Veloso, Norberto dos Santos Júnior, José Anastácio de Almeida e, muito provavelmente, José Custódio Gomes e José da Costa ou José da Costa Leal.

Cacilhas, Caes e Farol, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

A Associação teve a sua primeira sede social em Cacilhas, na Rua Direita de Cacilhas (antiga denominação) com o número 30, de polícia, actualmente Rua Cândido dos Reis.

Cacilhas (Portugal), Largo do Costa Pinto, ed. Martins/Martins & Silva, 18, década de 1900
Imagem: Delcampe

O edifício ficava a direita de quem se dirige para Almada, localizado imediatamente a seguir a Igreja de N.ª S.ª do Bom Sucesso, em frente da que foi "Escola de Instrução Primária, da Professora D. Henriqueta" (foto assinalada com X).


Mas, segundo outra fonte (talvez menos verosímil) , a primeira sede ficaria no prédio situado no começo da Calçada da Pedreira, também em Cacilhas, actual Rua Elias Garcia, a direita de quem se encaminha para Almada, ligeiramente defronte do portão da já desaparecida "Quinta do Pinto" [...] mantendo-se a Associação em Cacilhas até fins do ano de 1887 [...]

Almada, Largo do Poço em Cacilhas, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 03, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Esta Comissão iniciou, de pronto, os seus trabalhos para a aquisição de um imóvel ao aparecer-lhe para venda uma casa abarracada e quintal, situada, segundo consta da respectiva acta, entre as Ruas do Forno e da Judiaria, em Almada [...]

A mesma Comissão, depois de, naturalmente, ter procedido a mais "démarches", optou pela compra da casa abarracada, situada em Almada, também na Rua Direita, ao Cabo da Vila (hoje Rua Capitão Leitão), pelo preço de 1.300.000 reis, que acrescida da quantia de 2.300.000 reis, importância calculada para a construção do 1.º andar e apropriar o r/chão, totalizava 3.600.000 reis. 

Apresentados os resultados das diligências efectuadas a Assembleia Geral, bem como a decisão da Comissão favorável a compra do dito imóvel, sito ao Cabo da Vila, foi aprovada por maioria a sua aquisição, atendendo, principalmente, a localização das que seriam as futuras instalações desta tão benemerente instituição [...]

Para o bom êxito desta transacção, bastante se ficou a dever, também, aos sócios Manuel Ferreira, José Francisco de Avelar e Silva, Eduardo Augusto Cristóvão, João Pedro Rodrigues de Paiva. 

Rapidamente, foram estudados e aprovados os planos das obras a efectuar para a construção da Sede, as quais começaram, ainda, no aludido ano de 1904, sob a orientação técnica do Mestre-de-obras, José Avelar.


A inauguração da nova Sede, propriedade da Associação, dá-se a 12 de Março de 1905, com toda a solenidade e a presença das duas Bandas Musicais da terra, a Incrível e a Academia Almadense, que se faziam acompanhar de bastante público.


Em Novembro de 1933, foram feitas reparações interiores e exteriores no prédio, tendo sido colocada no cimo da fachada do edifício uma pedra com o nome da Associação e a data da sua fundação, num trabalho do técnico profissional, o almadense José Duarte Cordeiro. (2)

100 anos de amor ao próximo

Faltavam ainda dezassete anos para entrarmos no Século XX quando um grupo de trabalhadores de Almada tentou realizar mais um sonho incrível...  — a fundação de uma associação de socorros mútuos. De mãos calejadas e vazias de reais, cercados das carências mais elementares e vivendo numa época de atraso técnico e científico, estes cidadãos uniram-se num grande querer — e o milagre aconteceu.

A então vila de Almada comportava uns escassos milhares de almas que se consumiam em dez, doze e mais horas de trabalho diário, tendo na Sociedade Filarmónica Incrível Almadense (1848) e na Associação dos Artistas Almadenses (1856) os únicos oásis recreativos e culturais.

As ruas da freguesia deixaram por essa ocasião de ser alumiadas a óleo de peixe aparecendo a novidade dos candeeiros a petróleo. A escola Conde de Ferreira, no Campo de São Paulo, era a única fonte do saber oficial. Tardavam em aparecer a Cooperativa Almadense (1891) e a Piedense (1893), assim como as filarmónicas da SFUAP (1889) e da Academia (1895). Os bombeiros de Cacilhas (1891) e de Almada (1913) não passavam de desejos. Os grupos desportivos só no próximo século germinariam timidamente. Tabernas não faltavam e uma zona de prostituição era autorizada na Rua do registo Civil, na Boca do Vento. A praga do analfabetismo no reinado de el-Rei D.Luís I rondava os 80 por cento.

Romeu Correia, escritor almadense neorrealista.

Mas aquele punhado de operários e lojistas sabiam que na unidade residia a força que operava prodígios. Os ideais republicanos conquistavam os jovens mais esclarecidos e uma boa parcela de intelectuais da pequena burguesia. Faltavam oito anos para a primeira tentativa, aliás frustrada da revolução republicana de 31 de Janeiro de 1891. Seria preciso esperar ainda até 1910 para que a Monarquia secular fosse derrubada. 

Os habitantes desta margem do Tejo orgulhavam-se de Almada ter sido berço do mais prestigioso vulto da propaganda republicana na sua primeira fase: José Elias Garcia (1830-1891). Cidadão nascido em Cacilhas, tinha dois anos quando seu pai condenado ao suplício da forca pelos miguelistas fora libertado pela vitória liberal de 23 de Julho de 1833. Mas cinquenta anos depois (a 22 de Novembro de 1883), quando nasce a Associação de Socorros Mútuos "1.° de Dezembro", o leque político dividia-se por anarco-sindicalistas, socialistas e republicanos liberais, além dos adeptos da monarquia vigente. 

Luís de Queiroz, almadense notável e dirigente da
Associação de Socorros Mútuos 1.° de Dezembro

Recordando o mundo de então sob o ponto de vista sanitário e estabelecendo o confronto com o progresso actual, verificamos um atraso que causa espanto. A tuberculose e a sífilis pairavam no horizonte dos jovens como um mal fatalista. As crianças enfrentavam mil moléstias antes de dar os primeiros passos. As pestes periódicas ceifavam famílias inteiras. Do vocábulo "micróbio" até então ninguém tinha ouvido falar... 

Apelando para a paciência do leitor, talvez seja oportuno recordar algumas das principais criações do génio do Homem quando e depois da fundação da "1.° de Dezembro". Um pouco antes Alexandre G. Bell inventara o telefone (1876) e Thomas Edison o gramofone (1877). Pasteur descobre a vacina anti-rábica (1885). Construção da Torre Eiffel; Exposição Universal de Paris (1889). Os irmãos Lumière inventam o animatógrafo (1895). Marconi descobre a T.S.F. e Rontgen os raios X (1896); 1.a corrida de automóveis em 1896; 1.° voo de avião em 1897. Curie descobre o rádio (1898). Einstein formula as leis da relatividade (1905). Augusto Lumiére cria a fotografia a cores (1907). Travessia aérea da Mancha em 1908. Descoberta da vitamina Funk (1912). Advento do cinema sonoro; travessia aérea do Atlântico por Lindberg (1927). Alexandre Fleming descobre a penicilina (1928). Lançamento pelos americanos da primeira bomba atómica (1945). Experiencias com a bomba sobre Hiroshima e Nagasaki (1945). Apelo de Estocolmo para a interdição da bomba atómica (1950). Experiências com a bomba de hidrogénio (1956). Lançamento do primeiro satélite artificial pela União Soviética (1957). Os americanos pisam a Lua (1970).

José Carlos de Melo, almadense notável e dirigente da
Associação de Socorros Mútuos 1.° de Dezembro

Mas na pacata vila de Almada, hoje cidade, a nossa Associação de Socorros Mútuos manteve-se contra procelas sociais e politicas, numa prova indestrutível da obra mutualista dos generosos fundadores. Muito do seu historial se perdeu no correr dos anos. Mas sabemos que muito cedo adquirira edifício próprio para sede, da qual legitimamente se orgulhava. Como regalias dispensadas aos associados, a "1.° de Dezembro" tinha assistência médica e medicamentosa, enfermagem e, em anos melhores, parteira, subsídio para cura de água, carro funerário e enterro.

Pelas direcções passaram centenas de cidadãos dos melhores quadros do movimento associativo da vila, hoje cidade. Os antigos almadenses falam ainda, saudosos, da grande festa anual em beneficio da Associação no Teatro da Trindade, em Lisboa. Durante meses, os associados e seus familiares sonhavam com o deslumbrante passeio, os vestidos e as farpelas a estrear, o espectáculo, o baile — oh gentes daquele tempo como a solidariedade floria em amor e felicidade! 

Pelicano Eucarístico
Associação de Socorros Mútuos 1.° de Dezembro
Imagem: InfoGestNet

Mas os anos e os homens são outros, Hoje resta-nos desejar que a árvore secular seja mais acarinhada, mais auxiliada, mais reconhecida por quem pode e manda neste País de milhões de pobres e de alguns milhares de senhores tão ricos, tão ricos.

São os nossos votos. Ámen

Romeu Correia (3)


(1) InfoGestNet
(2) Idem
(3) Idem, ibidem

Informação relacionada:
Centenário de António Henriques (1915-2015)
Almada em 1897
José Carlos de Melo

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Ao fim da memória

Fernanda de Castro (1900-1994)

Também me lembro da casa da minha bisavó, em Cacilhas, isto é, lembro-me de uma casa onde havia sempre muita gente, onde não me obrigavam a beber café com leite, onde ninguém me ralhava nem me punha de castigo. O resto, os pormenores, o tempo se encarregou de mos revelar; á medida que íamos crescendo, os meus irmãos e eu. 

Almada, Largo do Poço em Cacilhas, Paulo Emílio Guedes & Saraiva 05, década de 1900
Imagem: Delcampe

Era uma casa pombalina, cor-de-rosa. Nem pequena nem enorme, tinha janelas de sacada com grades pintadas de verde e muitos vasos de sardinheiras nas varandas. A casa de jantar e a sala, ambas muito grandes, tinham pinturas a fresco nas paredes, cenas de caça na primeira, anjinhos, instrumentos musicais e grinaldas de flores na segunda. 

Rua Direita — Cacilhas, ed. desc., década de 1900
Imagem: Delcampe, Oliveira

Os quartos, excepto o da minha bisavó e o da tia Emiliana, eram alcovas com portas de vidrinhos que davam para a sala e para a casa de jantar. O sótão, enorme, tinha um delicioso cheiro a pó e a bafio. 

Cacilhas (Portugal), Largo do Costa Pinto, ed. Martins/Martins & Silva, 18, década de 1900
Imagem: Delcampe

Por uma grande escada de pedra chegávamos aos aposentos da tia Emiliana que se compunham de sala, quarto de dormir, quarto de vestir e lavagens. O quarto de dormir tinha uma janela que dava para o Tejo, podendo ver, quando estava deitada, o vaivém das fragatas no rio. 

Cacilhas, Caes e Pharol, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

No pátio lajeado da cozinha havia outra escada de pedra toda enredada numa trepadeira que dava umas flores esverdeadas chamadas "martírios". 

Cacilhas, Molhe e pharol, ed. Martins/Martins & Silva, 19, c. 1900.
Imagem: Delcampe, Oliveira

A quinta que me parecia muito grande era, na realidade, pequena e bastante mal tratada por falta de água e por já não haver, nessa altura, hortelão nem jardineiro. Ainda assim tinha algumas árvores de fruto, pereiras e macieiras, alguns pés de uva moscatel, uma enorme amoreira e duas figueiras que davam uns figos pequenos mas muito doces. 

Almada, Pharol de Cacilhas, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 03, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

E havia ainda o mirante, a praia da Margueira e o poço onde – dizia a cozinheira Guilhermina – viviam lagartos e lacraus [...] (1)

Cacilhas, Caes e Pharol, ed.Tabacaria Havaneza, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Já estavam todos à mesa. Todos, menos o tio António. A tia Emiliana, severa, voltou-se para Carolina:   – Vai dizer ao menino António que estamos à espera... que a senhora está à espera.
– O menino António não almoça, está doente.
– Doente com quê? Não se adoece assim de repente, sem razão.
Anica interrompeu-a:  
– Teimou em ir tomar banho à Margueira, esteve uma hora dentro de água, apanhou frio e agora tem febre [...] (2)

Cacilhas, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 20, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Estou aqui na ilha de Faro à beira da Riamas que fio de Ariana me levou para bem longe, para a casa da minha infância?  A doçura da tarde? O voo das gaivotas? O reflexo dos últimos raios de sol na água imóvel? De repente compreendi; não era o lento subir da maré que eu captava, nem o susurro da água na areia, mas o longinquo marulhar do Tejo aqui na praia da Margueira. (3)


(1) Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf. Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986
(2) As Margueiras..., Junta de Freguesia de Cacilhas, 2013 cf. Fernanda de Castro, Maria da Lua, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007
(3) Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf. Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986



Fernanda de Castro (1900-1994) descreve-nos a casa pombalina da sua bisavó, Maria Maurícia Telles de Castro e Silva casada com Francisco Liberato e Silva [ref. no Arquivo Distrital de Setúbal], 2.° comandante da Guarda Municipal, pais de Francisco Liberato Telles de Castro e Silva (1842-1902), nascido em Cacilhas [v. artigo dedicado].

A autora nasce do casamento de Ana Isaura Codina Teles de Castro da Silva (1879-1914), filha de Liberato Telles, com João Filipe das Dores de Quadros (1874-1943), Capitão-Tenente da Marinha e Comendador da Ordem Militar de Avis.

Do casamento de Fernanda de Castro em 1922 com António Ferro, nasceram António Quadros, filósofo e ensaísta, e Fernando Manuel de Quadros Ferro. A escritora Rita Ferro é sua neta.

domingo, 10 de setembro de 2017

A banhos na Margueira com Romeu Correia

A praia da Margueira Velha, que era uma autêntica piscina natural, era um dos locais escolhidos por Orlando Avelar e muitos outros jovens da altura como: Sérgio Malpique, António Calado, Francisco Avelar, Romeu Correia, Ramiro Ferrão e Mário da Cruz Fernandes, para irem ao banho e conviverem. (1)

Saltando da muralha (detalhe).
Imagem: Imagem: Boletim "O Pharol"

Pois esta Margueira (Velha) era livre e a malta ia para lá com plena autonomia. Tinha um esporão que entrava pela água dentro e era aí que a rapaziada aprendia a atirar-se para as salsas ondas do rio.

Para entrar na outra (Margueira Nova) já piava mais fino. Apesar de ser mais solicitada tinha que se passar junto a um Posto da Guarda-fiscal e quando estavam de serviço os guardas Caturra e Barreto, nem pensar por lá seguir.

Aonde é que os meninos vão? Perguntavam os guardas de cinzento...

Nós vamos ao banho, senhor guarda, afirmavam com voz muito humilde. Pois se os meninos querem ir ao banho, vão pela Margueira Velha que a água é igual [...]

Para a doca da Margueira,
Iam os putos reinar,
Quais capitães da areia,
Para ali iam nadar.

Para o rio, na Margueira,
A muralha era um céu,
Acabou-se a brincadeira,
Quando a Lisnave apareceu.

Só em pelo, sem calção,
Todos nus, em ritual,
Mas sempre com atenção,
Ao mau do guarda fiscal. (2)

Venância Quaresma Correia Guerreiro, irmã do escritor almadense Romeu Correia, por parte do pai, nasceu em Cacilhas, no Ginjal no dia 16 de Junho de 1933.

Foto de 1935, na praia da Margueira. Da esquerda para a direita: 1o plano: Francisco Avelar e Orlando Avelar. 2o plano: Eduardo (padeiro), Romeu Correia, Ramiro Ferrão e António Calado. (Foto de Mário da Cruz Fernandes, cedida pelo seu filho Mário Simões Fernandes)
Imagem: As Margueiras

Recorda ainda hoje com vivacidade as suas primeiras idas à praia com o seu irmão, sempre acompanhados por um grupo de amigos, do qual faziam parte Francisco Calado, Francisco Avelar, Francisco Bastos, Sérgio Malpique e Chico Carapinha, Jorge Parada e Adelino Moura, entre outros, quase todos eles praticantes de atletismo.

Naquele tempo, para tomarem um bom banho os jovens não precisavam de apanhar qualquer meio de transporte.

O rio Tejo, com as suas águas límpidas, tranquilas e convidativas, estava mesmo ali pertinho de casa. Era só descer a pé pela rua da Margueira, que se bifurcava em dois caminhos. À direita ficava a praia da Margueira Nova, onde se encontrava a guarita da Guarda-Fiscal, que controlava o acesso à praia de seixos e areia branca, onde a Guarda proibia a entrada à rapaziada. 

No entanto, para alguns privilegiados a mesma guarita servia de vestiário.

À esquerda encontrava-se a praia da Margueira Velha, junto à casa da família Carbone onde se tinha de ter cuidado com as cascas de ostras para não cortar os pés descalços. Por vezes, quando os mais destemidos da malta mergulhavam sem pensar e calculavam mal o nível da maré-cheia, ficavam todos cortados nas ostras. Nesta praia, portanto, tinham de ser ter alguns cuidados e, acima de tudo, aproveitar para tomar banho com a maré bem cheia.

Saltando da muralha.
Imagem: Boletim "O Pharol"

Foi nesta mesma praia da Margueira Velha que o Romeu ensinou a sua irmã Venância a nadar. Mais tarde, haveria também de neste local ensinar a nadar a sua mulher Almerinda.

Cuidadosamente, o Romeu para proteger a irmã quando iam ao banho, levava-a às cavalitas. Na falta de fato de banho apropriado, a pequena ia habitualmente para dentro de água vestida de cuecas, que tinha de secar antes de vestir a roupa. As tias não podiam descobrir que estava molhada, quando chegava a casa, pois ela estava mesmo proibida de ir ao banho.

Vista panorâmica da Margueira (detalhe), Mário Novais, década de 1930
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Uma vez, desprevenida, molhou também o vestido. Estava no pontão a correr, agitando o vestido para o secar, quando se desequilibrou, caiu à água e voltou a molhar completamente as duas peças de roupa que tinha vestido nesse dia.

Margueira antiga (desenho original de Humberto Borges) sobreposição a actual vista satélite no Google Maps.
Imagem: Boletim "O Pharol"

Não tendo tempo para voltar a secar o vestuário, chegou a casa com ele ainda molhado. A partir daí, descoberta a sua já proibida ida a banhos, a menina Venância ficou igualmente proibida pela família de ir à praia da Margueira. (3)

Praia de doce encanto
Onde desde cedo
As crianças se banhavam.
Em suas límpidas águas sonhavam,
Desde manhã
ao sol se pôr na epifania.

Margueira, Anyana, 1981.
Imagem: As Margueiras..., Junta de Freguesia de Cacilhas, 2013

Na ansiada hora
Da maré cheia
Eram tão sãos
Os gritos de alegria
Junto aos chamados
Da mãe que os repreendia.

E quando no caminho
Em aromas suaves da aurora
Derramando a vivacidade da sua energia
Aqueles seres pequeninos
Saltavam em pés coxinhos
Como alcatruzes nas noras.

E era tão belo
O correr do momento
E era tão sã
A sã euforia
Que marcaram bem
Na distância
No tempo
O que lhes ficou
No pensamento
O que jamais na razão desaparecia
Vamos! Está na hora da maré!
Era um grito
Na chamada de lar em lar
E sem esperar
Sempre correndo em frente
Aquele magote de gente
Se encontrava em cruzamento das Margueiras,
A nova e a velha,
Como que em juramento
De crédito na vida
No amor, na verdade, na fé plena
Na fé de esperança e caridade
Que corre ainda hoje
Estes caminhos
Nas memórias da saudade.

AnyAna (4)



(1) As Margueiras..., Junta de Freguesia de Cacilhas, 2013
(2) As Margueiras..., cf. José Luis Tavares, Almada minha, 2010
(3) As Margueiras..., Junta de Freguesia de Cacilhas, 2013
(4) AnyAna in As Margueiras..., Junta de Freguesia de Cacilhas, 2013

Informação relacionada:
Recordar as Margueiras - I
Recordar as Margueiras - II
Júlio Diniz