quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Egreja de S. Thiago em Almada

Mandou então construir no campanário da egreja de S. Thiago um cadafacens de madeira, d'onde podesse vêr toda a villa e assistir ao combate. Trepou-se a elle, e ordenou que o logar fosse atacado "com gente d'armas e de pé, e tiros e bestaria, e fundas de demogrillas e outras artilherias de combate!" Durou esse ataque desde a hora da terça até depois do meio dia.

Almada,  Igreja de S Tiago do Castelo, Fachada principal, ed. Sculparte 139.1.
Delcampe

A essa hora o Rei desceu á egreja para comer. Foi a sua salvação, porque os da villa — imaginando que elle ainda se achava sobre o cadafacens de madeira — resolveram atirar-lhe um tiro.

Almada, Igreja de S Tiago do Castelo, Interior, Sculparte 139.2.
Delcampe

Esse tiro, que, atirado horas antes, teria morto o Rei de Castella e adeantado, decerto, a victoria do Mestre de Aviz; que teria libertado Almada e Lisboa; que teria supprimido Aljubarrota e a continuação da epopéa do Mestre e do Condestavel... (1)

As paróquias e igrejas matrizes da vila de Almada existiam pelo menos desde a 2.ª metade do século XII, a mais antiga dedicada a St.ª  Maria terá sido fundada pelos cavaleiros ingleses após a conquista do Castelo em 1147, a de S. Tiago datará já do fim desse período pois acredita-se que foi obra dos cavaleiros de Santiago após terem recebido a vila e castelo em doação régia no ano de 1186.

Interior da Igreja de S. Tiago em Almada.

O primeiro registo documental destas paróquias aparece numa "Lista das Igrejas dos Bispados do Porto, Tui, Coimbra e Lisboa e do Arcebispado de Braga" datada de 1229. Cfr. Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Gaveta XIX, maço 14, n." 7, folha 11 - "Sancta Maria de Almadana (Sanctus Jacobus de Almadana". (2)

Roque Gameiro.org
Na vila de Almada setecentista a principal festividade depois da procissão do Corpo de Deus (da responsabilidade da Câmara) era dedicada a S. João Baptista, promovida pela respectiva mordomia com festa anual nos dias 23 e 24 de Junho, percorrendo as ruas de Almada em procissão desde a Igreja de S. Tiago (ou alternadamente da Igreja do Castelo) até a Errnida da Ramalha passando pela Ermida de S. Sebastião.

Esta festa substituiu a de São Tiago, que no século XVI era a grande festividade da vila e do termo. (3)


A Igreja de Santiago, em Almada Velha, é de origem medieval e foi fundada durante o século XII. Remonta aos primeiros anos de reconquista cristã, presumindo-se que seja o templo mais antigo, anterior à consagrada a Santa Maria do Castelo, desaparecida após o Terramoto de 1755.

Ambas pertenciam à Ordem de Santiago.

Foi Igreja Matriz e, por isso, encabeçava a freguesia com o seu nome, a par com a de Santa Maria. 


Na frontaria ainda ostenta o escudo com a cruz de Santiago de Espada.

Realizaram-se alterações posteriores durante o século XVIII: em 1724, foi reerguida sob patrocínio do Infante D. António, irmão de D. João V. 

A fachada Neoclássica atesta a reconstrução (primeira metade do século XVIII). Da reedificação constavam, em especial, a abóbada Manuelina sobre o altar-mor, algumas lápides sepulcrais e os azulejos do século XVIII.

Igreja de S. Tiago.
Lisbon from Almada, Drawn by Lt. Col. Batty, Engraved by William Miller, c. 1826.
  Wikimedia

Com o Terramoto de 1755, apenas resistiu a capela-mor e, talvez, parte das paredes laterais. A torre, parte da fachada e cobertura abateram. No último quartel do século XVIII, é reconstruída a capela colateral, localizada no lado do Evangelho.

O interior, de uma só nave, encontra-se integralmente revestido a azulejos de padrão datáveis de século XVII. Na capela-mor, evidencia-se a abóbada de nervuras em estilo pós-Manuelino, composto por pedras calcárias de várias tonalidades.

Apresenta painéis de azulejos, de autoria atribuída a Nicolau de Freitas, que ilustram momento da lenda de Santiago.

Em 1981 e 1993, escavações arqueológicas permitiram a identificação de um conjunto de sepulturas escavadas no substrato rochoso que testemunham a longa ocupação deste espaço entre os séculos XII e XVI. Possibilitaram, ainda, o reconhecimento do antigo perímetro do adro da igreja. (4)




(1) Conde de Sabugosa (cit. Fernão Lopes), Embrechados, Lisboa, Portugal-Brasil Lda., 1911
(2) Rui Manuel Mesquita Mendes, Património Religioso de Almada e Seixal...
(3) Idem
(4) almadadigital

domingo, 18 de novembro de 2018

Clube Recreativo José Avelino

Foi por este portão do Clube Recreativo José Avelino que, há quarenta anos, entraram os primeiros espectadores dos "Bonecos de Luz", o mais humano e picaresco dos romances de Romeu Correia, história de uma simplicidade tão prodigiosa que roça a magia e pelo fantástico, tal como nos contos de Panait Istrati ou algumas novelas de Gogol. (1)

Cacilhas Clube Recreativo José Avelino Jornal de Letras e Artes 14 3 de janeiro 1962 01.jpg

O Clube Recreativo José Avelino foi oficialmente inaugurado em 6 de Maio de 1906.

Uma Festa de um aniversário do Clube José Avelino no principio do século passado.
"Aqui estão os meus antepassados, a família Silva, juntamente com a família Feio, antepassados do meu querido amigo Mario Feio e alguns membros da famíla Zagallo!"
cf. João Rafael

E para que conste, os seus primeiros Corpos Dirigentes eram constituídos pela maioria dos seus sócios fundadores, a saber. António Augusto Figueiredo Feio, Presidente; João Isidoro da Silva, vice-presidente; José Avelino Vieira da Silva, Tesoureiro; António Augusto Rodrigues, 1° Secretário; Manuel dos Santos Parada; 2° Secretário.

João Rafael
A inauguração do Clube José Avelino, foi feita com pompa e circunstancia, tendo a Direcção elaborado um extenso programa de festas a condizer com a solenidade do dia, no qual constavam, com inicio às 2 horas da tarde, urna sessão musical com o concurso das filarmónicas existentes na Villa de Almada, uma "troupe" de bandolinistas e uma Sessão de Arte Dramática com declamação de poesia. 

Às 8 horas e meia da noite tinha inicio a representação dc 3 peças teatrais respectivamente: "Escravos e Senhores" (em 3 actos), "Folies Bergéres" (musical) e a comédia em 1 acto, "Valentes a Fingir'.

Os actores que participaram nestas peças eram amadores e muitos deles faziam parte como sócios da colectividade. A titulo de curiosidade, o próprio José Avelino representou na peça "Escravos e Senhoras"...

Desde o seu inicio que o Clube José Avelino criou o seu próprio grupo cénico, constituído na sua maioria por gentes de Cacilhas com vocação para a Arte de Talma. Alguns deles, sem qualquer favor. destacaram-se pela sua vocação natural para a arte cénica podendo mesmo rivalizarem com alguns dos actores já consagra-dos que representavam nos teatros de Lisboa.

O Clube José Avelino ao longo das décadas seguintes tinha sempre um cuidadoso programa de festas calendarizado ao longo do ano, que passavam pelas representações do seu grupo cénico ou de grupos convidados. espectáculos musicais, sessões de fado, concursos e as famosas "soirées" dançantes, vulgo bailes, que aconteciam sempre por alturas do carnaval, da micaréme (no qual era eleita por um ano, a minha e as suas 2 damas de honor), da pinhata e da passagem de ano, sempre abrilhantados pelas melhores "Troupes" e Jazz Bands que havia na altura (como então eram denominados os conjuntos musicais que tocavam nos salões dc baile), e que eram muito frequentados (havendo sempre lotação esgotada), proporcionando noites inesqueciveis a todos os cacihenses e não só, que ali conviveram. lias ia ainda, ao longo de todo o ano, uma diversidade de festas dançantes. alusivas à temática da Primavera, da Flor, das Violetas das Vindimas e a outras, que tinham sempre a garantia dc "casa cheia"...

Clube Recreativo José Avelino.
Mario Feio

No que reporta às peças teatrais, foram muitas as que passaram pelo palco do "José Avelino" tendo entre tantas, ficado na memó-ria daqueles que connosco ainda convivem, títulos como "20.000 Dollares", "Rosa do Adro", "D. César Bazan", "As Duas Causas", "Renascer", "Intrigas do Bairro", "O Domador de Sogras", "O Tio Rafael", "Senhor Roubado", "Cama, Mesa e Roupa Lavada", "Vizinhos de Cima" e outras tantas...

Baile de Carnaval no Clube José Avelino, Fevereiro de 1933.
Alexandre Flores, Almada e as suas tradições: o carnaval

O Clube José Avelino. pela fama dos eventos e das festas que organizava, passou a ser conhecido e referenciado para além das "fronteiras" de Cacilhas atraindo cada vez mais forasteiros e curiosos provenientes de Lisboa para assistirem na "Outra Banda". aos espectáculos que eram previamente anunciados por folhetos e programas ou mesmo nos jornais. 

Bailes de máscaras no carnaval de 1934.
Luís Bayó Veiga, Boletim "O Pharol" n° 27, 2015

A fama adquirida pelos espectáculos sempre com lotação esgotada, que ocorriam no seu salão de festas, fez despertar a atenção dos empresários de Lisboa, que rapidamente, percebendo haver oportunidades dc lucro, acertavam as condições dos contratos para serem exibidas excelentes peças teatrais que já tinham sido êxito na capital. 

Equipa de futebol do Clube José Avelino no campo da Quinta das Farias do Clube Desportivo da Cova da Piedade.
almaDalmada

E foi assim que ao longo de sucessivos anos da vida do clube. pisaram o palco do "José Avelino". alguns dos maiores nomes da cena teatral portuguesa da altura com destaque para: Chaby Pinheiro. Lucília Simões, Alves da Cunha. Maria Matos, Ilda Stichini. Adelina Fernandes. Palmira Bastos. Amélia Rey Colaço. Robles Monteiro e por último, Amália Rodrigues. os quais pelo facto da sua actuação naquele palco, tiveram direito cada um deles, a uma placa comemorativa que era colocada nas paredes do vestíbulo do Clube. 

Clube Recreativo José Avelino Rainha da Micarême ladeada pelas duas damas de honor e restantes acompanhantes,1953.
Luís Bayó Veiga, Boletim "O Pharol" n° 27, 2015

Sendo desde a sua origem um clube elitista e aristocrata (os seus sócios eram normalmente comerciantes, industriais, funcionários públicos e militares entre outros), a admissão de novos sócios era portanto muito selectiva.

Clube Recreativo José Avelino.
Mario Feio

Ao longo do correr do tempo, e das suas sucessivas Direcções, o Clube José Avelino fazia juz de procurar manter sempre uma exemplar organização e qualidade dos eventos que programava para cada ano e mostrar-se cumpridor dos seus compromissos assumidos.

Portão de acesso ao Clube José Avelino.

Mas o tempo passa e avança, os hábitos mudam. e a chama do associativismo foi empalidecendo com o desaparecimento dos seus mais nobres empreendedores cacilhenses... A partir do limiar da década de 50, o Clube José Avelino foi entrando em decadência. (2)


(1) Almada e o povo na obra de Romeu Correia, Jornal de Letras e Artes n° 14, 3 de janeiro 1962
cf. Almada na História, Boletim de Fontes Documentais, n° 30
(2) Luís Bayó Veiga, Boletim "O Pharol" n° 14, 2010

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Estaleiro de J. A. Sampaio

É este um dos principaes estabelecimentos da cidade de Lisboa, destinado a construcções marítimas, cujos créditos estão de ha muito solidamente conquistados por um trabalho ímprobo e insano.

Vista tomada no porto de Cacilhas, face a Lisboa, Hubert Vaffier,  1889.
Bibliothèque nationale de France

As construcções navaes feitas na doca do sr. Sampaio em Cacilhas, teem merecido as melhores referencias por parte dos technicos d'aquellas especialidades.

O estaleiro tem vastos depósitos onde também se encontra um variado e completo sortimento de materiaes para construcções urbanas e ruraes.

Á frente d'este importantíssimo estabelecimento, encontra-se o nosso velho amigo sr. Eduardo Sampaio, um moço muito activo, intelligente e trabalhador. (1)

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Aproveitando a tradição do local para a prática da querenagem e as condições naturais de um baldio que existia junto à Quinta do Outeiro, uma das sete propriedades que a Casa do Infantado possuía no Alfeite, o industrial António José Sampaio instala um pequeno estaleiro nesse terreno junto ao salgado do rio, confinando a Sul com a referida Quinta do Outeiro, a Poente com a Romeira Velha, a Norte com o Caramujo e a Nascente com o rio Tejo.

Tejo junto à Praia do Alfeite, António Ramalho, 1880.
Alexandra Reis Gomes Markl, António Ramalho, Pintores Portugueses, Lisboa, Edições Inapa, 2004

Este estaleiro, vocacionado apenas para a construção de embarcações em madeira, encontrava-se em plena laboração em 1850.

Plano Hydrográfico do Porto de Lisboa (detalhe), 1847.

Em 1855, o seu proprietário, por escritura notarial celebrada em Lisboa no dia 27 de Janeiro, toma de foro ao Conde de Mesquitela, um pedaço de terreno na praia da Mutela, junto à Margueira, para ali instalar uma caldeira em estacaria ou de pedra e cal, na extremidade da qual projectava construir duas rampas para querenagem de embarcações.

Doka velha, Leitão de Barros, 1916
[eventualmente trata-se da mesma aguarela referenciada como Estaleiro da Mutela (Mutelo) e Casas na Mutela].
Ilustração Portuguesa,n° 567, 1 de janeiro de 1917

Desconhecem-se pormenores da actividade destes dois estaleiros, a não ser o facto de ambos se terem mantido na posse daquele industrial até Dezembro de 1892, altura em que o Governo, pretendendo proceder à reforma dos meios navais, consulta os industriais do ramo, procurando avaliar das condições de que dispunham os seus estaleiros para efectuarem a construção dos navios necessários.

Os documentos da época esclarecem que efectivamente nem o estaleiro de António José Sampaio se encontrava preparado para construir os navios metálicos, nem os orçamentos apresentados pelo seu proprietário mereceram a apreciação favorável das entidades responsáveis da Armada.

Duvida-se que António José Sampaio tenha concluído o projecto da construção das rampas de querenagem segundo o projecto de intenções subscrito em 1855, por duas razões objectivas: a primeira, porque o local aforado na Mutela era extremamente exíguo e em condições semelhantes já aquele industrial possuía o estaleiro da Praia do Outeiro, muito melhor abrigado.

Panorâmica da fábrica William Rankin & Sons na quinta do Outeiro no Alfeite, 1885.
Alexandre M. Flores, Almada na história da indústria corticeira e do movimento operário...

A segunda razão encontra-se relacionada com o facto de em 1865, Sampaio se preparar para dar início à construção de um grande estaleiro na Praia da Lapa, em Cacilhas, dotado de duas docas secas, sendo deste modo previsível que este último projecto o levasse a colocar em segundo plano das suas prioridades o investimento na Mutela [...]

Em 10 de Junho de 1865, António José Sampaio procede à escritura do aluguer de um pedaço de salgado na Praia da Lapa, em Cacilhas, para aí construir um estaleiro de maiores dimensões que aqueles que possuía nas proximidades da Quinta do Outeiro e no lugar da Mutela.

Em 17 de Dezembro de 1872, aquele industrial paga à Câmara Municipal de Almada, pelo foro do referido salgado situado em Cacilhas, a importância de vinte e dois mil e quinhentos réis. (2)


(1) O Defensor do Povo n.° 59, Coimbra, 9 de fevereiro de 1898
(2) Samuel Roda Fernandes, Fábrica de Molienda "António José Gomes", Anexos

Artigos relacionados:
H. Parry & Son, estaleiro no Ginjal
H. Parry & Son, estaleiro em Cacilhas

Mais informação:
Restos de Colecção

Tema:
Construção naval

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Sugestões para um passeio a Almada

O relêvo de Lisboa permite que existam, espalhados pela cidade, alguns miradoiros. Integrados, por assim, dizer, no casario, sentimo-nos levados antes pelo sentido e gôsto da orientação e localização. A vizinhança dos prédios distrai-nos, a cidade apresenta-se-nos, pela proximidade, mais como um aglomerado humano que como um conjunto, mais ou menos estético, de edificações. A visão é, por todos os aspectos, parcial e reduzida.

Vista aérea de Lisboa e do Tejo em 1941.

Mas existe um ponto que pela sua especial situação é o único miradoiro sôbre Lisboa. E o espectáculo dali não é só panorâmico, é também histórico. Podem apreciar-se os estratos da formação da capital: primeiro a parte ribeirinha, a mais antiga &mdash que Lisboa nasceu com o mar; depois as épocas vão desfilando, concretizando-se em diferentes manchas de côr e aspecto; lá para o fundo, quási a adivinhar-se já, a parte moderna, as novas veias que de há cêrca de quinze anos se vem enriquecendo. 

Acompanhando o colear da fita maravilhosa do Tejo, Lisboa estende-se, indolente; indolente só em aparência, porque até n6s chega, aqui, à outra margem, o incessante rodilhar dos guindastes nos cais.

Almada, Vista Parcial (tomada do Campo de S. Paulo), ed. desc., década de 1940.
Delcampe, Bosspostcard

Pelo rio, veleiros e vapores não param. Cargueiros fundeados lembram a guerra distante: ali um da Cruz Vermelha Internacional, mais perto outro, da frota mercante da Suíça, país que tem Lisboa por principal pôrto ele mar... e mais, e mais...

Lá ao longe, envôlta em bruma e beleza, a serra de Sintra.

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Pois êste ponto da margem esquerda do Tejo, de onde Lisboa melhor se pode compreender e admirar, é Almada. E se Almada é, pois, pela sua natural situação geográfica, o único miradoiro sôbre lisboa, é lógico que para ela se voltem as atenções do turismo.


Almada, Vista Geral (tomada do Campo de S. Paulo), ed. desc., década de 1940.
Delcampe, Bosspostcard

No fundo do problema - não tendo permitido até hoje a realização de qualquer obra de vulto — está a falta de água. Falta de água, drama de uma terra encostada a um dos grandes caudais da Europa. Mas a questão está a solucionar-se e dentro de alguns meses a água, trazida de longe, percorrerá a vila, subirá às habitações, revivificará os jardins.

Transportando a água, Júlio Diniz, década de 1950.
O Pharol

Por outro lado, a vila é suja e pobre. O primeiro aspecto parece poder resolver-se com a água, com uns quilos de argamassa a rebocar faltas pelos prédios, e com umas latas de tinta ou de lusitana cal; porém, o nível de vida da população, (na maioria operariado das emprêsas fabris marginais), não lhe permite êstes gastos, embora relativamente pequenos, nem os próprios senhorios estão em condições de cumprir posturas que os obriguem a dispendiosas e freqüentes beneficiações nas suas propriedades.  A uns e a outros terá, decerto, de ir o auxílio do Estado.

Escondidinho Boca de Vento, vista tomada da rua Trigueiros Martel,
Mário Novais, 1946.
Fundação Calouste Gulbenkian
Há pequenos pormenores, porém, que são de fácil e importante remedeio. Dois exemplos: um pequeno quadrado de terreno, com um máximo de três portas nos seus quatro lados, merece a pomposa designação de Largo e, para mais, Largo de Fernão Mendes Pinto... Se não existisse qualquer letreiro, (dado que o podemos considerar como parte integrante da rua que o gera), notar-se-ia menos; mas a impressão é tanto mais penível, quanto ela nos atesta ingrata homenagem ao delicioso autor da "Peregrinarão".

Perto desse «largo» existe um prédio, de dois andares, de miserável aparência; reparando depois melhor, vemos não ser um prédio, mas a sua fachada somente. O prédio foi demolido, a fachada ficou servindo de muro. Ora, quero crer que se abatessem essa fachada e vendessem a alvenaria, o produto da venda cobriria as despesas a fazer com a construção de um simples e caiado muro.

Vejamos, agora, algumas possibilidades turísticas e de arranjo estético. Existe um pequeno miradoiro, gracioso quanto à arquitectura, ao qual falta uma pequena latada, se bem que tenha o travejamento para ela. E quero ver ainda nessa falta o problema da água. Mas uma só varanda não basta. A esplanada do Castelo... Já que falamos em Castelo, é justo perguntar que Castelo é êsse que, conquanto exista nos indicativos quilométricos da estrada e esteja ligado à história da Fundação de Portugal, por mais que o busquemos, se não distingue? Talvez que seja essa arte da guerra moderna, a camuflagem, que o esconde aos olhos dos profanos!... Urge restaurá-lo, para que as paredes que ainda restam dêle se nos não apresentem como as ruinas de um velho palheiro.

No miradouro de Almada, 5/X/1946.
Delcampe

Pois ia-vos falando da esplanada do Castelo: não seria justificável a construção, aqui, de um novo miradoiro, já que o sítio é alto?

Bastante acima do nível do Tejo, encravada na montanha que ali é áspera, há uma edificação, que não sei se teria feito parte do Castelo e que hoje pertence à Câmara de Almada. Aí, uma nova varanda, talvez a mais bela, deveria ser aberta. O Município tinha pensado já em a aproveitar para restaurante, ou mesmo pousada. É um caso merecedor de estudo, tanto mais que ainda não está na zona que as leis militares indicam como pertencendo à influência do Forte.

Almada, jornal "O Século" edição especial, 1940.

Um rochedo, a quinze ou vinte metros da margem, se estivesse ligado a esta por uma estreita ponte e possuísse condições artificiais de segurança, deveria transformar-se num local magnífico para os amadores de pesca à linha. 

Pequenas-grandes coisas a fazer... Mas tantas outras havia, que o espaço não nos deixa sugerir!

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Além, sôbre Lisboa, as sombras vão-se alargando e estendendo, vão ganhando uma tonalidade violeta; dentro em pouco, aqui e ali acender-se-ão as primeiras luzes e, mais tarde, ainda há-de Lisboa cintilar em milhares de janelas, em clarões que sobem das avenidas e das praças. Abaixo de mim, um barquito a remos faz singela cabotagem, transportando barris.

DC3 da TAP sobtre Lisboa, década de 1950.

No forte, lá no alto no mais alto de tudo que nos rodeia desenha-se nitidamente contra o azul do céu uma sentinela que vigia. Sôbre tôdas as coisas paira a recordação das chamas que consumiram o palácio de Manuel de Sousa Coutinho. (1)


(1) Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, n.º 17, Outubro 1943

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Homens de água e luz
Almada 1945-1965